Anselmo Ralph. “Sei que este sucesso vai acabar. Só não sei quando”

Acaba de chegar do ginásio. Exercita o corpo não para ganhar massa muscular mas para combater o desgaste provocado pelas viagens constantes. De casa ou da agência onde o encontrámos para os concertos, de Luanda para Lisboa e de Portugal para o resto do mundo

Anselmo Ralph. “Sei que este sucesso vai acabar. Só não sei quando”

São 16h00, o sol já conta as horas para mudar de turno mas o dia de Anselmo Ralph ainda vai no adro. Pinhel, na Guarda, será o próximo destino, mas os próximos voos são mais altos. Brasil e Espanha são destinos, não turísticos, mas da internacionalização prometida de uma voz com dupla nacionalidade afetiva.

As origens estão em Angola mas os portugueses já adotaram Anselmo Ralph como seu. No final de 2016, brincou com a diminuição física ao titular de “Amor é Cego” o álbum que, em 2017, será reeditado com participações de convidados. Sonantes, imagina-se.

A agenda de Anselmo Ralph é isto. Solicitações constantes, contacto com o público e a comunicação social. Espetáculos, promoção, filmagens, gravações. Aeroportos, hotéis e planos ambiciosos.

Quanto tempo sobra para Anselmo Ralph ser um cidadão comum, pai de família e cinéfilo? Dúvidas e questões contornadas pela oportunidade única de ser a voz do coração que muitas cabeças teimaram. Até as canções derrotarem a última barreira: a do ritmo que nem é kizomba. 

Ainda consegue ser uma pessoa normal ou já não pode sair à rua?

Estou numa fase em que faço questão de sair à rua. Mas depende do sítio onde vou estar. Centros comerciais evito. Já não vou há bastante tempo mas às segundas ou terças-feiras sou capaz de sair de casa, Tiro uma foto aqui, uma foto ali… O que me pedem são fotos.

Quando se leva uma vida tão agitada, o sossego é necessário?

Sim, procuro esse sossego em casa. Não sou muito de sair. Do que sinto falta é de ir ao cinema. Sempre fui viciado. O meu cinema agora é mais em casa do que em sala. Há dias em que não estou bem disposto e prefiro não sair porque quando saio, vou ter que lidar com o público. Não posso dizer “hoje não dá”. Quando acho que não é o meu dia, prefiro ficar em casa,

Os fãs são atrevidos?

Quando os fãs vêm ter comigo, por mais simpatia que possa demonstrar, há logo um risco no chão. Dali não é possível passar. Às vezes prefiro ignorar alguns toques, brincar com a situação ou ser simpático. Mas às vezes recebemos propostas estranhas (risos).

O que o pode deixar indisposto? A carreira?

Muitas vezes sinto-me tentado por esse lado competitivo mas não me faz bem. Quando começo a sentir-me dessa forma, tento despir-me desse pensamento. Não é saudável. Começas a fazer as coisas para ir mais longe do que outro artista. Quando se trabalha dessa forma, não funciona. Pelo menos para mim. Prefiro dar o meu melhor e não achar que o meu melhor tem que ser melhor que os outros.

Seguir um ritmo pessoal?

Exato. Acima de tudo o meu ritmo. Às vezes dizem-me: “Aquele artista está a fazer aquilo e tu tens de fazer também”. E eu digo: “Calma. Se está a fazer, bom para ele. Mas eu não tenho que fazer também”. Temos que aceitar que a vida profissional é um sobe e desce. Não se está sempre em cima. Uma das virtudes numa luta é saber levar porrada (gargalhada).

Como é que observa o sucesso de outras vozes da música angolana como Nelson_Freitas, Matias Damásio ou C4 Pedro? Há rivalidade?

Às vezes, por sermos bem sucedidos no mesmo território e na mesma época, há “bocas”. Mas não há rivalidade. Dou-me muito bem com o Nelson Freitas e o Matias Damásio. O C4 não me é próximo mas quando nos cruzamos, cumprimentamo-nos. Existe um sentimento de competitividade que, com uma boa medida, é saudável. Obriga-me a dar o melhor e a não correr na pista dos outros.

Na sua pista, qual é a fasquia mais alta?

É continuar a internacionalização._Tenho projetos para o Brasil – vou lá em Abril para gravar um_DVD com participações – e no dia 7 vou para Madrid trabalhar nos singles em espanhol. Quero ganhar outros mercados e manter os que já estão conquistados.

E Portugal, que importância tem nesta altura?

