«Desculpa se sou mulher…»

Para lembrar a data em que se cumprem os 40 anos da reforma do Código Civil português, de 1977, e portanto a data em que ficou legalmente estabelecida a igualdade entre a mulher e o homem na família, optei por partilhar esta fotografia de uma mensagem muito forte, captada em Évora: «desculpa se sou mulher…

Habitualmente, associamos a atividade de pintar grafitos a homens, mas várias são as mulheres, sobretudo jovens, e muitas com excelentes dotes artísticos, que optam por se dedicar a mostrar a sua arte na rua ou, como é o caso da fotografia em causa, que fazem ouvir a sua opinião, escrevendo no espaço público.

A frase inscrita na parede remete para uma ideia antiquada mas, ainda assim, comum – a de que o lugar da mulher é na cozinha, em casa. Por vezes, chega a ouvir-se que mais valia que estivessem em casa a coser meias. Num tempo em que já ninguém cose meias…

A propósito da recente discussão das quotas para mulheres no Parlamento, a jornalista Catarina Carvalho, na revista Notícias Magazine, retoma o tema das meias, não as que há que coser, mas as que têm de ser apanhadas do chão: «As delas, as dos maridos e as dos filhos», afirmando que «quando apanhá-las está em causa, não há paridade – ou lei para a provocar – que resista». E acrescenta: «Enquanto as mulheres tiverem de repartir o seu tempo e atenção nessas tarefas (…), independentemente do seu papel no mundo, partem em pé de desigualdade para tudo o resto que as profissões que têm neste mundo lhes pede».

Na realidade, as mulheres foram, durante muito tempo, consideradas seres de segunda categoria. Dando o devido desconto, por se tratar do excerto do discurso de uma personagem de ficção, a verdade é que a afirmação do filho de Afonso da sarga ao seu irmão (personagens do romance, de Valter Hugo Mãe, O Remorso de Baltazar Serapião) constitui, na realidade, o retrato de um pensamento masculino comum na sociedade portuguesa (mas não só…), há não muito tempo: «na cabeça das mulheres muita coisa se incompleta de raciocínio, como se a sua inteligência fosse apenas uma reminiscência da inteligência verdadeira (…). como os garnizés podem parecer-se muito com os galos mas não são, assim as mulheres podem parecer-se muito connosco, mas não são, deus não o quis.»

Infelizmente, há ainda muitas mulheres, sobretudo com alguma idade, que, sem opção, estão cingidas ao lar, à cozinha. São estas mulheres «a quem a Mágoa chamou filha[s]», as que «aos homens e a Deus nada merece[m]», nas palavras de Florbela Espanca. Habituadas a tomar conta da família, a serem mães dos filhos e do marido, avós dos netos, tias dos sobrinhos e a assumirem um sem fim de outros papéis, limitam os seus dias à satisfação das necessidades dos outros, garantindo que têm comida, cama e roupa lavada. Ou, poeticamente, nas palavras de Drummond de Andrade: «Três meninos e duas meninas, / sendo uma ainda de colo. / A cozinheira preta, a copeira mulata, / o papagaio, o gato, o cachorro, / as galinhas gordas no palmo de horta / e a mulher que trata de tudo.»

Muitas são, efetivamente, as mulheres que não se importam ou até gostam de se ocupar destas tarefas, por ser a realidade que conhecem e, desta forma, se sentirem úteis. Porém, as gerações mais novas, quando ficam em casa, na maioria das vezes, é por opção, é por terem escolhido deixar de lado uma carreira, uma profissão, para se dedicarem ao bem-estar da família. Auxiliadas por empregadas, ou não, encaram as tarefas domésticas com naturalidade, repartindo as atividades por todos os membros da família. E, quando entram na cozinha, fazem-no por prazer, porque gostam de cozinhar, de transmitir o seu carinho através dos alimentos cozinhados a partir de receitas de blogues, de programas televisivos ou da sua própria imaginação.

Mesmo no grupo das mulheres que trabalham, vivendo sozinhas ou em família, muitas encaram as tarefas domésticas não como um fardo deixado nas costas da mulher, mas como uma consequência da vida numa casa que tem de ser limpa, onde é preciso preparar e fazer refeições. Recusam portanto a ideia de que cozinham por obrigação, em consequência de serem mulheres, encarando a tarefa com gosto.

Em parte devido aos vários programas televisivos sobre culinária, a arte de cozinhar foi recuperada e ocupa um lugar de destaque entre as atividades mais bem-vistas. Cozinhar para os amigos, cozinhar por prazer, cozinhar com alma e coração vieram substituir a tarefa rotineira de cozer peixe ou fritar um bife.

Enfim, valorizar o papel das mulheres na sociedade é um ato necessário para termos um mundo equilibrado, em que a dignidade da pessoa humana é respeitada na sua individualidade.

Mas, por vezes, para o conseguirmos, é preciso alcançar uma outra perspetiva, fazendo com que o mundo seja visto de outro ângulo, virando a vida do avesso, trocando o certo pelo incerto, vendo o que é feio naquilo que parece belo.

Escrito em parceria com o blogue da Letrário, Translation Services