Dulce Pontes: “A minha relação com a música é sempre, e acima de tudo, espiritual”

Há nove anos que Dulce Pontes não lançava um novo álbum. Uma peregrinação com laivos de calvário? Nem por isso. 

Dulce Pontes: “A minha relação com a música é sempre, e acima de tudo, espiritual”

Antes uma viagem, tranquila, mas convicta, de alguém que quer – e pode – fazer as coisas à sua maneira e ao seu ritmo. É esta mulher, que caminha para os 48 anos mas a quem apenas agora apareceu o primeiro cabelo branco, que lança, a 28 de fevereiro, “Peregrinação”. Um álbum duplo, que fez sobretudo a partir do estúdio-catacumbas que criou na sua própria casa em Bragança. Um local onde se perde para se encontrar. Tal como faz na música.

Foram muitos anos sem gravar nem apresentar um álbum ao público. Porquê tanto tempo para terminar esta “Peregrinação”?

O álbum tem vindo a ser parcialmente apresentado ao vivo, não só em Portugal mas sobretudo fora. Porquê tantos anos? Porque não? Porque tenho a liberdade de poder cantar ao vivo temas que ainda não estão gravados – gosto de fazer o processo ao contrário e tenho podido fazê-lo. E depois então gravo. Uma parte significativa deste álbum já foi tocada – não todo porque é duplo e tem muitos temas. Mas nestes cinco anos este álbum foi desenvolvido também ao vivo e portanto não tenho essa sensação de afastamento. Há uma série de historias à volta dos temas, de situações, de encontros com pessoas, de momentos meus sozinha, de poder gravar em casa, de ter madrugadas inteiras a experimentar sonoridades enquanto os outros dormiam. Foi um tempo bom, de desenvolvimento. Porque não comecei logo com a ideia de fazer um álbum chamado “Peregrinação”. O próprio trabalho foi ditando o caminho. A determinada altura achei que isto parecia uma peregrinação e ficou esse título.

Por que pareceu uma peregrinação?

Pelos caminhos percorridos. Mas também porque a minha relação com a música é sempre, e acima de tudo, espiritual. No entanto, esta não é uma peregrinação religiosa, embora eu tenha a minha fé. Estamos sempre em busca, sobretudo através da arte, de uma particulazinha de infinito, de tocar o divino. Daí a busca pela perfeição das coisas, que nunca conseguimos – por isso é que somos humanos e ainda bem que assim é. Mas queremos ter esse contacto com alguma coisa que nos transcende e a música é o meio por excelência mais direto à alma. Ultrapassa qualquer tipo de barreira.

Tem a sua fé, mas não é religiosa?

Não. Mas por acaso esta “Peregrinação” passou por um espaço religioso. Tive um convite para cantar nas Carmelitas de Milão.

Como assim?

Uma história incrível. Este disco está cheio deste tipo de situações. Havia uma cantora italiana, a Giuni Russo, que já faleceu, mas que chegou a vir a Portugal à minha procura mas nunca nos encontrámos, e ela, embora nunca tenha vivido em clausura, foi considerada pelas irmãs uma carmelitana d’amore. Quando me fizeram o convite para celebrar os 500 anos de Santa Teresa de Ávila não sabia nadinha sobre ela nem sobre a Giuni Russo – mas recebo o convite e oiço um tema lindíssimo dela sobre Santa Teresa de Ávila, vou pesquisar sobre ambas. E começámos a trocar, eu e as Carmelitas, informação. Fiz questão de lhes dizer que iria lá, e que tenho fé em Cristo, que acredito em Deus como uma força criadora e na mãe-terra, mas não me consigo encaixar em nenhuma religião específica. Só na religião música. Ou seja, fiz questão de lhes dizer que era cristã, mas não católica. Mas elas quiseram que fosse na mesma.

É normal convidarem-na para cantar em sítios tão inusitados como um convento carmelita?

Acontecem-me coisas assim. Mas neste caso teve a ver com o facto de ter existido a Giuni Russo que gostava muito de mim e das Carmelitas. Foi lindo. Adorei conhecê-las. Transmitem uma paz impressionante.

Esse encontro acabou por fazer já parte desta peregrinação rumo a este álbum, que foi gravado em Bragança, mas também em Lisboa, em Buenos Aires, em Cuba, locais que se denunciam nas músicas, até pelos cúmplices a que recorreu, como Amália Rodrigues, Ary dos Santos, Alain Oulman, José Afonso, Fernando Pessoa, Charles Aznavour, Astor Piazzolla, Carlos Gardel, entre outros. Este trabalho é, de alguma forma, um best off de pessoas que têm marcado a sua peregrinação musical?

