Cavaco não perdoava erros de ministros de Sócrates

Notícias plantadas, a sucessão na Procuradoria-Geral da República, uma visita fantasma de Hugo Chávez e os ministros. Cavaco disse sempre o que não gostava. Sócrates nem sempre ouviu

A ordem das reuniões de quinta-feira entre o Presidente Aníbal Cavaco Silva e o primeiro-ministro José Sócrates não é cronológica, mas os capítulos temáticos seguem uma linha condutora até à derrota eleitoral do Partido Socialista nas eleições legislativas de 2011. Até aí, uma longa onda de polémicas passou debaixo da ponte. Essa ponte: o Palácio de Belém.

O novo PGR e o PGR queimado

Cavaco admite que preferia que José Souto Moura, o procurador-geral da República que terminava o seu mandato no primeiro ano de presidência cavaquista, se mantivesse no cargo. 

Souto Moura terá recusado a ideia, muito devido aos anti-corpos que desenvolvera no Partido Socialista após o processo Casa Pia. Para o seu lugar, Sócrates terá manifestado para chegar a bom porto com o Presidente na escolha de um nome. Cavaco pediu-lhe duas opções; Sócrates apresentou um, rejeitado por Cavaco por pertencer ao Ministério Público e ter tenra idade, Sócrates apresentou outro, do Supremo Tribunal de Justiça, que também não convenceu Cavaco.

O Presidente estava preocupado com a falta de consenso que o nomeado pelo Governo socialista poderia despertar na oposição; o PSD. 

O primeiro sinal de consenso foi o nome de Fernando Pinto Monteiro, juiz conselheiro. 

Cavaco conta que o Diário de Notícias noticiara um acordo entre PS e PSD para que Henrique Gaspar, também juiz conselheiro, fosse o novo PGR. Para o antigo PR, «não foi difícil perceber que aquela notícia era oriunda do PS e tinha objetivo de ‘queimar’ o nome de Henrique Gaspar», pois este «não entusiasmava o Governo».

Esta é uma das primeiras acusações que Cavaco Silva faz aos socialistas de manipulação da comunicação social ao longo do livro. 

Cavaco considerou Pinto Monteiro «um homem honesto», salientando, todavia, dúvidas sobre se teria «a capacidade de liderança que o MP exigia». Cenário que, segundo Cavaco, também era temido pelo próprio futuro procurador-geral, que lhe havia dito «que se interrogava sobre se seria capaz de desempenhar bem o lugar, e que não queria desiludir quem nele confiava».

Para Cavaco, quatro anos depois da tomada de posse de Fernando Pinto Monteiro, «era forçado a concluir que não tinha sido alcançado o objetivo que então tinha ficado expressado: um Ministério Público empenhado na defesa da legalidade e eficaz no exercício da ação penal, atuando com exigência, descrição e responsabilidade de Estado». 

Os ministros sem senso

A avaliação privada – e nas reuniões de quinta-feira – que Cavaco Silva fazia dos ministros de José Sócrates era bem mais impiedosa que aquilo que transparecia na praça pública. Basta lê-lo sobre Jaime Silva, Mário Lino ou Correia de Campos.

Lino, desculpado por Sócrates por ser «uma joia de pessoa», conta Cavaco, tinha comportamentos julgados inaceitáveis pelo ex-Presidente. «Considerava inaceitável a agressividade com que o ministro Mário Lino tratava, em público e em privado, os opositores da localização da Ota, apoucando pessoas com competência firmada na matéria», acrescentou Cavaco, sobre a polémica do novo aeroporto na margem sul do rio Tejo. 

Jaime Silva tem mesmo um capítulo dedicado a si, intitulado «A falta de bom senso de um ministro» em que Cavaco Silva chega a afirmar que «era difícil entender por que não o substituía». 

