& etc. Crónicas de um país subterrâneo

A BNP acolhe a partir de amanhã uma exposição sobre o & etc, um dos raros periódicos que impôs a crítica como um serviço público essencial à liberdade

O país sempre pareceu pouco a um bom número e, talvez por isso, a certa altura fugir tenha sido a nossa maior vocação, descobrindo pelo caminho tudo o que fosse diverso. É fácil passar por louco quem, enclausurado, tomou a ganância da liberdade. Depois, também é certo como só lá fora ganha força o mais intraduzível dos nossos sentimentos, a tal saudade. Essa que, para quem fica, ao invés de ganhar cor e perfume, florescendo, nasce para dentro, como unha e infecta a carne toda que pode. É assim que para muitos o país é um “remorso”, o mesmo de se ter a alma muito grande para acabar servindo de gaiola a uma mosca.

Que não haja memória do que se fez neste país – de bom como de mau – só leva a que tudo mergulhe num feroz segredo, uma incapacidade de ser presente, sendo tudo embrulhado em teias de aranha e remetido a um hipotético futuro. A sensação, quando se descobre algo, é de que tudo foi há mais tempo, embora essencialmente as coisas permaneçam na mesma. Também por isso, a arqueologia de um passado não muito distante se torne mais compensadora que aquele ensejo, renovado a cada geração, de fazer algo de novo ou original. Infelizmente, isto também quer dizer que só raramente alguém neste país tem direito a intervir no seu tempo. O que nos diz que à cultura de cada época pertence um país subterrâneo, os vasos comunicantes que se ligam num sentido mais profundo do que aquele que é respirado à superfície.

“Criticar: eis a nossa função positiva” – foi este o signo sob o qual soube inscrever-se a acção inconformada do periódico & etc, nos 26 primeiros números, enquanto suplemento literário do Jornal do Fundão (1967-1971) e, numa fase posterior, autonomamente, como magazine cultural, contando com mais 25 números (1973-1974) em vésperas da revolução. Vitor Silva Tavares (VST) teve o enormíssimo mérito de criar as condições para que nascesse um espaço de não resolução, “de negação pura e dura”, uma margem de afastamento em que a ruptura não se organiza em cerco salivante às “zonas de ocupação”, ajudando às ruínas, com a ambição de se lhes revezar.

Havia por parte do editor, desaparecido em 2015, uma consciência clara de que a urgência fundamental num país aclimatado à sufocação, em que a lei da gravidade não apenas puxa para baixo mas ainda vertigina de forma concentracionária, mais do que propor alternativas, mais do que uma vontade subordinada, é devolver à liberdade os seus instintos, a natureza que lhe corresponde no estado selvagem.

Fiel à embrionária motivação de resistência ao salazarismo, a “folheca cultural q.b.” levou a subversão à letra, traduzindo-se naqueles gestos que, na moagem das etiquetas, são entendidos como os mais feios por porem em campo a matilha com faro para as falhas de carácter, o oportunismo, a tacanhez, a lógica censória que sobreviveu à vontadinha ao perfume dos cravos. VST regozijava-se pelo facto de, não tendo obtido grande acolhimento junto da “saraivada de ‘revolucionários’ curtos que o 25 de Abril fez desabrochar”,  este magazine ter definido um campo de acção animado pela tal ganância da liberdade, imprevisível e “pluralmente sectária, ao livre arbítrio e fisgada própria dos seus sequazes – capelinha sem cisma à vista por ausência de dogma & papa”.

O talento tão particular de VST, e aquele que levou a que a & etc persistisse depois enquanto editora, com um catálogo de quase 300 títulos, foi a capacidade de manter-se empenhado na sua operação subversiva e que contou com a colaboração de centenas de autores, tradutores, ilustradores, capistas e paginadores, cada um sendo, à vez, necessário para um esforço conjunto para que a crítica cumprisse os seus efeitos regeneradores de um amorfo tecido cultural e social. VST tinha a noção de como a abulia e as conveniências da auto-censura são muitas vezes mais perversas do que uma ditadura para deitar por terra qualquer ambição revolucionária. Assim, afirmou a crítica como um imprescindível “serviço público”, não podendo estar “desfasada do tempo, do lugar e dos homens que serve”. 

Honrando o exemplar cuidado estético aliado à “claridade das ideias” que o & etc trouxe para vias de facto com o bonançoso meio cultural português, inaugura amanhã uma exposição na Biblioteca Nacional dedicada ao periódico que antecedeu a editora. Paulo da Costa Domingos (PCD), comissário da exposição e responsável pela feitura do catálogo, fará a apresentação deste pelas 18 horas. 