Não lhe chamaria best off. Foi acontecendo naturalmente. Sempre tive uma paixão por música clássica e já tinha experimentado fazer uma versão cantada do “Asturias”, do Isaac Albeniz, mas sem poema – isto nuns recitais que costumava fazer nos intervalos dos meus próprios concertos. E fiquei sempre a pensar cantar o tema mas com poema. Entretanto conheci o Raúl Carnota e ele escreveu-me um poema. Foi um querido. Já não o ouviu cantado porque faleceu antes.

No fundo foi como se nestes anos em que, para algumas pessoas estava afastada das gravações, tenha estado a montar as peças do puzzle que resultaram neste álbum duplo?

Sim. Para além da vida em si mesma. E dos concertos, em que, como disse, fui experimentando muitas coisas ao vivo. Aliás, quando montei o novo concerto, já tinha uma série de temas em perspetiva – alguns deles acabaram por nem entrar no disco, porque fiquei com material que nunca mais acabava. No início do ano passado estive uns meses a ouvir tudo e a tentar que fizesse sentido para quem fosse ouvir. Porque este não é um conceito fácil de conseguir transpor para a música. Fiz puzzles na minha cabeça e num papel, com uma linha de tempo, para depois poder pôr os temas de acordo com o que achava que poderia transmitir o que queria a quem ouvisse esta viagem. Ouve uma altura em que pensei misturar os temas todos, fossem em que língua fossem, mas percebi que não funcionava.

Foi assim que nasceu a ideia dos dois álbuns, o “Nudez”, em português, e o “Puertos de Abrigo”, em várias línguas?

Sim, só dessa forma é que fazia sentido. O “Nudez” é um disco que anda ali… Há sempre a influência do fado, o fado persegue-me. Às vezes é bom, outras vezes não. Daí ter escrito um tema que diz “não sou eu quem canta o fado, ele é que me canta a mim.” Mas o fado está no meu ADN, esteve na minha família. Só que tive necessidade, sobretudo na altura em que a Amália faleceu, de me afastar do fado.

Porquê?

Porque não queria, de forma alguma… Quando amamos os mestres devemos respeitá-los sempre.

E sentia que ser apelidada de nova Amália não era respeito?

Não era respeito nenhum, nunca na vida. Não era nada. E sobretudo não era eu. Fiz sempre uma força enorme para contrariar essa situação. E sinto que consegui fazê-lo. Embora exista muita gente que gostava que eu gravasse um álbum só de fado. Mas eu não estou fadista todos os dias. A própria Amália cantou noutras lingas e outros géneros. Foi por isso que fiz questão de gravar o “Primeiro Canto”, que foi um álbum que me abriu portas e outros caminhos, que me fez ter mais autoestima enquanto compositora e arranjadora. Uma das coisas que me frustrava quando comecei a sair de Portugal é que me diziam sempre “this is a wonderful project but we don’t know where to put you”. Parecia que eu não tinha um cantinho onde ficar. Entretanto, muito por iniciativa do Peter Gabriel e da sua Real World Records, a world music ganhou importância. Só aí passei a ter uma prateleira. Mas do ponto de vista do público que me tem acompanhado não há essa coisa. Eles querem ouvir a Dulce Pontes, não estão a analisar onde me encaixo musicalmente. Ainda assim, ainda sinto que continuo um pouco fechada.

Continua realmente ou são os outros que continuam a atribuir-lhe essa carga?

Não sinto como carga. Agora, fora de Portugal, tento mil vezes explicar que folclore não tem nada a ver com fado, mas é uma baralhação. Acham que é tudo fado. Assim como há a ideia de que em Espanha só há flamenco ou na Argentina só há tango. E como a Amália teve um impacto fortíssimo e único no mundo inteiro, quando aparece uma cantora portuguesa, fazem a ligação a Amália.

Ainda mais quando essa cantora teve como primeiro grande cartão-de-visita um tema imortalizado por Amália.
Mas a Amália cantava a “Canção do Mar” com outro poema, o “Solidão”. Aliás, há tantas versões deste tema!

