Economia em 2050. O mundo vai ser dominado pelos emergentes e o seu centro será a Ásia

Uma das principais consultoras do mundo elaborou um estudo em que prevê que há uma espécie de rotação do eixo económico do planeta até 2050. Nesta data serão os países emergentes a dar cartas na economia. O i foi consultar vários especialistas a este respeito.

Diz a piada que os economistas são aqueles que justificam amanhã por que razão a previsão que fizeram ontem não se verificou hoje. Apesar da piada interna, as previsões são fundamentais. Todos os dias lidamos com elas. É a partir das previsões sobre o aquecimento global que se discutiu o Acordo de Paris e se lançam as linhas para tentar defender o planeta. É a partir de previsões que os governos fazem Orçamentos do Estado ou que os privados decidem investimentos. É certo que, algumas vezes, elas saem furadas. Conta–se que, no início do séc. xix, estava toda a gente preocupada com as consequências da multiplicação dos veículos de tração animal nas cidades e o aumento da quantidade de bosta nas ruas, até que se inventou o motor de combustão interna. Mas, na maior parte das vezes, elas são úteis. Em fevereiro, a PricewaterhouseCoopers (PwC), uma das maiores empresas de auditoria do mundo, divulgou um trabalho prevendo quais serão as principais características, em temos de crescimento do PIB por países, da economia mundial em 2050. Este estudo projeta o PIB de 32 das maiores economias do mundo em 2050, que contribuirão com 85% do PIB mundial. A análise feita pela PwC baseia-se num modelo de crescimento económico de longo prazo que assenta em quatro fatores-chave:

– A demografia (especialmente, o crescimento da população em idade ativa);

– A melhoria das condições de trabalho;

– O aumento do stock de capital físico;

– O progresso tecnológico, que é determinante para o aumento da produtividade.

O estudo faz notar que, embora estes quatro fatores sejam muito importantes, há um conjunto de outros acontecimentos que podem condicionar, modificar ou ampliar estas tendências. Estão nesta categoria acontecimentos políticos como a ação da nova administração Trump ou a concretização do Brexit, bem como a incerteza política em França ou Itália, que podem gerar uma nova vaga protecionista, pondo em causa a dinâmica do comércio mundial. Sobre estes desenvolvimentos, nomeadamente sobre a questão da globalização versus protecionismo, o documento da PwC não é neutro: “Assumimos, portanto, políticas amigas do crescimento económico e excluímos possíveis catástrofes como, por exemplo, guerras nucleares ou alterações climáticas extremas”, afirmou ao i Pedro Santos Palha, da PwC.

As principais conclusões do documento, com estas restrições, são as seguintes:

 – A dimensão da economia mundial poderá duplicar até 2050, ultrapassando até o crescimento demográfico, por via dos aumentos de produtividade gerados pelos avanços tecnológicos;

– Os principais mercados emergentes poderão crescer, em média, o dobro dos mercados mais avançados;

– Em 2050, seis das sete economias mais avançadas serão compostas pelas atuais economias emergentes, com a China, Índia, Indonésia e Brasil em primeiro, segundo, quarto e quinto lugares, respetivamente;

– Os EUA poderão estar em terceiro lugar no ranking do PIB global, ao passo que a quota do PIB da União Europeia se situará abaixo dos 10%;

– Em 2050, o Reino Unido poderá estar em 10.o lugar, a França fora do lote dos dez primeiros e a Itália descerá abaixo da 20.a posição, sendo substituídos por economias em franco crescimento como México, Turquia e Vietname, respetivamente.

Pedro Santos Palha sublinha o papel político de incentivo para se adotarem determinadas orientações que têm também estas previsões: “Constituem um desafio para os decisores políticos dos países emergentes, na medida em que, para aproveitar este enorme potencial, terão de implementar importantes reformas estruturais, nomeadamente fortes investimentos na educação, infraestruturas e tecnologia. Adicionalmente, terão de reforçar e capacitar as suas instituições jurídicas, económicas e políticas, por forma a tornarem os seus países amigos do investimento.”