Estou a fazer uma digressão em Angola e estive um mês e meio sem vir cá, o período mais longo desde que comecei a vir a Portugal regularmente. Quando cheguei, pensei: “Já estava com saudades”. Já não consigo ficar muito tempo sem ir a Angola ou vir a Portugal. É 50/50. Tenho uma vida mais agitada em Angola por causa da minha produtora e quando venho a Portugal é mais sossegada. O que Portugal me dá, Angola não dá e vice-versa. É um equilíbrio. Agora, o fator emocional de Angola é insubstituível. A cultura, a comida… Às vezes estou aqui e tenho saudades de um funge [prato tradicional angolano] (gargalhada). Profissionalmente, talvez Portugal seja um pouco mais importante. Do ponto de vista emocional, Angola pesa um pouco mais. E para os meus negócios também.

O meio aqui é mais profissionalizado?

É. A César o que é de César, A organização da indústria angolana acontece muito graças à internacionalização dos artistas. Quando regressam a Angola, levam aquilo que aprenderam. O Yuri da Cunha foi um dos grandes mentores. Por exemplo, a primeira vez que pisei o Coliseu foi com ele. E já cantei com ele também em Londres. Naquela altura, ele tinha uma entourage que mais ninguém tinha. Agora faltam outras camadas da indústria organizar-se. Por outro lado, acredito que as comunidades possam ser um extra para artistas portugueses porque há muita música nova que faria muito sucesso. O David Carreira, por exemplo, tem muitas fãs em Angola.

Como é que observa a situação política em Angola?

Há uma visão de quem está de fora e há outra de quem lá está. É necessário alterar muita coisa mas não só em termos políticos. A consciência social também tem que mudar. Mas acho que estamos a resolver, passo a passo, os problemas. Muita coisa já foi feita. O povo já foi mais preguiçoso. Hoje, já sabemos que é necessário trabalhar. É das nossas mãos que vai sair o bem estar de Angola. Muitos jovens têm noção disso. Outros não mas a crise é agridoce, obrigou os angolanos a ser criativos. Como são obrigados a sobreviver, têm que arranjar ideias. Acredito que vamos ficar bem. Politicamente, percebo algumas questões, outras não. Houve coisas bem feitas. E outras que precisam de mudar mas é preciso não esquecer que todos os políticos fazem parte do povo. Os futuros ministros é de lá que vêm. Quem for para o poder, já terá outra mentalidade e preparação. Hoje, nos jornais, já se critica, nas rádios já se fala. Os angolanos aprenderam a levantar a voz. Já há essa liberdade.

Acredita que a saída de José Eduardo dos Santos pode acelerar essa mudança?

Acredito que sim. Estamos à espera. Houve muitas coisas bem feitas por José Eduardo dos Santos mas no período que estamos a viver a sua saída pode ser boa para nós. Acima de tudo, espero que o presidente fale mais connosco. Seja mais próximo do povo. Acredito que se o próximo presidente [João Lourenço] foi indicado é porque tem qualidades. Não o conheço mas pelo que já ouvi dizer do carisma, acredito que vai ser um bom presidente. Como angolano, cada um dos presidentes serviu o seu tempo. Dou os parabéns a José Eduardo dos Santos por ser o grande mentor da paz em Angola. Muitas vezes os angolanos têm medo de dizer a verdade, mas foi graças a ele que somos um dos países africanos que tem mantido a paz.

Quando se diz que Anselmo Ralph é um artista do regime, como é que reage?

(risos) Nunca escondi em quem voto._Toda a gente pode dizer que é da UNITA ou do MPLA, mas quando um músico assume é logo criticado. Eu sou do MPLA! Nunca recebi foi dinheiro para dizer isso e na hora das campanhas eleitorais prefiro afastar-me porque represento o povo e quando representavas o povo, precisas de ser imparcial. O meu Disco de Ouro ofereci-o ao presidente mas isso não é bajulação. Ninguém me deu nada, ganho a vida pelo meu trabalho. Alguns usam essa expressão para forçar outros músicos a não defenderem aquilo em que acreditam, Há artistas que defendem outros partidos, outros são revolucionários e têm algum sucesso em Angola. Eu fui da OPA. De criança fui educado para ser militante do MPLA mas não vou dizer que tudo está bem. É como numa família.

Viveu na América, um país que está em suspense com medo do futuro e cujas políticas se direcionam agora para fechar fronteiras. O que pensa do que se está a passar?

Acabei de chegar de lá. Estive de férias nos EUA com a família. O Trump está a dar um mau exemplo como presidente mas ao baixar tanto o standard, quando fizer algo bem é grandioso. O fasquia desceu até -10, por isso quando for ao zero vai parecer 20. A América é muito extremista e ele está lá porque foi votado. Representa uma boa parte dos americanos. Infelizmente, sei disso por ter vivido nos EUA. O Trump veio expor coisas menos boas que fazem parte da América. É um espelho do país.

E a América de Barack Obama, de Beyoncé e do afro centrismo?