Continua a cantar a “Canção do Mar”?
Canto como encore. Se não cantar o pessoal fica triste. E eu também, eu gosto do tema. Já fizemos não sei quantos arranjos diferentes ao longo dos anos – agora está numa fase celta.

Regressando a este “Peregrinação”. Diria que é como se em “Nudez” viajasse dentro de si e em “Puertos de Abrigo” viajasse pelo mundo?

Exatamente. Há uma peregrinação interior e outra exterior. Mas depois há temas onde isso é simultâneo.

Como lida com o facto de “Nudez” ser um álbum de exposição da intimidade e do pensamento, uma vez que, nos últimos anos, tem fugido disso?

O que quero é não perder nunca a capacidade de, em palco, me pôr em nudez total e absoluta. Tenho tanto medo de perder isso. Por isso começo os concertos sempre sentada ao piano. Porque esse é o meu lado mais íntimo. Nesse sentido não tenho qualquer tipo de pudor. Muito pelo contrário.

Já a segunda parte deste álbum, “Puertos de Abrigo”, é a tal peregrinação para fora de si, que passou por muitos músicos e países. Isso significa que não virou uma eremita enfiada no estúdio que montou na sua casa, em Bragança?

Não, não. Até poderia ter estado ainda mais tempo sozinha! (risos) Houve uma grande parte deste trabalho que foi feito numa solidão ótima, que me permitiu experimentar instrumentos improvisados, como panelas de pressão e garrafões de plástico atados uns aos outros, ou as cordas do piano como se fossem uma harpa. Ter um espaço em casa e ter o tempo – normalmente era sempre tarde, quando os miúdos já estavam na cama e a casa em silêncio – permitiu-me experimentar. Coisa que, quando vamos para um estúdio, com horas marcadas e já tudo ensaiado, não é possível. Ali estive horas a fio a experimentar coisas. Nunca tinha trabalhado com este registo. Neste processo percebi que não é preciso aquilo que achamos que é preciso, o estúdio xpto e o material xpto. Se as coisas forem bem captadas de raiz, não interessa se estamos em Bragança ou no estúdio de Abbey Road.

É a Dulce Pontes a dizer que quer fazer as coisas à sua maneira?

Não é uma coisa de miúda a fazer birra e a bater com o pé no chão. O que estou a dizer é que é possível gravar sem ser em grandes estúdios. É possível fazer diferente e com qualidade. Ali tenho um espaço que antes era uma adega, chamo-lhe catacumbas porque não tem janelas, é todo em xisto, o teto é em madeira, tem uma grande porta de madeira com uma tranca antiga. E tem uma acústica perfeita. Não estou a dizer que não gravo mais estúdios. Mas se me perguntarem prefiro gravar em casa. Gosto mais, sinto-me bem lá. E tenho todo o tempo. E a autossuficiência de fazer sozinha.

O resultado prático disso é que, neste álbum, faz um pouco de tudo.

Também há muitas outras pessoas que participam. Mas eu assumo muitos papéis diferentes porque, lá está, estava lá em casa e tinha tempo para experimentar. Fui fazendo, como uma criança que está a brincar e quer ver como resulta o que está a fazer.

Sente que, de alguma forma, o mercado nacional a ostracizou por querer fazer as coisas à sua maneira?

É possível que sim. Mas há coisas que não acho absolutamente nada justas, nadinha. Não consigo compactuar com propostas de multinacionais que querem… As pessoas nem sonham, mas se um artista receber 20% de um royalty, e isto do preço de fabrico, já é um royalty alto. Se, ainda por cima, vão buscar percentagens aos concertos, os artistas vão viver de quê? Isto é um roubo! Por uma questão de princípio não vou alinhar nisto. Não dependo dessas coisas e já lá vão quase 30 anos. Vou peregrinando ao meu ritmo. E sobretudo tenho liberdade para fazer aquilo que gosto, da forma como gosto, com quem gosto. Isso faz-me sentir feliz com aquilo que faço. No dia em que deixar de me sentir feliz com aquilo que faço, vou fazer outra coisa qualquer. Vou dar aulas.

Costuma dizer que tem pelo na venta.

Tenho, tenho. Tenho a minha forma de ser. Sou carneiro, tenho o infinito nos cornos. Quando meto uma coisa na cabeça, vou, mesmo que bata com a cabeça contra a parede. Faz parte do processo de aprendizagem. Mas estou muito melhor, já não sou tão impulsiva. Estou muito mais calminha, é outro tempo de vida.

São os ares de Bragança que a têm acalmado?