Apesar destas virtudes, Bernardo Pires de Lima, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, identifica algumas fragilidades no trabalho: “Vejo graves vulnerabilidades em relatórios deste género. Acho que podem ser orientadores, sobretudo motivadores de algum entusiasmo para as grandes empresas que são clientes da consultora, na identificação de mercados emergentes que não estavam no radar, mas do ponto de vista metodológico têm bastantes falhas: a análise do risco político e ambiental é praticamente inexistente. Por exemplo, não são calculadas as implicações das alterações climáticas devido ao não cumprimento do Acordo de Paris por parte de Trump. Nem a possibilidade de ataques terroristas nos sete países emergentes que estão no centro do estudo e estão permanentemente sob este perigo.” Pires de Lima nem está convencido de que o decréscimo da Europa seja inevitável. “O arco temporal é demasiado abrangente, tem 33 anos, nós não sabemos sequer, depois do ano político europeu de 2017, que catarse as instituições europeias vão fazer. Pode haver alteração das políticas de redistribuição do risco económico e político na zona euro, pode haver uma maior predisposição para investimentos públicos. Estamos numa fase de incerteza. Fazer previsões imparáveis fazendo a previsão da morte inadiável de uns e da ascensão imparável de outros parece bastante prematuro.” Pires de Lima não acha que o domínio ocidental seja eterno. “Durante 1800 anos, a China e a Índia foram o centro da economia mundial, só a partir da Revolução Industrial é que assistimos à subida do Ocidente.”

Por seu lado, o economista Ricardo Paes Mamede, professor auxiliar do Departamento de Economia Política do ISCTE, sublinha a validade das premissas do relatório. “O que é previsto no relatório é praticamente inevitável, porque ele fala é da evolução do PIB e temos de nos lembrar que o fator número um, em termos históricos, para o crescimento do PIB é o crescimento da população. E a grande diferença entre a Ásia e a Europa e os EUA é a evolução demográfica. A Ásia vai continuar a crescer, e o peso da Europa e dos EUA, em termos populacionais, vai ncontinuar a diminuir”, considera. No entanto, o economista sublinha a necessidade de serem tomadas em conta outras dimensões de análise: “Quando olhamos para aquilo que são as âncoras fundamentais da globalização da economia, elas continuam muito centradas nos países ocidentais e, em particular, nos EUA. As principais praças financeiras mundiais estão nos EUA, e uma em Londres e outra em Frankfurt. Quando analisamos as principais multinacionais em termos de sofisticação tecnológica, elas continuam sobretudo a estar nos países ocidentais; quando observamos as principais universidades mundiais, o domínio dos EUA é enorme. Isto tem de ser avaliado. Não acho que seja contraditório com o relatório. Ele centra-se na evolução do volume do PIB, e não noutras dimensões, a começar pelo PIB per capita. É preciso sublinhar que o aumento de volume do PIB está fortemente associado à expansão demográfica. E isso tem implicações relevantes do ponto de vista económico. O relatório alerta para que as oportunidades de negócio estão naqueles países. Mas uma coisa é dizer que as oportunidades de negócio estão ali, outra é dizer que a riqueza está ali. A riqueza acumulada financeira e de conhecimento científico e tecnológico irá corresponder, durante muitos anos, a um maior domínio do Ocidente”, faz notar Paes Mamede, que sublinha que mesmo um certo retrocesso da Europa é mais relativo que absoluto. “Há uma decadência do ponto de vista relativo que já está a acontecer. Se há sociedades menos dinâmicas, isso significa uma certa forma de decadência, mas isso quer dizer que, daqui a 30 anos, a Europa vai ser um sítio menos bom para viver em termos de qualidade de vida? Não me parece de todo. Apesar desse aumento da relevância dos países asiáticos, os países europeus continuam a ter um conjunto de qualidades e características – paz social, qualidade ambiental, qualidade de vida – que esses países emergentes não oferecem.”

Diferentes considerações sobre a validade das conclusões do relatório faz o economista Nuno Teles, colega de Ricardo Paes Mamede no blogue Ladrões de Bicicletas e investigador do CES (Centro de Estudos Sociais). “São sobretudo especulações que têm como base a história recente e as tendências de crescimento económico dos últimos anos. Conseguir prever, num intervalo de tempo tão longo, é irrealista, sobretudo quando se pretende tirar conclusões em termos de grandes agregados económicos e se calcula o crescimento do PIB projetando no futuro o comportamento do passado, sem ter em conta as grandes alterações qualitativas dos diversos países. A China já é, em volume de PIB, a maior economia mundial, a questão é qual é a sua posição de economia mundial. E essa não é uma posição de liderança, e este tipo de análise é que este tipo de relatórios não fazem”, critica Nuno Teles.

