‘Não vem de garfo que hoje é dia de sopa’

‘Ali na mesa ‘tá faltando ele / e a saudade dele / ‘tá doendo em mim’ – Jorginho do Império abre as hostilidades com um samba doce e triste dedicado ao pai.

não sabia que era possível mas cá estou a emocionar-me num show de samba e penso em como o preconceito é, de facto, pobre tão pobre de espírito. tal como nem todo o fado é triste, longe disso, também nem tudo o que vem do brasil nos tira o pé do chão. ‘sua conversa tinha tanto brilho / que mais que seu filho / eu fiquei seu fã’ – e neste ponto, uma pequena equipa de filmagens portuguesa e comovida, está longe de imaginar que acabaria a noite suada, trapalhona, mas feliz, com passos improvisados de dança que não lembrariam ao diabo durante uma trip de lsd.

o rio de janeiro que encontrámos é um triunfo contra mitos antigos. não é inseguro, não é sujo, não está atrasado em nada e o barato vai longe, bem longe daqui. o brasil prepara-se para receber o mundo inteiro em certames variados de impacto global e até leva a mal que se pergunte por crime. as favelas foram controladas e transmutadas em ‘comunidades’, os preços e as condições aumentam na mesma proporção em que cresce o cosmopolitismo e os cuidados a que o visitante está obrigado são os naturais e lógicos de se encontrar em qualquer cidade do planeta com milhões de habitantes. como dizem aqui: ‘você tem de estar ligado, nada mais’. atento, prudente.

os dias que aqui passamos a filmar são controlados por gi e francisco, uma dupla de guias perfeita: conhecem toda a gente, são eficazes e divertidos. um dia antes das lágrimas a abrir o concerto de jorginho do império no rio scenarium, extraordinário restaurante/bar/pavilhão de cultura na restaurada zona da lapa, e enquanto mudávamos de local no trânsito complicado do rio, a confiança instalada dava para uma picardia de anedotas entre portugueses e brasileiros:

– o que nasce de um cruzamento de burro com tartaruga? um português de capacete!

ah é? chega um brasileiro ao aeroporto e está um amigo à espera:

– e aí, meu irmão, tudo jóia?

– não… metade é cocaína.

sim, já somos amigos – daqueles que nascem do encanto das viagens com obstáculos, fortalecidos pela intensidade com que fomos obrigados a conhecermo-nos e a trabalhar juntos, aqueles compadres instantâneos que talvez nunca mais se vejam na vida, mas a impressão digital do outro lá permanece para sempre.

filmamos uma cena no corcovado, 700 metros sobre o rio, espaço exíguo e uns dois mil turistas ao mesmo tempo, muitos deles brasileiros anafados vindos dos mais diversos recantos do imenso país – ‘rolhas de poço’, como nos ensinam francisco e gi. começamos por definir um perímetro: o realizador escolhe o ângulo ideal e a meia dúzia que somos pousa material e dá asas às costas, quais seguranças improvisados – destes 3 metros quadrados já não saímos, daqui ninguém nos tira. montam-se as câmaras e é tempo de gravar qual guerrilha, com uma vista inenarrável diante de nós (baía de guanabara, lagoa rodrigo de freitas, pão de açúcar, morro da urca, lá ao fundo niterói, ilhas, copacabana, ipanema, praia vermelha). a curiosidade dos turistas é desperta mas o comportamento impecável – ‘não olhem para a câmara’, gritamos sorrindo, arredondando a pronúncia – e cada take é respeitosamente obedecido, como se nem lá estivéssemos. ao descer, cruzamo-nos com colin farrell acompanhado por um bisonte guarda-costas e penso que todos os caminhos, afinal, vêm dar aqui. não é roma, não tem o vaticano, mas quem precisa disso quando debaixo dos braços do cristo redentor?

e é mesmo disso que se trata: redenção. uma semana sem saber notícia alguma de portugal, 7 dias inteiros a trabalhar com afinco e em aliança atlântica numa das mais extraordinárias cidades do mundo, o fim dos preconceitos de nós sobre eles e deles para nós. é tempo de regressar à festa do último dia, quando a imparável cadência do samba, que começou melancólico e acabou numa alegria irresistível, levou-nos a todos à pista. até este vosso escriba, tão assíduo das aulas de dança como os políticos lusos das suas cadeiras universitárias. hoje vamos viver como se amanhã não trouxesse problemas. e canta jorginho: ‘não vem que não tem / não vem de garfo que hoje é dia de sopa / não traz a escada que o incêndio é no porão’.

lfborgez@gmail.com