É o tempo. Agora já sei que há coisas com as quais não vale a pena chatear-me. Porque depois onde é que fica a energia para criar coisas? Criar é que é importante, não é perder energia com o que não interessa. É uma perda de tempo. E depois, para mim, a minha vida familiar é muito importante.

Tem dois filhos.

Sim, a Maria e o José. Ele já fez 15 e ela tem oito. Nunca estou mais de 15 dias fora de casa. É importante para mim estar com os meus filhos. É uma necessidade, são o meu equilíbrio. Eu não sou nem quero ser só a Dulce artista. É bom poder fazer o que gosto, mas que vazio seria a minha vida se não tivesse tido filhos! Seria um vazio terrível. Não gosto nada de estar muito tempo sem os ver e não é aquela coisa da mãe galinha, é mesmo saudade de viver o dia-a-dia com eles, de lhes preparar as refeições, de lhes arranjar a roupa, de brincar com eles…

E de cantar para eles?

Quando eles estão a brigar ameaço-os que canto a ópera. Ficam logo calminhos.

É curioso contar isso, porque, ainda hoje, há muita gente que, quando fala de si, a critica por ser uma cantora com tendência para gritar. Como é que ouvir isto a fazia sentir nos primeiros anos?

Nos primeiros anos eu não percebia uma data de coisas. Não percebia quando me diziam que não podia mexer-me, que não podia fazer assim [franze a testa] a cantar. E eu não percebia, sou uma pessoa, mexo-me, tenho expressão. Logo aí comecei a rebelar-me um pouco. Depois tive uma escola muito boa – tive uma ótima professora de canto, a Rosarinho [Maria do Rosário Coelho], que teve uma carreira como soprano lírico, e que foi quem me deu toda a técnica vocal que tenho e mantenho até hoje. Nunca tive medo de me aventurar. E por que é que havia de me limitar? Depois dela tive uma outra aprendizagem enorme: o Ennio Morricone. Vou contar uma história. (risos) Quando gravámos “Luz Prodigiosa” para o filme [“La Luz Prodigiosa”, de Miguel Hermoso], num estúdio em Roma, tinha estudado aquilo muito bem, porque havia pouco texto para muita música e portanto tinha de esticar o poema do Llorca todo para respeitar as notas todas. Entrei para a cabina, comecei a cantar e gravei ao fim de dois ou três takes. E o Ennio tem sempre um gesto – ainda agora estive com ele e é sempre tão bom, farto-me de chorar sempre que estou com ele, porque ele tem uma coragem e é um exemplo, mesmo com 88 anos – que é dar-me um beijinho na testa quando acabo de cantar. Saí da cabina e ele vinha com os olhinhos marejados e deu-me o tal beijinho. Fiquei toda contente porque percebi que ele estava feliz. Depois disto começámos a ouvir as gravações e o realizador do filme, que também estava no estúdio, começa a dizer que é a cena final do filme, que eles se estão a abraçar e que se calhar aquilo era muito forte. O Ennio põe os óculos na ponta do nariz, começa a inclinar-se para a frente e diz: “Ma questa cosa bisogna colloni! Capito?” O outro senhor calou-se logo. Não é que eu precisasse – porque sempre soube, graças à Rosarinho, qual é a diferença entre o canto e o grito – mas ouvir isto do Ennio Morricone…

Parcerias como a que há muitos anos tem com Ennio Morricone foram fundamentais para a reforçar perante uma série de inseguranças e até críticas?

Mesmo quando era miúda – porque comecei muito novinha – se me dissessem para não fazer algo, fazia uma introspeção e perguntava porquê. Quando me respondiam porque não se fazia, não entendia essa resposta. Não era teimosia, mas sempre fui uma pessoa intuitiva. Não quer dizer que não tenha errado muitas vezes. Mas sempre respeitei a minha intuição. Senti sempre que tinha de respeitar aquilo que sentia como certo dentro de mim. Mesmo que estivesse errado para outras pessoas.

Foi essa intuição que a fez recusar um convite para cantar com o Sting?

