Inquéritos arquivados na origem das suspeitas

O vice-presidente de Angola e um procurador português foram acusados por corrupção. O MP suspeita que o magistrado recebeu avultadas ‘luvas’ para promover o arquivamento de investigações em que aquele governante era suspeito. O SOL conta quais as investigações em causa.

São vários os arquivamentos de investigações ao vice-presidente de Angola que estarão na origem dos mais de 760 mil euros que o antigo procurador Orlando Figueira recebeu nos últimos anos – e que o Ministério Público acredita serem ‘luvas’. Segundo a acusação do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), a que o SOL teve acesso, o alegado esquema – envolvendo o magistrado português – terá sido montado também pelo advogado Paulo Blanco e por Armindo Pires, homem de confiança de Manuel Vicente.

O MP acusou, por isso, Manuel Vicente por um um crime de corrupção ativa, um crime de branqueamento e um crime de falsificação de documento; já o ex-procurador do DCIAP foi acusado por corrupção passiva, branqueamento, violação de segredo de justiça e falsificação de documento. No âmbito da denominada ‘Operação Fizz’, foram ainda acusados Paulo Blanco e Armindo Pires.

Pelas mãos do antigo procurador do DCIAP passaram vários inquéritos que visavam cidadãos angolanos e os que visavam o vice-presidente de Angola foram arquivados. Após vários arquivamentos, o procurador acabou por pedir uma licença sem vencimento de longa duração e foi trabalhar para o Millenium BCP, de cujo Conselho Geral de Supervisão Manuel Vicente fazia parte.

Mas não foi só a alegada oportunidade de trabalho que o MP entende ter sido dada como contrapartida pelo arquivamento. Segundo a acusação do MP, Orlando Figueira terá recebido através de contas não declaradas ao Banco de Portugal diversos montantes, que, somados, totalizam 763 429 euros.

As conversas que os investigadores acreditam ter dado início ao esquema começaram nos primeiros meses de 2011 e ganharam muita força com um convite feito a Figueira para que este fosse a Luanda participar no 32.º aniversário da PGR angolana (o português aterrou na cidade a 24 de abril). 

Nessa altura, Orlando concentrava já processos relativos a cidadãos angolanos, uma situação que foi agora justificada pela então diretora do DCIAP Cândida Almeida – ouvida como testemunha – com o facto de o procurador ter chegado há menos tempo e ter menos fluxo de trabalho. 

O inquérito do Estoril Sol

A 9 setembro de 2011, quando Manuel Vicente já teria conhecimento do descontentamento do magistrado português com os cortes salariais (assunto que o procurador terá abordado em Luanda), foi distribuído a Orlando Figueira um inquérito que tinha tido origem numa comunicação da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). 

Em causa estavam indícios de falta de cumprimento de medidas de prevenção de lavagem de dinheiro por parte da entidade Fund Box, enquanto gestora do fundo de investimento imobiliário fechado Fundor, e por parte do Banco Invest S.A., enquanto depositário dos fundos geridos pela Fund Box. Os alegados incumprimentos eram relativos à venda, por parte da Fundor, de frações autónomas do edifício Estoril Sol Residence.

Entre os que negociaram tais frações com a Fund Box, referem as procuradoras Patrícia Barão e Inês Bonina, encontravam-se nomes como os de José Morais Júnior, ex-ministro das Finanças angolano, Leopoldino Nascimento, general chefe da Casa de Segurança do Presidente da República, Luísa Govelty, mulher do general angolano Helder Vieira (conhecido por ‘Kopelipa’), Manuel Rabelais, ex-ministro da Comunicação daquele país), Manuel Vicente, à data presidente da Sonangol, Álvaro Sobrinho, então presidente do Banco Espírito Santo Angola, e Vladimir Sergeenkov, ex-governador de Região Federal Russa.

No âmbito dessas negociações, haviam surgido diversas transferências fracionadas e havia o risco de uma desproporção entre os pagamentos feitos (através de diversas sociedades) e os rendimentos oficiais de alguns visados.