Tendo partido de uma iniciativa de Ricardo Álvaro, mais do que o aval de VST, esta ainda foi gizada sob a sua orientação, e foi a PCD que confiou a organização. Sem nos ter sido possível visitar a exposição, só podemos deter-nos no catálogo, que, de resto, não deve ser apreciado isoladamente, mas como prequela do livro “&etc: Uma Editora no Subterrâneo”, uma edição da Letra Livre que conta com textos de vários dos autores que, ao longo dos anos, colaboraram na “mais duradoura e emblemática editora paralela portuguesa”. Além da reprodução de algumas das mais cativantes capas do periódico, recuperam-se também algumas das colaborações, que são ilustrativas do não alinhamento e da diversidade de figuras que quiseram acompanhar Vitor na sua acção. Hernâni Cidade, Mário Dionísio, José Blanc de Portugal, José Augusto França, Vergílio Ferreira e José Cardoso Pires deram a sua contribuição ao lado de, entre outros, Manuel de Lima, Ana Hatherly, Herberto Helder, Ernesto Sampaio e Luiz Pacheco.

Se há algo a lamentar é o facto de além dos textos de VST – de alto calibre estilístico e poderoso alcance no arrasador diagnóstico de uma cultura que não só frustrou a revolução como, em muitos aspectos, se tornou um alibi para os novos desiquílibrios que se impuseram – e do ensaio em que PCD contextualiza social e historicamente o surgimento deste periódico, além dos testemunhos de três dos colaboradores – Almeida Faria, Alberto Pimenta e Jorge Silva Melo –, falta a tal pluralidade que se exigiria a um olhar ulterior, e, mais que isso, crítico. Sente-se a falta de uma visão deste tempo, um exercício difícil e que não cedesse a uma exaltação de si e à construção de uma mitologia para uso doméstico e contentinho. O que de melhor nos diz um documento como este é que o mesmo empenho é hoje ainda mais necessário. E se é certo que há hoje muitos muito leais admiradores, “ser-se admirador não é difícil – não é o mais difícil”, como notou certa vez Cesariny a propósito do susto da obra de Vieira da Silva.

O risco, agora que VST desapareceu, é surgirem demasiados admiradores, tão leais, tão uns atrás dos outros, em fila. Ao invés de um esforço de conjunto, de um âmbito de participação e crítica que assente “na existência de uma cultura (que é conhecimento e não cartilha decorada), bem como na independência de juízo”, o exemplo se dissolva num enviuvado cortejo, e os supostos herdeiros nos lembrem o jovem descrito por Agustina que tinha Kafka como mestre. Aquele que o escuta, que escreve cadernos de memórias, e “é um cadáver qualificado de generoso e útil, e, na realidade, putrefacto de admiração”.


 

O VITOR SILVA TAVARES QUE RECORDO

[Testemunho de Rui Caeiro, colaborador de uma década na editora & etc]

António Sérgio escreveu um dia (cito de memória) qualquer coisa como isto: quando eu morrer, se quiserem homenagear-me, façam-me uma crítica.
O Vítor Silva Tavares dos últimos tempos não se acautelou da mesma maneira, e é pena. Em vez disso, ele mesmo proporcionou, desdobrando-se em entrevistas a diversos órgãos de comunicação – jornais, rádio, TV, até o cinema – dados diversos para a sua hagiografia. Depois da morte, com a ajuda do pendor crédulo e sentimentaloide que é o dos portugueses, passou a existir em torno do seu nome uma peculiar e suspeita unanimidade: o Vítor virou santinho.
E ele merecia mais do que isso. Ele merecia, precisamente, uma crítica.
Era humano, muito humano o Vítor, e não foi insensível à lisonja alheia nem soube distanciar-se de alguma vaidade própria. Essa faceta acentuou-se, a meu ver, nos últimos tempos de vida.
Por inteiro isentas desta pecha estão, a meu ver, a sua acção na velha editora Ulisseia, no suplemento &etc do Jornal do Fundão e, logo após, na própria revista com o mesmo nome, e estão os primeiros anos da editora &etc, anos que coincidem, a traços largos, com a preciosa colaboração que lhe foi prestada pelo Aníbal Fernandes e pelo Manuel João Gomes.  Posteriormente a isso, há que reconhecer, o nível de exigência de publicação dentro da editora baixou um tanto. Deve fazer-se ao Vítor a justiça de reconhecer que ele também publicou algumas inutilidades, algumas coisas que eram apenas “coisinhas”. À vontade estou para o dizer, porque dentro das referidas até há um livro meu…
Seja como for, o Vítor de quem sinto mais saudade não é nem este recém-homenageado nem é o improvisado santinho. Para mim ele continua a ser uma pessoa de carne e osso, com as suas qualidades – especiais qualidades, diga-se, haja em vista uma grande generosidade – e alguns vulgares defeitos, para variar. Ele continua a ser aquele Quixote que numa cave escura da rua da Emenda, sempre envolto numa nuvem de fumo de cigarro, recebia os aspirantes a  autores. E assim o vejo ainda, inseparável da caneta e do cigarro, com um original à frente, sugerindo alterações e supressões, exactamente como o próprio jovem autor, por sua iniciativa e no seu interesse, deveria ter feito, se soubesse.
Esse curioso fenómeno de desdobramento, essa rara capacidade de se meter na pele de outrem, não a vi em mais ninguém nem ele a pôde ensinar. Levou-a consigo.