O Presidente não apreciava a linguagem do ministro na relação com os parceiros sociais, sendo que Jaime Silva «tinha dito que alguns dirigentes da Confederação Nacional da Agricultura eram da extrema-esquerda e que alguns dos da CAP eram da direita mais conservadora». Cavaco terá advertido Sócrates para um ministro que «criava problemas em vez de os resolver» insistindo que Sócrates tomasse o seu lugar nas negociações que ia inviabilizando. 

Sócrates seguiu o conselho e assim o fez, apesar de desculpabilizar o seu ministro por diversas vezes, afirmando tratar-se «de falta de experiência política». 

«O bom senso é uma das qualidades mais importantes de um político. Sem ele, é difícil ter sucesso e servir bem o país», escreve Cavaco, sem especificar para qual dos envolvidos. 

Sócrates lá substituiu Jaime Silva por António Soares Serrano na formação do novo governo, em 2009. Cavaco considera-o «o oposto do antecessor». «Não só no feitio, mas também na competência», referindo também «elogios de agricultores» que ouviu com frequência sobre o homem que herdou a pasta do tal ministro sem bom senso. «Era um caso evidente de falta de bom senso que se assemelhava ao do ministro das Obras Públicas, Mário Lino, mas que lhe ficava claramente atrás em matéria de competência», remata o autobiografado. 

Correia de Campos, na altura na Saúde, recebe o capítulo «um ministro que falava demais» e Cavaco revela até que Sócrates admitiu que o ministro tinha «um perfil conflituoso». 

Sobre a sua substituição, acompanhada pela demissão de Isabel Pires de Lima, da Cultura, Cavaco escreve que «se tratava apenas de evitar a saída isolada no ministro Correia de Campos, salvando-lhe a face». Teria sido preferível substituir o já visado Jaime Silva, insiste Cavaco Silva. 

Longe do Magalhães, sff.

A aversão do antigo Presidente da República ao regime de Hugo Chavéz dá origem a uma das passagens mais irónicas de Quinta-feira e outros dias. 

Sobre o momento em que José Sócrates optou por promover os computadores “Magalhães” numa cimeira ibero-americana, lê-se: «Quando, mais tarde, vi as imagens na televisão, confesso que senti uma especial satisfação por ter ficado de fora daquela iniciativa…». 

Cavaco assumia-se particularmente preocupado com o grau de proximidade entre o Governo português e o venezuelano. «Estava cada vez mais desconfiado do seu entusiasmo em relação aos negócios com Chávez», acrescenta. 

Depois de Chavéz insultar o rei Juan Carlos, Cavaco Silva mostrou preocupações diplomáticas acerca da referida amizade entre os dois políticos.

Sócrates foi advertido por Cavaco Silva. O Presidente não receberia o venezuelano e tudo devia ser feito para que as suas passagens por Portugal se limitassem a escalas. 

Noutra reunião, o primeiro-ministro informou que Hugo Chávez chegaria no dia seguinte, com refeições e passeios combinados, assim como assinatura de contratos. «Tudo bastante diverso do que antes me dissera. Mais uma vez fiquei com a dúvida sobre se podia confiar na sua palavra», admite Cavaco, que também viu o primeiro-ministro socialista esconder-lhe uma das visitas que o presidente da Venezuela faria a Portugal. 

Cavaco refere-se múltiplas vezes à necessidade de «defender os interesses da numerosa comunidade portuguesa na Venezuela», o que, perante um Chávez que «não era uma personalidade de fiar», criava uma situação forçada de «ambiguidade».

 Sócrates terá ripostado: «Para aumentar as exportações portuguesas, farei tudo o que for possível, até correr o risco de Chavéz fazer declarações inapropriadas». Cavaco Silva mostrara novo desagrado por Chávez dizer que «a Chanceler Merkel era a sucessora do regime nazi alemão».

O capítulo termina com a crença de que «os riscos económicos e políticos deste envolvimento eram muito elevados». «Não me enganei», conclui.