A 27 de setembro, o procurador (que entretanto estava a ser assessorado  pela procuradora Teresa Sanchez) escreveu que tais factos eram suscetíveis de integrar os crimes de associação criminosa e branqueamento de capitais.

Segundo a acusação agora deduzida, poucos dias volvidos, já depois de ter dado pormenores ao advogado Paulo Blanco sobre o teor do inquérito, Orlando Figueira abre uma conta no Banco Privado do Atlântico Europa (BPAE) – 4 de outubro é o momento em que, segundo o DCIAP, Orlando aceitou entrar no alegado esquema. 

A partir daí e já tendo recebido uma parte do dinheiro – um financiamento de 130 mil euros na conta que abrira no BPAE -, o magistrado português começou a receber todas as justificações solicitadas à defesa de Vicente sobre a proveniência do dinheiro. O MP considera que todos os passos que estavam já a ser dados tinham em vista o arquivamento combinado. 

Um desses passos foi o pedido feito à Unidade de Apoio e Informação daquele departamento sobre se havia registos de alguma análise preventiva a Manuel Vicente. E havia uma, que viria mais tarde (julho de 2012) a dar origem a um outro inquérito.

Após toda a recolha de dados, o antigo magistrado decidiu proferir despacho a pedir à diretora do DCIAP a separação do caso de Manuel Vicente do inquérito que investigava os compradores de frações do Estoril Sol Residence, algo que acabou por acontecer. E a 12 de janeiro foi arquivada só a parte do vice-presidente de Angola, com a justificação: «É manifesto que tem capacidade financeira mais do que suficiente para adquirir a referida fração autónoma».

As procuradoras responsáveis pela ‘Operação Fizz’ lembram, porém, que Orlando Figueira não faz sequer qualquer referência às sociedades utilizadas por Manuel Vicente para fazer as transferências – Damer, Delta Shipping, Overseas UK e Portmill. 

A acusação, a que o SOL teve acesso, revela que quando foi proferido despacho de arquivamento foram depositados pela sociedade Primagest (de Vicente) 250 mil dólares nas contas do magistrado do Ministério Público.

O arquivamento do processo principal, onde estavam os restantes cidadãos angolanos e o russo, aconteceu apenas mais tarde.

Portmill comprou ações do BESA financiada pelo BES

Em Março de 2011 (antes da viagem a Luanda), já tinha ido parar às mãos de Orlando Figueira um outro inquérito que visava Manuel Vicente. Essa investigação foi aberta após denúncias dos ativistas Alfredo Parreira e Rafael Marques e em causa estava a compra de ações do BESA por parte da Portmill (num total de 375 milhões) com recurso a um financiamento do Banco Espírito Santo.

A Portmill, lembra o MP, era «utilizada por Manuel Vicente nos seus negócios particulares», tendo sido através desta que foi paga metade da fração no Estoril Sol Residence.

No inquérito de março, tal como na investigação à compra de frações do Estoril Sol Residence, a procuradora Teresa Sanchez não terá concordado com muitas das decisões do colega Orlando Figueira, mas acabava por aceitar dada a subordinação hierárquica. No início de 2012, o antigo procurador, contrariando a posição de Teresa Sanchez, encerrou o inquérito que havia sido aberto um ano antes, com um arquivamento: «Face à prova produzida, não se mostra minimamente indiciada a prática, pelo suspeito, de qualquer tipo de crime, designadamente, do denunciado crime de branqueamento de capitais.»

Nessa altura, já havia notícias que apontavam para a saída de Orlando da magistratura para ir trabalhar para o setor privado da banca angolana.

Reação de Manuel Vicente

O advogado de Manuel Vicente fez saber através de comunicado que à data dos factos era presidente da Sonangol e garantiu que o acusado «nada tem que ver com os factos do processo». 

Lembrou também que «nunca foi sequer ouvido». O que, no entender do advogado Rui Patrício, é uma «violação grave e séria e invalida o processo», já que a audição dos arguidos é uma «obrigação processual fundamental», argumenta.

Rui Patrício diz ainda que o vice-presidente angolano não foi notificado nem informado pelo Ministério Público da acusação.