Viver para Contar: A China e nós

Uns são pagos para se deixarem corromper – e outros recebem dinheiro para espiarem e denunciarem os corruptos. Que bela sociedade comunista!

A horas improváveis veem-se grandes programas de televisão. Aliás, as grandes reportagens e os grandes documentários televisivos só se veem a horas improváveis. Há uns meses, falei nesta coluna de um programa notável sobre o então recordista olímpico dos 400 metros, Michael Johnson – record que datava de 1999 e só caiu nas últimas Olimpíadas. Durou 17 anos!

Nesse documentário, o antigo atleta desenvolvia uma explicação para os enormes feitos dos atletas negros descendentes de escravos. Segundo ele, existiriam três fatores determinantes. O primeiro era a resistência física e mental obtida no trabalho escravo. O segundo, era o apuramento da raça feito pelos donos dos escravos, através do acasalamento dos mais fortes. O terceiro, era o cruzamento dos genes de várias etnias de África que, se não tivessem sido levadas para os Estados Unidos, nunca se teriam cruzado.

Isto tudo junto provocou, segundo Johnson, um cocktail responsável pela produção de muitos campeões.

Recentemente, vi um programa impressionante sobre a corrupção na China.

Há indivíduos que se dedicam em exclusivo a observar sinais exteriores de riqueza. Vão a cerimónias públicas – ou veem-nas através da TV – e analisam ao pormenor o que certas personalidades vestem, os adereços que usam (por exemplo, joias e relógios), os carros em que se fazem transportar, etc., e depois fazem os seus cálculos e tiram as suas conclusões.

O facto de os chineses serem obcecados pela ostentação torna mais fácil detetar a corrupção do que noutras paragens.

Uma jovem entrevistada numa cerimónia explicava que tinha andado a analisar as marcas de carros para ver aquela que melhor se adequaria aos seus gostos e à sua personalidade – e  concluíra que era a Maserati. Assim, comprara um Maserati branco, no qual se sentia «muito elegante», até porque «o branco vai bem com uma senhora», explicava.

Lembrei-me, nessa altura, de uma história que me contaram há tempos sobre uma loja de roupa na Avenida da Liberdade que fecha as portas para receber um cliente chinês – sabendo, à partida, que ele gastará qualquer coisa como 1 milhão de euros em cada visita.

Há hoje imensos multimilionários na China, o que não deixa de ser paradoxal num sistema comunista. Mas o Oriente, o seu modo de pensar e funcionar, continuará sempre a ser um mistério para nós, ocidentais.

Entre esses chineses que se dedicam a investigar a corrupção por sua conta e risco, um deles descobriu que determinado responsável político usava com frequência relógios diferentes. Fez então ampliações gigantescas das imagens televisivas, identificou os modelos dos relógios que o fulano usava, soube o seu preço – e calculou depois o seu valor total. Imaginemos que o conjunto dos relógios valia 8 milhões de euros – quantia que era incompatível com o que o indivíduo ganhava. Denunciou o caso na internet, o homem foi investigado, julgado – e condenado a 15 anos de prisão!

Outro caso envolveu um dirigente do Partido Comunista num escândalo sexual. Uma prostituta de quem o homem era cliente foi subornada, e em sua casa foi instalada uma câmara de vídeo destinada a filmar as relações entre ambos. O homem foi apanhado em pleno ato sexual. O ‘voyeur’ pôs o vídeo (de 12 segundos) a circular na net. Três dias depois o dirigente era suspenso dos seus cargos, a seguir julgado e finalmente condenado a 13 anos de prisão.

«12 segundos na net deram 13 anos de prisão» – afirmava o denunciante, orgulhoso.

Curiosamente, este ‘detetive por conta própria’ (chamemos-lhe assim) vivia numa luxuosa casa e tinha câmaras de vídeo situadas no exterior e à entrada, para detetar as visitas (e os intrusos). Disse que já tinha sido várias vezes procurado por visitas indesejáveis, designadamente por polícias disfarçados, mas as câmaras tinham-no ‘salvo’.

O luxo em que este homem vivia não deixou de me intrigar. Será que alguém lhe pagava para investigar certas pessoas e as denunciar? E os outros ‘detetives’? Agem por si próprios ou alguém os financia? Neste caso, uns seriam pagos para se deixarem corromper – e outros receberiam dinheiro para espiarem e denunciarem os corruptos. Que bela sociedade comunista!

De tudo isto, salva-se uma coisa: a face positiva das novas tecnologias.

Antes do aparecimento da internet e das redes sociais, os regimes podiam viver fechados e os escândalos não vinham a público. A censura protegia os mais poderosos. Certos episódios eram referidos à boa pequena, mas tornava-se difícil distinguir aquilo que era verdade do que não passava de rumores. Pense-se nos ballets roses. Com a internet, isso mudou. É possível fazer denúncias públicas sem passar pelo crivo da censura. E sabendo os dirigentes que estão a ser espiados constantemente, talvez isso os desmotive de se deixarem corromper.