Já não podemos acreditar em ninguém?

Acredito que Mário Centeno tenha começado por agir de boa-fé na trapalhada da CGD.

Estando a Caixa há meses sem administração – por sua culpa, adiante-se -, queria resolver rapidamente o problema e aceitou todas as condições que António Domingues lhe colocou, ou seja, isentar a CGD das limitações inerentes ao facto de ser um banco público, passando a ter condições iguais aos privados.

E isto tinha implicações em dois planos:

1. No plano da liberdade de ação da CGD no mercado;

2. Nas regalias e obrigações dos seus administradores (salário, declaração de rendimentos, etc.).

Admito que, de início, Mário Centeno não tenha isentado ‘especificamente’ António Domingues de entregar a declaração de rendimentos; só que isso não era preciso, pois os administradores da banca privada não entregam essa declaração.

O problema deve, mesmo, ser posto ao contrário: se a isenção da entrega da declaração não fizesse parte do ‘pacote’ que igualizava públicos e privados, deveria existir uma nota referindo essa exceção.

Uma ressalva do tipo: «Os gestores da CGD ficam equiparados aos da banca privada, exceto no que toca à entrega da declaração de rendimentos».

Ora, não existindo isso, é óbvio que António Domingues aceitou o cargo, e convidou as pessoas para o Conselho de Administração, no pressuposto de que não seria necessária tal declaração. 

E, como se percebe pela troca de ‘correspondência’ entre Centeno e Domingues, o ministro das Finanças tinha plena consciência desse facto.

Quando compreendeu o erro que tinha cometido, Mário Centeno começou a recuar.

O seu secretário de Estado Mourinho Félix ainda disse ingenuamente que a não entrega da declaração não se tratara de «um lapso», antes era intencional e decorria daquela alteração de estatuto da Caixa.

Mas logo se viu que essa posição era insustentável. 

E, assim, o ministro das Finanças passou a desdizer publicamente o que privadamente tinha prometido a António Domingues, deixando-o numa situação desconfortabilíssima.

Este processo culminou na conferência de imprensa de segunda-feira, que constituiu para mim a falha mais grave de Mário Centeno.

Porquê? Até aí, o ministro vinha metendo os pés pelas mãos.

Mas na segunda-feira veio dizer preto no branco que nunca tinha isentado António Domingues e os restantes administradores de entregarem a declaração de rendimentos.

Ora, ele sabia perfeitamente que essa eventual ‘verdade formal’ a que se agarrava escondia uma mentira. 

Aqui já não se tratava de um engano, de uma falha, de um mal-entendido – mas sim de um ato deliberado, pensado, consciente, para enganar os portugueses, para os induzir em erro.

Assim, se Mário Centeno era visto antes como um homem que, por inabilidade, fizera umas trapalhadas, depois desse dia passou a ser visto como uma pessoa capaz de iludir a verdade para salvar a pele. 

Nesta triste história, há outras coisas que custam a perceber.

Por exemplo: por que razão o PS, o BE e o PCP se opuseram na Comissão de Inquérito à divulgação da primeira carta que Centeno enviou a António Domingues e dos sms que trocou com ele? 

É certo que esses sms desmentiam o ministro. 

Mas, porventura, o PS o PCP e o BE acreditavam que eles não viriam a público?

Acreditavam que António Domingues levaria tão longe o seu sacrifício que deixaria imolar-se na praça pública, passando por mentiroso para safar o ministro das Finanças?

Se acreditaram, foram ingénuos.

E assim também se descredibilizaram inutilmente, mostrando a todos que queriam encobrir uma mentira.

Mas, neste processo, Mário Centeno teve mais dois cúmplices: António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa.

E não sei se um deles foi cúmplice ou mandante.

De facto, Centeno não teria dado garantias ao presidente da CGD sem a concordância do primeiro-ministro.

Sendo um assunto delicadíssimo, não poderia ter tomado a decisão sozinho.

Não o poderia ter feito da primeira vez – e muito menos quando o assunto ganhou relevância mediática e política.

Aliás, um dos sms trocados pelo ministro com António Domingues prova-o sem margem para dúvidas: ao dizer que o Presidente da República não concorda com a isenção da entrega da declaração, Mário Centeno deixa implícito que o primeiro-ministro concorda. 

Mas há mais: segundo consta, foi o próprio Costa quem negociou o assunto com Marcelo!

Se assim foi, os dois sabem até que ponto levaram o embuste. 

E é por isso que António Costa apoiou e segurou Centeno: se o condenasse, estaria a condenar-se a si próprio; absolvendo-o, está a defender-se.

Nesta medida, o apoio de António Costa a Centeno não tem qualquer valor.

O outro cúmplice é Marcelo Rebelo de Sousa.

Marcelo deveria ter percebido logo o alcance do diploma que promulgou e que colocava a Caixa e os privados no mesmo plano.

Ou então percebeu e fingiu que não percebeu, mancumunado com o Governo. 

E a partir daí teve de se escudar com a mesma ‘verdade formal’ atrás da qual Mário Centeno se escondia, dizendo que não aparecera «nenhum documento escrito» pelo ministro das Finanças em que este isentasse o presidente da CGD de entregar a declaração.

E só quando percebeu que não existiam documentos escritos mas existiam sms é que Marcelo se demarcou.

Mas era tarde.

Tinha ido longe de mais na cumplicidade com o Governo e com o próprio ministro das Finanças.

Mário Centeno, António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa não saem nada bem disto.

Todos erraram – e todos começaram por se encobrir uns aos outros.

Não foi por acaso que, ao reafirmar a confiança em Centeno, António Costa referiu a concordância do Presidente da República – facto que levou Marcelo, já numa fase de demarcação, a dizer «que a interpretação autêntica das posições do Presidente da República só ao próprio compete».

E a adiantar a célebre afirmação de que apenas aceitava a continuidade do ministro das Finanças «atendendo ao estrito interesse nacional, em termos de estabilidade financeira», sublinhando ter registado «a disponibilidade do ministro para cessar funções».

Com estas considerações do Presidente, Mário Centeno pode continuar no seu posto – mas fica numa posição terrivelmente humilhante.

Este caso suscita outro problema: que confiança poderemos ter a partir de agora naquilo que sair do Ministério das Finanças?

Que trapalhadas se farão lá dentro?

Com um ministro tão pouco respeitado e pouco respeitador da verdade, qual a credibilidade dos números que apresenta? 

Em artigo anterior falei do ‘mistério do défice’, mostrando os artifícios usados para se chegar a um valor tão baixo.

Ora, que mais moscambilhas haverá? 

E se António Costa e Marcelo encobriram o ministro neste caso da CGD, que certeza temos de que não o encubram noutros, sempre em nome do «interesse nacional»?

Começa a existir a sensação incómoda de que, ao nível do poder, já não podemos acreditar em nada nem em ninguém.