Offshores. Guia para seguir o rasto a 10 mil milhões

Há mais dúvidas do que certezas no caso das transferências para offshores que ficaram por escrutinar entre 2011 e 2014. Já se sabe que há responsabilidades políticas, já assumidas por Paulo Núncio, e há a hipótese de fuga aos impostos ainda por apurar. O parlamento vai investigar e o tema não deve sair das notícias.…

Porque é que há um “caso offshores”?

Entre 2011 e 2014, não foram publicadas estatísticas sobre os dinheiros que saíram do país para offshores. Em abril de 2016, o secretário de Estado Fernando Rocha Andrade mandou apurar e publicar esses dados e concluiu que tinham voado para offshores quase 17 mil milhões de euros. Mas o jornal Público descobriu, entretanto, uma discrepância entre esses valores e os que foram publicados oito meses mais tarde. Afinal, durante o anterior governo, saíram de Portugal para paraísos fiscais 16.964 milhões de euros, sendo que desse total não tinham sido escrutinados pelo Fisco 10 mil milhões de euros. O valor foi declarado pelos bancos à Autoridade Tributária, mas a falta de autorização do então secretário de Estado Paulo Núncio travou a publicação das estatísticas que eram obrigatórias desde o governo de José Sócrates. Ao todo estão em causa 20 operações em relação às quais a Autoridade Tributária não tem todos os dados necessários. E isso faz com que não se saiba se o dinheiro pagou todos os impostos devidos ou se a sua proveniência é legal.

Qual foi o papel de Paulo Núncio?

Paulo Núncio foi secretário dos Assuntos Fiscais entre 2011 e 2014 e foi por não ter dado autorização à Autoridade Tributária para o fazer que a estatísticas sobre estes 10 mil milhões de euros ficaram por explicar. Núncio começou afirmar que nada sabia do assunto e depois por dizer que a responsabilidade era dos serviços. O ex-governante do CDS só reconheceu a sua “responsabilidade política” quando o antigo diretor-geral do Fisco Azevedo Pereira o desmentiu. Azevedo Pereira revelou ao DN ter pedido por três vezes autorização a Núncio para publicar os dados sobre as transferências. O último destes pedidos ficou mais de um ano e meio na gaveta. Quando chegou aos serviços, a resposta do secretário de Estado limitava-se a um “visto” que Azevedo Pereira não pôde considerar como um sinal de concordância com a publicação cuja autorização solicitara. Toda esta troca de pedidos está documentada e foi no sábado finalmente assumida por Núncio. Falta que explique por que motivo decidiu não autorizar a publicação dos dados estatísticos enquanto esteve no governo.

Houve fuga aos impostos? E crime?

Não se sabe se houve fuga aos impostos. As transferências para offshores não estão sujeitas por si só a cobrança fiscal. O que é tributado é o rendimento que está na origem desse montante ou os dividendos que venham a ser obtidos nos paraísos fiscais se forem declarados (por exemplo, se se tratar de um depósito e se houver juros). O problema é que o Fisco não recebeu todos os dados relativos a estes 10 mil milhões e, por isso, não pôde fazer a análise à origem do dinheiro que poderia determinar se este foi obtido de forma lícita ou ilícita. Agora, as Finanças terão de apurar se há impostos que deviam ter sido cobrados e não foram. Para isso há tempo: o anterior governo aumentou de quatro para 12 anos o prazo de prescrição destas dívidas fiscais. O problema pode estar no caso de haver um crime. Caso o dinheiro tenha sido obtido de forma ilícita, os crimes prescrevem em quatro anos. “E entretanto houve um programa de regularização de dívidas, o RERT III, que concedeu um perdão dos crimes em 2012”, aponta ao i o presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, Paulo Ralha.

A notícia do Público foi “plantada”?

Durante o debate quinzenal da semana passada, António Costa sacou do caso dos offshores para criticar a forma como o governo de Passos Coelho se mostrou tão atento a todos os movimentos dos pequenos contribuintes e deixou passar 10 mil milhões para paraísos fiscais sem escrutínio. O argumento fez Passos gritar da bancada que o primeiro-ministro estava a usar um truque de “baixa política” e Assunção Cristas afirmar que a notícia do Público tinha sido “plantada” pelo governo, insinuando que o objetivo seria abafar a polémica dos sms de Mário Centeno. A resposta veio sob a forma de um editorial do diretor do Público. No texto, David Dinis reconstrói a forma como a notícia nasceu de perguntas feitas por escrito pelo jornalista Pedro Crisóstomo às Finanças, depois de se aperceber de discrepâncias entre os valores publicados pela Autoridade Tributária sobre offshores. A história de como o Público chegou à informação é detalhada e suficiente para fazer cair por terra a ideia de que o governo teria passado a notícia ao jornal.

Quem fez estas transferências?

Essa é uma das perguntas a que Fernando Rocha Andrade e Paulo Núncio poderão dar resposta quando forem ouvidos amanhã na Comissão de Orçamento e Finanças no parlamento. Para já, o Jornal Económico revelou que uma única operação para um único offshore representa quase metade dos 8,9 mil milhões enviados para paraísos fiscais em 2015. Há quatro mil milhões da venda da PT pela Oi à francesa Altice que terão sido enviados para as Bahamas e que estão entre as 20 declarações de transferência que foram feitas entre 2011 e 2014 mas que nunca passaram pelo crivo da Autoridade Tributária. Falta saber quem são as outras entidades responsáveis pelas transferências e a que tipo de operações correspondem, uma vez que tanto se podem tratar de pagamentos de faturas a empresas com sede em paraísos fiscais como de depósitos transferidos para offshores. Além disso, é preciso agora apurar a proveniência do dinheiro assim como o seu destino para perceber se há ou não atividades ilícitas envolvidas como branqueamento de capitais, tráfico de armas ou terrorismo.

Quem vai ter de dar explicações?

Mal se soube do caso, todos os partidos da direita à esquerda entregaram requerimentos para ouvir os responsáveis pelos Assuntos Fiscais desde 2011 até hoje. Por isso, Paulo Núncio e Rocha Andrade serão ouvidos amanhã. Entretanto e depois das primeiras declarações de Núncio apontarem o dedo aos serviços, o PSD apresentou um pedido para ouvir os diretores gerais da Autoridade Tributária e Aduaneira, que exerceram funções desde 2011, bem como o inspetor-geral de Finanças. Depois de Paulo Núncio assumir finalmente a sua “responsabilidade política”, o BE questionou publicamente o silêncio de Maria Luís Albuquerque e Vítor Gaspar. Para os bloquistas, é “estranho” que Paulo Núncio tenha decidido travar a publicação de estatísticas sobre offshores sem que os ministros a quem respondia tivessem conhecimento dessa decisão. É muito provável que Gaspar e Maria Luís Albuquerque venham, por isso, a ser chamados ao parlamento para dar explicações. O PSD já deixou claro que não se opõe a essas audições.