É tudo isso. Vimos coisas muito boas nas governações de Obama e Clinton. O Trump até faz parecer o [George W.] Bush bom presidente (gargalhada). Pelo menos, não envergonhou tanto a América em termos políticos. O mundo sempre viu “the greatness of America”. Agora, estamos a ver o lado mau da América,

Quando a pop americana absorve ritmos africanos, como no caso do Drake em “One Dance”, o que é que isto quer dizer?

Estive a gravar nos EUA há dois anos com um produtor chamado Ryan Leslie. Ele produziu as minhas canções em inglês e deu-me este conselho: “Se estas canções são para África ou para a Europa, good. Mas se são para aqui, mil vezes misturar r&b com a tua ascendência africana. Nesse caso, vou ouvir. Se fizeres r&b como nós fazemos, vou ouvir uns cem antes de ti e páro no cinquenta.” É uma questão de mistura._Se eu viesse para cá cantar fado, antes de mim estavam a Ana Moura, a Mariza, a Raquel_Tavares… Até chegar ao Anselmo, já não havia paciência para ouvir (risos). O importante é a identidade. São tendências que sempre estiveram aí mas quando um americano pega nelas, parece que é novo.

São levadas mais a sério?

Sim. Os artistas americanos também são os que ditam mais tendências em termos de ritmo. O Drake pegou e ficou na moda.

Quando é que sentiu que estava a acontecer alguma coisa fora do normal aqui em Portugal?

Dei o primeiro concerto em Portugal há dez anos, no Super Bock Super Rock. Eram cinco da tarde e não deviam estar mais de 50 pessoas. Em 2008/2009 comecei a vir para cantar em discotecas. Nessa altura, era reconhecido na comunidade africana. Quando me vinha embora, tirava sempre fotos, mas nada de mais. Tanto que pensava que, para mim, estava cool. As coisas mudam quando recebo um convite para dar um concerto no Campo Pequeno. Nem sabia onde era. Pensei: “Se é pequeno, é fixe.” (gargalhada) Não procurei na internet e só na semana do concerto é que vim cá. Estávamos a contar com a comunidade africana, mas o Emerson [promotor do espetáculo] disse-me que ia ter uma surpresa. Não por estar cheio, porque estava, mas porque 80% das pessoas eram portugueses. Aí percebi que estava a acontecer alguma coisa. Aproveitei e gravei logo o DVD.

Estava atento ao que aconteceu em Portugal com a emergência dos Buraka Som Sistema?

Antes de pararem tentei muito trabalhar com eles. Acompanhava e era fã mas achava que eles eram uma exceção. Aliás, nunca pensei chegar a este ponto. Dizia: “Nunca vou chegar a um nível de estar no mercado”. Primeiro, por uma questão de preconceito e não só racial. Não sou luso-africano, vivo em Angola e depois porque, no caso dos Buraka Som Sistema, eles são portugueses, independentemente da cor da pele. Pensei que isso travasse o meu sucesso cá. Já estava conformado. Mas houve uma mudança de mentalidade dos portugueses. A eles deve-se o nosso sucesso aqui. Os angolanos também me ouvem mas já sou considerado um artista nacional. Foi uma surpresa e acredito que não apenas pela música ser muito boa. No princípio, contavam-me que havia muita gente a ouvir Anselmo Ralph com vergonha de assumir.

Sente-se confortável com esse reconhecimento?

Sim, é sinónimo de carinho. É um “queremos-te para nós”.

Alguma vez passou por uma situação de racismo fora da internet?

Na internet é mais frequente, mas na rua não. Só bocas. Lembro-me que, depois do Campo Pequeno, quando estava a gravar um álbum, me diziam: “O Anselmo tocar em determinada rádio? Esquece”. Ia à rádio e diziam-me isso na cara. Hoje ainda acontece, mas já não são todas as rádios.

Hoje há rádios que apostam declaradamente em si.

É muito bom, mas às vezes ainda me custa perceber a questão das rádios.

Ainda há preconceito?

Se há preconceito em relação à música portuguesa, imagina em relação a nós. Em Angola, isso não acontece. Qualquer estilo de música feita por angolanos, passa na rádio.

Segue com atenção a música portuguesa?

Sim. Gosto de fado, embora não seja o que ouço mais. Já fui a uma casa de fados e gostei bastante. Agora, o que ouço é Agir, Mickael Carreira, Diogo Piçarra… Malta que está a fazer coisas diferentes. Há cinco ou seis anos, quando estava a entrar no mercado português, não era isso que se ouvia. Houve uma grande evolução. O mercado mudou.

Há quem ainda o associe à kizomba, mas as suas origens musicais estão no r&b, não é?

