Como a Hungria se tornou protagonista para o projeto europeu

1. Um Trajecto Peculiar O leito estará a questionar-se: o que poderá a Hungria oferecer à Europa? Para responder a essa questão, será oportuno revisitarmos uma outra época. A era de uma Europa dividida em dois blocos. Estamos na década de 80 e por toda a Europa do Leste paira um desencanto generalizado sobre o…

1. Um Trajecto Peculiar

O leito estará a questionar-se: o que poderá a Hungria oferecer à Europa?

Para responder a essa questão, será oportuno revisitarmos uma outra época. A era de uma Europa dividida em dois blocos.

Estamos na década de 80 e por toda a Europa do Leste paira um desencanto generalizado sobre o ‘paraíso dos trabalhadores’, que teima em não chegar. A Hungria não é excepção. De Budapeste, a sombra de Estaline parece começar a dissipar-se, Gorbachev lidera o Império Soviético com um pulso menos firme e a Cortina de Ferro já não parece tão intimidante como antes. O calendário gregoriano aponta para o ano de 1989, e um jovem de 27 anos, de seu nome Viktor Orbán, discursa. Um ano após ter fundado o movimento liberal que daria origem ao partido que ainda hoje lidera (Fidesz), Orbán convidava os russos a saírem.

A última vez que algum jovem saído da universidade tinha feito o mesmo, tanques soviéticos pisaram solo húngaro, manchando-o com o sangue dos mártires da revolução falhada de 1956. Daí que vários membros e apoiantes da nomenklatura húngara tenham apelidado o discurso do jovem rebelde como um acto naïf e irresponsável. Poucos meses depois, eles mesmos testemunhavam e supervisionavam o início do fim da ocupação soviética na Hungria. Com um misto de coragem e timing, Orbán capturava a atenção do seu país.

Em menos de uma década (1998) tornar-se-ia primeiro-ministro. Aos 34 anos vence um sistema dominado por ex-comunistas – agora ‘convertidos’ a um modelo diferente, depois de uma transição confortável que lhes permite manter as posições de poder nos media, nas universidades e na economia –  e por liberais coligados a esta ‘nova’ esquerda. Ambos estavam marcados por uma aura de corrupção e descrédito. Orbán perderia as duas eleições seguintes, em 2002 e 2006, para os mesmos protagonistas, que voltaria a vencer decisivamente em 2010 e 2014, alcançando mandatos com maiorias qualificadas.

2. Novo Discurso, Novo Trajecto

Se o discurso que proferiu em 1989 o catapultou na política nacional, um outro discurso, no ano de 2014, capturou a atenção mediática europeia. Desta vez, o alvo das suas críticas não era o modelo soviético, mas o regime liberal, que defendera na primeira ocasião. O sentido da crítica era o mesmo: o modelo é obsoleto, não sendo capaz de produzir resultados e de permitir competir à escala global.

Entre as características dos regimes liberais que Orbán parece criticar, encontramos o progressismo e o relativismo.

Visto à distância, o progresso é alcançado à medida que o indivíduo se ‘liberta’, isto é, à medida que o liberalismo vence as causas de libertação que ele mesmo elege.

Visto de perto, esta actividade pressupõe identificar os ‘opressores’, normalmente associados a uma expressão de colectividade (familiar, nacional e estadual), de antiguidade (de um passado que aprisiona o indivíduo) ou de algo inato (pois aquilo que é congénito não pressupõe uma adesão livre, mas uma herança que, por não ser fruto do ‘mérito’ individual, não merece ser conservada ou prezada).

Ao libertar-se das dimensões supra-individuais, ao relativizar as heranças identitárias, o indivíduo encontra-se cada vez mais ‘livre’. Mais livre para aderir aos ‘valores’, aos ‘clubes’ e às ‘modas’ que ele próprio escolhe para manifestar o seu individualismo.

A sociedade diz-se mais ‘progressista’. Progrediu porque mudou em relação àquilo que era. A mudança torna-se a melhor aliada do progresso. Ao longo do tempo, o liberalismo revela-se, então, uma ideologia que não consegue travar o ímpeto de mudança: a mudança pela mudança, indiferente aos resultados.

A este propósito, os críticos do liberalismo afirmam que ele funciona como uma roda: não pode parar de girar, de escolher causas de liberalização, sob pena de tombar para o lado. Não pode travar. Terá de continuar o seu percurso avançando, progredindo, elegendo novos destinos – novas causas de libertação, justificando a razão de existir.

3. O Projecto Europeu

Orbán nega esta liberdade. E acusa os políticos de Bruxelas e da Europa Ocidental de a usarem para «se libertarem das suas obrigações». Para o líder húngaro, a verdadeira liberdade existirá quando for «utilizada para exercer as obrigações e os deveres da melhor forma».

Quando olha para a Europa Ocidental, vê que em «meio século perdeu todo o ímpeto e a força para lutar». Está imobilizada e convertida num museu em céu aberto – «ainda que seja um óptimo museu», acrescenta.

Não sendo um federalista, Orbán considera que a União Europeia só poderá ser forte se existirem povos europeus com uma força e convicção que a sustente. Não quer o fim da União, mas sim reformá-la. Distancia-se então de Le Pen, Geert Wilders e Farange porque, ao contrário destes, que se dizem protectores dos valores liberais e eurocépticos, Orbán gravita em direcção a uma visão iliberal e europeísta.

Um dos argumentos mais marcantes da obra Antifrágil, de Nassim Taleb, defende que à medida que um organismo ou um regime se torna mais sofisticado – com todas as suas pequenas inovações, múltiplas interdependências e confortos – acaba progressivamente por perder a capacidade para enfrentar desafios sérios que o afrontam. A falta de capacidade do regime liberal, de que fala Orbán, terá que ver com isto mesmo: o regime fica condenado a produzir meias-soluções, remediando problemas, ao invés de vencer os desafios e os riscar totalmente da lista de preocupações. Ao arrastarem-se de geração em geração, tais heranças retiram tempo e vitalidade ao futuro, ocupando o presente com problemas passados.

Para um agente com o nível de envolvimento de Orbán, este revela uma rara aptidão de evoluir no seu posicionamento político. Mudar, não no sentido da sua filiação partidária. Mudou, na verdadeira acepção da palavra: nas ideias, nas questões de fundo, na mundividência e a contracorrente.

Orbán é um líder diferente. Um líder vertical, numa União que se pauta pela horizontalidade acrítica. Quando todos dizem que sim em uníssono, Orbán sabe dizer não, afirmando o que pensa. Pensa também de forma diferente. E nesta diferença oferece ao seu país e à Europa uma rota diferente. Por isso, uma nação com uma dimensão populacional e territorial semelhante à portuguesa consegue ser protagonista no palco continental.

Para melhor ou para pior? Depende a quem perguntarmos. O certo é que, com ele, a Hungria tornou-se relevante para o Projecto Europeu… Para outro Projecto Europeu.

Carlos M. G. Martins