Doenças raras. Duas histórias no dia das doenças esquecidas

Ana Paula foi diagnosticada em 2006 com a doença de Machado-Joseph. Inês faz seis anos em maio e vive com a síndrome de Prader-Willi. Hoje assinala-se o Dia das Doenças Raras. A luta é diária e, se todos se envolverem, pode tornar-se mais fácil

Ana Paula já nem recorda quantas vezes foi ao oculista para mudar a graduação. Estava grávida do segundo filho e, volta e meia, deixava de conseguir ler as legendas na televisão. “A certa altura, o meu marido disse-me que não comprava mais óculos. Para eu ir a um oftalmologista como deve ser.”

Do oftalmologista, Ana Paula seguiu para o médico de família, depois para um neurologista. Pelo caminho, foi perdendo o equilíbrio. “Uma vez estava no café e uma amiga perguntou-me: ‘Tu drogas-te? Porque é que andas sempre a cambalear?’”

A TAC mostrou o “cerebelo mirrado”, lembra. Nem sabia o que isso era. Depois, veio o diagnóstico. Doença de Machado–Joseph, uma síndrome neurológica de origem genética, incapacitante. Uma doença rara descrita pela primeira vez nos anos 70 numa família descendente de um açoriano de São Miguel emigrado nos Estados Unidos.

Passam 11 anos. Ana Paula, ex-empregada doméstica no Estoril, tem 49 anos. A fala vai ficando enrolada, usa um andarilho para se deslocar ou a cadeira de rodas. Pouco sai. “O meu braço-direito é a minha filha, mas ela, um dia, vai ter de voar.” Deixou de conseguir trabalhar e hoje passa os dias em casa, à espera que o marido e os filhos cheguem. “Vejo televisão, no TLC há agora um programa de diagnósticos de doenças.” Quem passa por elas vai-se tornando especialista nos termos médicos, nas pesquisas que devolvem resultados em que mais vale não pensar. “Dizem que há uma esperança de vida de 14 a 15 anos, já vou em quase 12. Não penso nisso.”

Ana Paula ainda se consegue levantar da cama sozinha com a ajuda do andarilho, mas conta com o apoio da família para quase tudo o resto. “Deixam-me o pequeno-almoço preparado junto ao micro-ondas. A meter o leite, já deixo entornar.” Ao almoço desenrasca-se com umas sandes e, depois, o filho mais novo, com 14 anos, chega da escola e ajuda. “É o que mais me custa, devia ser eu a ajudá-lo.” Sozinha durante o dia, sente que devia haver mais apoio para quem está como ela, seja por esta ou por qualquer outra doença. “Podia haver um centro de dia onde pudéssemos estar”, pede.

Hoje assinala-se o Dia das Doenças Raras e o tema escolhido a nível internacional para marcar a data é um apelo por mais investigação numa área que, por vezes, ainda não está no topo das prioridades. Ana Paula não é perita, mas também sente que este é um problema. A doença de Machado-Joseph, como outras que entram nesta categoria de baixa incidência (afetam, cada uma, menos de cinco em cada dez mil habitantes), ainda não tem tratamento. “Fala–se muito de cancro e ainda bem que o tratamento tem evoluído, mas para nós ainda existem poucas hipóteses.”

Vencer com ajuda

A vida dá uma cambalhota, muitas vezes sem pré-aviso. Se a maioria das doenças raras têm origem genética e até podem ser hereditárias, como é o caso da Machado-Joseph, isto não significa que se esteja mais preparado. “A minha mãe morreu jovem com um cancro. Lembro-me de ela não subir as escadas e ter dores nos joelhos, mas não me lembro de a ver cambalear.”

Só nestes últimos anos juntou as coisas. O irmão também já foi diagnosticado. “Vive num prédio sem elevador, quase nunca o consigo ver.” Os filhos ainda não fizeram o teste. “Faz-se o teste preditivo depois dos 18 anos.”

Se o futuro a deixa apreensiva, tenta ir aliviando a cabeça com pensamentos positivos. E agradecendo a quem merece: “Os amigos desapareceram todos, mas uma das minhas patroas, a Maria José Brito e Cunha, continuou até hoje a pagar-me o salário. Sem essa ajuda, não conseguíamos.”

A doença de Machado-Joseph manifesta-se na idade adulta, mas a maioria das doenças raras surgem na infância. Inês, hoje com cinco anos, nasceu com a síndrome de Prader-Willi (SPW), a ausência de sete genes no cromossoma 15. Afeta um em cada 25 mil bebés, crianças que desenvolvem comportamentos obsessivos.

Natasha, a mãe, lembra que durante algum tempo não suspeitaram. Inês nasceu pequenina, com 2190 gramas de peso e 45 centímetros. “Eu tinha levado duas epidurais, morfina, antibióticos, e por isso não mamou enquanto estivemos no hospital. Mas aparentemente estava tudo bem. Apenas não tinha instinto de sucção. Era uma bebe mole, com pouca força, com alguma hipotonia [redução do tónus muscular], mas que com o tempo recuperaria, disse o pediatra.”

Nos primeiros dias de vida, Inês perdeu peso, e Natasha e o pai da menina, João, fizeram de tudo para recuperasse. “Valia tudo: cócegas, despi-la, festinha na garganta e debaixo do queixo para que, de alguma forma, conseguíssemos estimulá-la para beber o leite.”