Exato. Aqui ainda me associam muito à kizomba mas se ouvirem o meu álbum há duas kizombas no máximo. Há muita gente que não distingue r&b, kizomba e afro-house. Cantava a “Única Mulher” e muita gente dançava kizomba. “Mas isto não é kizomba!” (gargalhada). Não me choca mas, por exemplo, em Angola nunca vão dizer que sou artista de kizomba. Nem em Moçambique ou Cabo Verde. Vão dizer que sou cantor de r&b.

Um sucesso tão massivo mexe com a cabeça?

(pausa) Mexe sempre. És obrigado a mudar. Não se fica a mesma pessoa. Há muita a gente a vir ter comigo não por ser o Anselmo mas por ser o Anselmo Ralph. Tens que olhar mais para as pessoas nos olhos. Ver quem é aquela pessoa e porque é que ela quer alguma coisa. Uma das minhas ferramentas para ter os pés no chão é saber que tudo o que sobe desce. E eu sei que vai acabar. Só não sei quando. Isso ajuda-te a curtir de forma saudável. Hoje és o Anselmo Ralph e amanhã vem outro. Pensar que se vai estar no auge o tempo todo é perigoso. Quando se sabe que é efémero, tenta-se aproveitar. Além da minha crença. Sou crente e sigo Jesus Cristo. O sucesso é mais saboroso quando é saudável. As coisas acontecem naturalmente.

Está preparado para esse dia?

Preparado não. Estou é consciente. Aliás, são 12 anos de carreira e nem todos foram bons. Já tive altos e baixos. Sei o que é ser “o grande Anselmo Ralph” e o que é ter concertos com menos gente. Aprendi ao longo do tempo.

Quando faz um álbum tem preocupações comerciais ou segue apenas o instinto?

Eu faço música para mim. Ou melhor, que me deixe satisfeito. Mas tento equilibrar. Temos de servir os fãs. Haver um single. É um equilíbrio.

Quando imagina colaborações ou duetos, pensa no impacto que o outro pode trazer?

Sim, hoje em dia é muito isso embora não faça sentido trabalhar com alguém só porque é popular. Por exemplo, gostava de fazer uma música com o Tony_Carreira. Não sou ouvinte mas é alguém que respeito. O que ele alcançou na carreira dele não é reconhecido quando é um dos grandes ícones portugueses. Às vezes, não é preciso gostar da música para respeitar a pessoa. Não sou grande fã da Beyoncé mas respeito a forma como ela tem gerido a carreira. O boneco que ela criou, o espetáculo… Mas só deve haver umas quatro canções dela que eu gosto (risos).

Quem são os seus ídolos?

Um deles é o Stevie Wonder. É um dos artistas mais completos. Escreve bem sobre o amor e com ritmo. Em termos de álbuns, gosto do “The Miseducation of Lauryn Hill”, no r&b feminino. No masculino, gosto do “Justified”, do Justin Timberlake. Também gosto muito do Juan Luis Guerra. É o meu lado latino e romântico. De resto vou gostando de canções.

E com quem gostava de trabalhar?

Depois do Michael Jackson e do_Prince, só resta o Stevie Wonder (risos). Há muita gente com quem gostava de trabalhar. Estou agora a preparar a reedição do álbum e todos os temas têm participações.

Planeia a vida a quanto tempo?

Um ano.

Como é que vai ser a vida durante esse período?

Graças a Deus, já temos 47 concertos e vão ser adicionadas mais 12 datas. Além disso, é trabalhar os singles em espanhol e no mercado do Brasil. Vamos gravar um DVD lá e outro cá em Portugal.

Com uma agenda tão preenchida, é possível viver?

Vai-se vivendo. Foi-me dada uma oportunidade, abriu-se a porta do sucesso e vou querer gozá-la ao máximo. Não ao ponto de me esquecer que tenho mulher e dois filhos mas lembrando-me sempre que muitos gostavam de ter esta oportunidade.

Como é que os seus filhos reagem à vida do pai?

Ele tem dez  anos e ela tem seis. Já têm consciência de quem é o pai. No início, a minha filha apontava para a televisão e dizia:_“Olha o Anselmo Ralph”. E eu respondia: “Sim, estou a ver.” (risos) Quando o meu filho se apercebeu pela primeira vez tinha quatro anos, Olhou para a televisão, olhou para mim, sorriu e disse: “Papá” (risos). Era a mesma pessoa. Mas eles já quase não ligam. Já se tornou normal. Aliás. pelo contrário, talvez por serem alimentados pela mãe, dizem: “Pai, fica em casa”, ou “Pai, não saias do carro para tirar uma foto”.

E eles vão aos concertos?

Vão a alguns, mas depois querem subir ao palco e não pode ser. Têm que perceber que “o pai está a trabalhar”.