(risos) Foi precisamente no álbum “Focus”, que fiz com o Ennio. Falei com ele sobre um tema chamado “The Mission”, que acabou por ganhar o título de “A Rose Among Thorns”, e disse-lhe que havia um cantor de quem gostava muito, o Peter Gabriel, se ele me autorizava a contactá-lo para um dueto. O Ennio não conhecia o Peter Gabriel; e o Peter Gabriel também não conhecia o Ennio! Escrevi-lhe uma carta, juntei uns temas, ele respondeu afirmativamente e eu fiquei toda contente. Quando já estávamos prestes a gravar, a Universal Holanda, que na altura era a minha editora, diz que não pode ser porque o Peter Gabriel também queria ficar com o master e, apesar de o Ennio não se opor a isso, eles se opunham. E logo de seguida disseram-me que tinham uma ótima notícia para mim: o Sting cantaria comigo. Recusei. As vozes não combinavam da mesma maneira.

Foi aí que acabou a sua aventura com a Universal Holanda?

Acabou um bocadinho mais tarde. Aconteceram várias situações ali que me foram tirando energia. Nem queriam autorizar a gravação do “Focus” porque diziam que ainda tinha de gravar mais um álbum a solo antes! Só para ver o quão complicado aquilo foi tudo, comprei um foguete para celebrar o dia em que ficasse resolvido… Deu tempo para o foguete se estragar, tive de chamar os bombeiros para irem lá a casa buscá-lo. Foi um enorme braço de ferro. E eu não queria passar a vida em braços de ferro.

Essa experiência fê-la perceber que o universo das editoras não era para si?

A verdade é que comecei com o maior pirata de discos que havia neste país, e que entretanto faliu. Ele queria que fôssemos para Abbey Road gravar um disco de fados com orquestra. E eu disse que não era isso que queria fazer e expliquei-lhe qual era a minha ideia. Ele pediu umas demos e chorou quando as ouviu. Mas só assinei contrato para um álbum, isto no pós-Festival da Canção, apesar de termos gravado mais álbuns. Quando deixámos de trabalhar juntos apanhei a maior seca da minha vida de almoços e jantares com todas as editoras de Portugal para ver quem me editava. Mas ninguém se chegava à frente. Em 1998/99 gravei o “Primeiro Canto” que foi um grito do Ipiranga em relação a tudo isto.

Quando olha para esse primeiro álbum, “Lusitana”…

Tem uns três temas de que gosto… Não era nada daquilo que queria fazer, mas havia a pressão para ser comercial.

E identifica-se com a miúda que em 1991 foi ao Festival da Canção e ganhou?

No meu íntimo sou sempre essa miúda. A minha essência é a mesma. Já não faço é o pino. Nessa altura fazia sempre o pino antes de entrar em palco porque tinha lido que levava o sangue ao cérebro. Agora é visualizar-me a fazer o pino com aquele vestidinho que usei no festival…

Começou muito cedo a ter contacto com a música.

Sim, aos sete anos. Foi quando comecei a ter aulas de piano e, ao mesmo tempo, comecei a poder ouvir as coletâneas que estavam lá em casa e que eu queria ouvir. Música clássica, Amália, Fernando Maurício, música anglo-saxónica.  Os meus pais deram-me acesso a música muito cedo. Tinha aulas de piano com a professora Lígia Serra e ia ao Conservatório fazer exames como aluna externa.

Quando começou a ter aulas de piano?

Houve uma grande bronca lá em casa, quando tinha acabado de fazer seis anos… Uma briga entre mim e o meu irmão por causa de um pianinho branco, que estávamos sempre a disputar. Um dia o meu pai zangou-se com aquilo tudo e adeus piano. O meu irmão ultrapassou aquilo, mas eu não. Todos os dias chorava a dizer que queria o piano. Para me calarem deram-me um xilofone. Lembro-me perfeitamente de como comecei a perceber que podia reproduzir melodias que ouvia. Comecei com o “Malhão Malhão”, depois o “Parabéns a Você”. Só que o xilofone não tinha sustenidos então faltava-me aquele meio-tom. Um dia a minha mãe deu comigo a tocar e perguntou-me quem me tinha ensinado e eu disse-lhe que estava a aprender sozinha. A partir daí ganhei um órgão pequenino que já dava para juntar a mão esquerda. E depois levaram-me para uma escola de música no Montijo. Também foi muito importante ter tido formação em expressão corporal e dança com a Anabela Gameiro. Foram pessoas fundamentais para o meu caminho.

Portanto, por essa altura, já tinha percebido que era artista?

Não tinha essa consciência. Só tive a consciência do canto a sério, aos 18 anos, quando fui fazer um teste de voz na Namouche. Também foi só a partir dessa altura comecei com aulas de canto. Apesar de antes já ter uma banda de rock urbano, com temas originais. Era muito giro. Lembro-me que uma vez me perguntaram se queria gravar um álbum e eu disse que só se fosse com a banda.