Para ele, estes dados qualitativos não são medidos por este tipo de relatório. “A liderança tecnológica e financeira continua a ser dos EUA, e também em termos do aparato militar que apoia toda essa economia norte-americana. Nada disso é colocado em causa pela liderança do PIB chinês. A China é a fábrica dos EUA. O iPhone pode ser feito na China, mas o design e a maior parte da alta tecnologia são dos EUA.” Quando o interrogamos sobre o facto de nalguns mercados tecnológicos, nomeadamente em termos de marcas de telemóveis, a China já ter uma forte presença, o economista explica a questão com a especificidade do modelo económico e político chinês, que lhe permitiria algumas capacidades de planeamento científico ausentes de outros tipos de economia de mercado. “Há um efeito, nestes relatórios, de tornar semelhantes todas as economias, mas o espaço da China é um pouco diferente dos outros: o crescimento e o modelo de economia chinesa, sendo uma economia dirigida pelo Estado, podem dar uma série de saltos tecnológicos que outros países emergentes, que se baseiam só na mão-de-obra barata, como, por exemplo, o México, não conseguem. Mas isso não garante tudo: os aviões que dominam as linhas aéreas mundiais são sobretudo Boeing e Airbus, não há nenhum chinês que tenha capacidade de concorrer.”

O economista do CES não nega a correlação entre aumento de população e crescimento do volume do PIB, mas afirma que há outros fatores que se deve ter em consideração. “Há no sudoeste da Ásia mais de metade da população mundial. Isso tem peso por si mesmo. Agora, quando se fazem estas análises, tem de se dizer qual é a divisão internacional do trabalho. Não se pode ver o crescimento económico como uma coisa homogénea: o crescimento económico dos EUA é diferente do do Vietname, e este último é bastante dependente dos EUA.

A China é uma exceção, em que o Estado tem um grande papel. Aí, a maior parte das empresas cotadas são públicas, o Estado domina o setor financeiro. E isso permite ter um grau de autonomia para controlar as finanças e desenvolver as tecnologias. Se a China vai ultrapassar, do ponto de vista tecnológico, os EUA, isso é uma incógnita. Só para dar um exemplo histórico: nos anos 80, o medo que se tinha no Ocidente acerca do Japão é muito semelhante com o que se tem hoje da China. Havia essa ideia de que estavam a crescer tanto que podiam ultrapassar os EUA e tornarem-se os líderes económicos mundiais, e isso não aconteceu.”

Nuno Teles realça as diferenças que o tipo de divisão do trabalho pode ter até do ponto do vista comercial. “O maior excedente externo do mundo é o alemão, e não o chinês. Estas coisas têm de ser vistas com cuidado. Veja-se o exemplo da Itália e do Vietname, que ultrapassa a bota no estudo. Com o crescimento de população previsto, o Vietname pode ter um PIB maior, mas a vida da população italiana vai ser melhor, e as marcas de luxo e as Benettons continuarão a ser italianas. É nesse tipo de coisas qualitativas que estes relatórios falham.”

Para o economista do CES, mais que prever, este tipo de documentos pretendem condicionar e influenciar. “O relatório tem uma agenda ideológica de defender que os mercados continuem liberalizados contra o protecionismo. Estão muito preocupados com isso.”

O economista Pedro Lains, investigador-coordenador do Instituto de Ciências Sociais, não nega a vinculação deste tipo de documentos aos interesses das empresas e considera mesmo que isso pode ter um aspeto positivo: “Ajuda os clientes a tomar algumas decisões.”

Realça que o próprio documento da PwC assinala as condições e os pressupostos da sua elaboração: “Quem lê sabe isso. No fundo, projetam para o futuro, usando um modelo muito simples e de fácil leitura, tendências muito gerais baseadas na evolução dos últimos 15 anos que informam sobre a relação de determinadas variáveis com o crescimento. É um exercício que faz todo o sentido.”

O relatório tem a virtude, para Pedro Lains, de colocar o Ocidente no seu lugar real no planeta. “Uma das coisas que esta previsão nos diz é que aquilo que se passa nos EUA e na Europa é apenas uma parte, e uma parte cada vez menor, da história da evolução futura da economia mundial, porque aquilo que se passa na Índia, China, Brasil e Rússia é tão ou mais importante que aquilo que se passa nos EUA, Reino Unido e União Europeia.”

E isso é, de facto, uma coisa que a história nos ensina: “Já houve várias alterações no domínio internacional. Aquilo que está a acontecer agora é que, depois dos últimos 200 anos, desde a revolução industrial britânica, o poder económico, à escala global, está a sair da zona ocidental”.