Inês começou finalmente a alimentar–se, mas os pais começaram a notar diferenças. Não gatinhava, não rolava como as outras crianças. “Aos nove meses tivemos uma primeira opinião: ainda que cada criança seja diferente, ainda que tenhamos de dar o tempo de que cada um precisa, a verdade é que a Inês estava com comportamentos de 4/5 meses.”

Na altura, os médicos não consideraram que fosse preocupante, mas os pais sentiam que algo estava errado. Puseram-na na terapia ocupacional e houve melhorias. Mudaram-na de uma ama para a creche para ter mais estímulos. “Aceitámos que a Inês era mais lenta no desenvolvimento. Mas era uma simpatia de criança. Um doce. Meiga, mimosa… não chorava.”

Eram tudo sinais, mas o diagnóstico ainda demoraria. Quando tinha um ano e meio, Inês teve uma gastroenterite viral e ficou em estado crítico. Duas noites em cuidados intensivos mais dez numa enfermaria.

Quando ouviram falar na hipótese de ter alta, os pais bateram-se para que fossem feitos mais exames. Com aquela idade, a filha ainda não conseguia sentar- -se. E só aí chorou pela primeira vez. Seguiu-se um ano de acompanhamento com uma neuropediatra que não acusou qualquer distrofia muscular, nervosa ou qualquer outra patologia grave. Mas, na penúltima consulta, decidiu-se fazer por “descargo de consciência” o despiste de Prader-Willi, lembra a mãe. O resultado veio positivo. A Inês tinha dois anos e meio e, finalmente, um nome para o que a tornava diferente.

A menina começou a ser acompanhada no Hospital Pediátrico de Coimbra e depressa os pais começaram a juntar as pontas soltas e a adaptar a vida. A doença é caracterizada por um problema que faz com que a informação da saciedade do estômago não chegue ao cérebro, descomplica Natasha. “Se pudesse, comia até rebentar.” Era assim desde bebé, ao ponto de ter feito dieta aos seis meses mas, na altura, os pais só o agradeciam – afinal, tinha nascido tão frágil. Outro sinal que passou despercebido eram as perguntas que repetia com intervalos de segundos. “’Que giro, quer saber tudo e não se quer enganar’, diziam as pessoas”, lembra Natasha. A repetição sistemática, por não assimilar a memória mais recente, é outro sintoma de Prader-Willi.

O diagnóstico foi moroso, a intervenção podia ter começado mais cedo, mas procuraram dar a volta. Aprenderam a fazer jogos com a comida, a ensiná-la que, fazendo asneira numa refeição, é preciso compensar noutra. “Se quer gelatina, não pode ter bolo. Se quer bolo, não pode ter arroz, e por aí fora. Ela já sabe muito bem o que quer e o que não quer.”

Inês fez terapia ocupacional e há três anos faz também acupuntura. “Passei a viver em função dela, mas por uma coisa nos damos por felizes: é uma criança feliz, equilibrada dentro do que consegue, sabe estar, e é uma criança. Tentamos que a SPW não a defina como ser.”

Se alguns relatos desta doença mostram como os pais têm de trancar cozinhas e as crianças sofrem muitos problemas de saúde, Natasha explica que Inês tem uma versão menos dura da síndrome. “Come às horas que nós dissermos, por norma não tira comida. Não fica sozinha com comida. Já tentou tirar, mas logo a seguir diz que tirou. Falamos com ela e explicamos que não precisa de tirar, pode pedir.”

Ainda assim, é vital poderem contar com a ajuda de todos. “Saber que, se a Inês pedir uma bolacha ou um pão, não lhe dão, é um descanso. Saber que no café onde vamos já não lhe perguntam se quer ou oferecem um bolo sem me perguntar se podem, é um descanso. Saber que as pessoas não ficam ofendidas se ela perguntar 20 vezes o seu nome e, em alternativa, pedir-lhe para puxar pelo pensamento e tentar lembrar-se e ela conseguir, é um descanso.”

A vida tornou-se um desafio, mas Natasha admite que também ganharam. “Aprendi a ser mais tolerante, a dar tempo ao próximo, que a felicidade passa por coisas pequenas. Um dia em que a Inês faz mais uma conquista é maravilhoso”, diz. E é essa a mensagem que gostava de passar hoje. “Sozinhos, não vamos a lado nenhum. A comunidade, família e amigos, precisa de estar envolvida. O Estado tem mesmo de funcionar com serviços e apoios e mostrar, com as famílias, como se ajuda uma pessoa que não corresponde aos padrões normais da sociedade a ser parte integrante, independente o mais possível, e com bons valores. Seja qual for a doença rara.”

Em números

Na União Europeia, consideram-se doenças raras aquelas que têm uma prevalência inferior a 5 em 10 mil pessoas (ou uma em cada 2 mil), considerando o total da população da UE

600 mil a 800 mil

Estimativa do número de portugueses com doenças raras

5 mil a 8 mil

Número de doenças já identificadas. Cada uma atinge menos de 0,1% da população

50%

Metade dos novos casos são diagnosticados em crianças

87 milhões

Despesa pública, em 2016, com medicamentos para doenças raras