Mas se era assim o que a levou a ir fazer um teste de voz a uma produtora?

Vi um anúncio de jornal. Na altura estudava e dava aulas de dança a crianças, quando vi um anúncio que procurava jovens entre os 18 e os 24 anos, que gostassem de cantar, dançar e representar. Recortei e andei com aquilo na carteira não sei quanto tempo até que mostrei à minha mãe que me disse para telefonar. O meu pai disse logo que não, que essas cosias dos jornais eram muito perigosas! Mas acabei por lá ir com o meu pai. Nunca tinha visto um piano de cauda inteira Petrof e fiquei deslumbrada.

Daí vai para o teatro Maria Matos, onde participou na comédia musical “Enfim Sós”.

E noutras. Estive dois anos no Maria Matos. Foi muito giro. Estava com a Maria Vieira, o Eugénio Salvador, a Luísa Barbosa… Custou-me imenso deixar de dar aulas, mas teve de ser. Ainda hoje, de vez em quando, recebo mensagens a dizerem “olá professora”. Adoro. Mas senti que tinha ali uma hipótese num milhão.

Daí vai trabalhar para o Casino Estoril.

Estava no Casino todos os dias, com a Rita Guerra. Começámos por fazer a hora do jantar, ela vestida de preto no piano preto e eu vestida de branco num piano branco. Depois fomos promovidas e passámos a fazer o show principal, “Licença para Jogar”. Todos os dias estava no Casino a cantar Shirley Bassey. Já não podia ouvir aquilo. Até que um dia lá apareceu o Júlio Isidro, que pensava que eu era inglesa. Foi ele que me propôs integrar o programa que ele estava a fazer, o “Regresso ao Passado”.

Trabalhava muito mas ainda não era conhecida do grande público.

Isso só aconteceu quando passei a estar na televisão. Mas eu não percebia nada do que se estava a passar, só queria estudar os temas que tinha para cantar. A verdade é que eu saía do Casino e ia dormir, acordava e ia gravar, saía do estúdio e ia para o Casino outra vez. Todos os dias, sem folga a não ser a 24 de dezembro. Na altura aluguei uma casinha de bonecas no Monte do Estoril porque tornou-se impossível ir para o Montijo todos os dias. Só quando terminou o contrato com o Casino comecei a ter mais tempo e aí tive um choque tremendo quando percebi que as pessoas olhavam para mim na rua. Mas decidi que não ia deixar de ser eu ou deixar de fazer as coisas que gostava de fazer. Desde muito cedo fui conseguindo manter essa normalidade.

Como foi parar ao Festival da Canção?

Durante o “Regresso ao Passado” o Zé da Ponte convidou-me.

E a partir daí mudou tudo?

Não. O boom não foi aí, foi com o meu segundo álbum, o “Lágrimas” (1993). Com o festival o que aconteceu foi que, depois, nenhuma editora queria gravar comigo. Só lancei o meu primeiro álbum, “Lusitana”, um ano depois do festival. Ia na rua e as pessoas perguntavam-me pelo meu álbum e eu dizia que não existia porque ninguém queria gravar comigo. Ninguém acreditava.

E o que é que pensava dessa situação?

Pensava que era ridículo. O Zé da Ponte dizia-me: “Miúda, as pessoas dizem que cantas demasiado”. Eu não percebia o que era isso de cantar demasiado. Foi um balde de água fria mas não foi por causa disso que deixei de acreditar. Mas não foi tudo um mar de rosas.

Sente que, de alguma forma, muitas vezes se dificultou o seu próprio caminho?

Sou um bocado kamikaze por natureza.

Quando se faz uma peregrinação a ideia é chegar a algum lado. E no seu caso, quando falta uma semana para esta “Peregrinação” chegar às lojas, onde quer chegar?

Quero continuar. Sempre. A peregrinação é eterna. Vou fazer 48 anos este ano. Apareceu-me agora o primeiro cabelo branco. Mas quero continuar a ter capacidade de sonhar e de ser miúda. Se assim não for fico uma chata velha e casmurra. E não quero isso. Claro que tenho os meus momentos de 88 anos. Mas corto logo com isso. Continuo a portar-me como me portava quando andava a descobrir os sons no xilofone que os meus pais me deram.