O Carlos que era dois…

Bêbado, o Vasquinho da Anatomia, antes de mandar escandalosamente morrer o fado num reduto de fadistas, o Alexandrino, olhou para o Carlos e perguntou, com ternura: «Ò Carlos, mas agora tu és dois». Em seguida, justificou a sua visão embriagada e dupla: «Claro! És Carlos. Carlos é plural». 

No filme de Cottinelli Telmo, que nem era cineasta mas sim arquiteto, A Canção de Lisboa, o Vasco Leitão é Vasco Santana. E o Carlos é Manoel de Oliveira. Quem o vê sair do carro, esbelto e sedutor, prometendo este mundo e o outro, ninguém diria que tinha 106 anos. Na verdade não tinha. Mas viria a tê-los.

Manoel de Oliveira era do Porto e do Sport Club, essa agremiação antiga que vem lá dos idos de 1904. Foi campeão nacional de salto à vara. Por três vezes. Chegou a saltar 3 metros e 35. Ultrapassou Francisco Duarte, que chegou aos 3 metros e 33. Lembro-me de Francisco Duarte na Águeda da minha infância e da minha adolescência. Grande, a direito, ele que era de esquerda. Tinha dois filhos. Um era o Manel: Manuel Alegre.

Manoel de Oliveira ficou mais conhecido pela sua paixão pelos automóveis. Também era assim o Carlos e o seu Buick na Lisboa das tias desnaturadas, da Academia Recreativa Dr. Barbosa Girão, da revista O Pastel de Bacalhau e do Fado da Pneumonia que começava assim: «Senhoras, tão encantadoras/Quero agradecer/Senhores, se tiverem dores/Uma pneumonia/Trato-os com prazer». Agora não sei ao certo se era um Buick. Pouco importa. Aqui, passa a ser.

O cinema, como o destino, sempre teve os seus favoritos. No desporto também. O boxe, sobretudo. E as corridas. Não de touros. De motores. Por isso preferiu Yves Montand, Paul Newman, Steve McQueen. Mas eu falava de Manoel de Oliveira e vinha a propósito. Depois falei de Francisco Duarte, o seu émulo no salto à vara, e as coisas continuaram a fazer sentido.

Francisco Duarte podia ter chegado aos 109 anos. Afinal nasceu três anos antes de Manoel Oliveira. Era enorme. Quando vinha pela Rua de Baixo, em direção ao Botaréu, e nós estávamos por ali, pelo largo, a inventar surtidas exploratórias ao Fojo e ao Souto do Rio, pelo meio do milho ao sol e das lavadeiras que estendiam os lençóis brancos nas areias da praia do Sardão, fazia uma sombra esguia sobre a nossa tão reduzida coragem.

 Em 1929, Francisco Duarte era recordista nacional de salto à vara. Às vezes também se dizia salto com vara. Uma vara inflexível que jogava contra os saltadores em vez de os lançar à distância como as de hoje, neste tempo que os seis metros passaram a ser possíveis. Mas não era apenas isso: era especialista em barreiras, saltava em comprimento e em triplo, lançava o dardo e o peso. As pessoas eram, então, bem mais do que elas e as suas circunstâncias. Eram elas e os seus horizontes e a luta contra os seus limites. Iam para além do tempo e do espaço. Por isso, tantas delas continuam vivas na aldeia branca da nossa memória.

Cottinelli Telmo realizou a Canção de Lisboa e deu voz ao Vasquinho da Anatomia quando, de guitarra na mão, no velho terraço da Cervejaria Portugália, ali à beira do Jardim Constantino, que levou o nome do florista Constantino José Marques de Sampaio e Melo, jogava ténis com bolas de tomates e outros legumes contra os amantes do fado que o insultavam e dizia: «Vantagem de cá… Vantagem de lá». Era a vitória do riso sobre a sisudez. Mas, também ele, Cottinelli Telmo, foi para lá das suas insubmissões quando o nomearam arquiteto-chefe da Exposição do Mundo Português, em 1940.

Por falar em Águeda e em Jardim Constantino, lembrei-me que houve, no Recreio, um avançado-centro chamado Constantino Jardim. Acho que terei de o guardar aqui, na gaveta das lembranças, por mais uns tempos, à espera que frases sobre frases também façam sentido à sua volta.

Certa vez perguntaram a Manoel de Oliveira se, quando morresse, logo ele que era ternamente eterno, preferia ir para o céu ou para o inferno. E ele respondeu: «O céu parece-me um local agradável, mas ficaria muito sozinho. Preferia o inferno porque é lá, certamente, que estão os meus amigos». 

Como Francisco Duarte, homem do seu tempo, Manoel de Oliveira recusava-se a ser uma coisa só. Foi ginasta, trapezista de circo – fazia acrobacias incríveis no palco do Teatro Carlos Alberto – e um apaixonado condutor de automóveis de corrida. Ao volante foi igualmente vitorioso. Talvez os seus filmes sejam impregnados de uma lentidão campestre, bucólica, mesmo quando se desenrolam nas cidades, mas ele quis viver depressa, sempre muito depressa. Não morreu novo. Morreu outra vez criança. Foi um cadáver bonito. Como se representasse. No plural.