Processo penal – verdades indizíveis

Sete e picos de uma manhã de verão: uma brigada policial toca à campainha de uma vivenda de dois pisos em Lisboa. 

Nela um adolescente e uma senhora idosa. Como a porta do jardim se não abrisse tão rapidamente como desejado, alguém da brigada salta o portão de entrada e apresta-se a escalar para a varanda do 1º andar, onde, ainda a apertar o robe de noite, surge a senhora idosa visivelmente assustada… 

Entretanto, no rés-do-chão, o adolescente abre a porta. A brigada entra de rompante. Era uma busca. Correria a casa toda. Crime investigado relativamente a alguém domiciliado na casa? Nenhum! Buscavam-se eventuais bens de um alegado criminoso que ali estivesse escondido. O suposto criminoso era indiciado de quê? De crimes económico-financeiros. Além da burla, obviamente, a previsão do possível branqueamento de capitais. 

Sem a enunciação deste tipo, no mandado, a maioria dos atos ultra-agressivos de investigação seria impossível. Por isso, não há processo de criminalidade económica que não tenha este crime no rol… haja ou não real indício dele… A busca decorreu em ambiente tenso. Mais tenso quando chegou o advogado do buscado. As subtis insinuações foram constantes. Nada encontrado. Nada apreendido.

À mesma hora, a mesma busca se iniciava fora de Lisboa. A equipa de inspetores era educada. Tocou à porta, aguardou que lha abrissem sem arrombamentos nem escalamentos. Aberta a porta, que também tardou o tempo necessário, a diligência decorreu com elevação. Ao chegar, o advogado do buscado foi cordialmente recebido pelos agentes. Um objeto foi apreendido. Viria depois a apreensão a ser levantada, demonstrado que foi que o bem em questão era do buscado, que nenhuma qualidade tinha ou tem no processo, e não do arguido.

A diferença de procedimentos não depende, pois, da lei, que é a mesma em Lisboa e no campo. A diferença está no modo de ser e de agir dos agentes. Uns distinguem a criminalidade violenta, altamente organizada, que exige abordagens musculadas, da criminalidade económico-financeira, que as não exige. Outros não conseguem. E investigam uma burla como se de tráfico ou de terrorismo se tratasse.

Noutra manhã, esta de inverno, com a alvorada inicia-se outra busca em 6 ou 7 locais. 

A entrada da brigada num deles, até foi pacífica, mas por aí terminou a ‘normalidade do acontecer’. 

Além de apreenderem e desligarem, de imediato, todos os telefones dos presentes, até os que estavam nos bolsos e carteiras dos mesmos, exigiram entrar nas contas de correio eletrónico da buscada. Ou seja, tendo mandado de busca, resolveram fazer revista, sem que nada o autorizasse. E não é por acaso que a lei distingue procedimentos para revista e procedimentos para busca. Paciência! É assim… o pela cultura do espírito o domínio da força só vale para a Justiça Cível. 

E não contente com copiar o teor completo das contas de correio eletrónico em questão, a investigação resolveu, sem que qualquer mandado sequer o pudesse ordenar, mudar as palavras-chave das contas de e-mail, para que a titular não mais lhes pudesse aceder. Questão: os OPC’s agora aplicam medidas de coação? Ou foi aquilo uma medida cautelar atípica? E, neste caso, onde está o cumprimento do que a lei manda fazer nesses casos? Não está! No criminal, tudo é possível. Com lei, sem lei, contra a lei.

Andando anos para trás, descobriremos outra característica interessante do modus operandi das investigações no que respeita a buscas e apreensões no âmbito da criminalidade económico-financeira. 

A prática é clara: apreende-se tudo! O que tenha que ver, o que possa ter que ver e até o que em caso algum possa ter conexão com o tema dos autos. In dubio, apreende-se… depois se verá! O pior é que o depois é, por regra, nunca.

Assim que, em alguns dos mais gigantescos processos criminais envolvendo ‘bancos’, tenham sido apreendidos e tenham passado o crivo do MP, do JIC, dos Juízes de Julgamento, milhões de ficheiros que nada tinham que ver com o objeto da investigação. 

Exemplos? E-mails, cartas, manuscritos e fotografias, alguns relativos à vida íntima de pessoas que nem sequer tinham, ou têm, nada que ver com os processos. E quando se diz fotografias íntimas, está a referir-se fotografias de conteúdo sexual explícito que alguns trabalhadores, indevidamente, guardavam nos computadores.

Pergunta: se alguém vê o conteúdo do que é apreendido, ao longo dos 7 ou 8 anos que as investigações demoram em inquérito, então como podem integrar o processo, quando este chega a julgamento, as ditas fotografias, correspondência e documentos relativos à vida íntima, privada, até sexual, de pessoas que nada são no processo? A resposta é clara: ninguém viu, ninguém fiscalizou, ninguém ordenou a destruição dos mesmos. Logo, fica tudo no processo, para gozo geral.

Esta prática tem uma consequência grave, além da exposição da vida privada dos buscados: traz para dentro dos processos quantidades indeglutíveis de informação, que só prejudicam e complicam, quando se trata de estudar o processo, defender arguidos, representar partes civis e mesmo julgar… Ao acusador não complica, ajuda: quanto mais confuso for o processo, mais difícil o trabalho das defesas. E em Portugal o MP tem mesmo a coragem de escrever, em certos processos, que ‘é parte’! Quando a lei e a doutrina dizem que o não pode ser. Mas isto, infelizmente, ninguém escreve! Nem os tribunais, que o afirmam oralmente, mas que por pudor na escrita não censuram os milhões de documentos inúteis que a investigação carreia para o processo para fim absolutamente nenhum, e muitas vezes em violação da lei, da boa prática e da Justiça.

A lógica da pesca de arrasto usada pelas investigações, violadora dos mais básicos direitos de todos os envolvidos nas mesmas, causadora de gigantismos processuais totalmente estéreis de utilidade e prenhes de efeitos nefastos, porém, não se limita ao resultado conseguido pelas famosas buscas e apreensões em processos de criminalidade económica que enchem hoje em dia as notícias.

O mesmo se passa com a rainha das provas em processo penal: as escutas! Sejam telefónicas, ambientais, remotas, o que for. Tanto quanto se saiba, ainda não foi revogada a norma que obriga a que alguém, que tutela as garantias dos cidadãos, mande destruir a totalidade das escutas inúteis ou ilegais. 

Questão: se há alguém com esse dever, sacrossanto, de proteger a intimidade da vida privada, familiar, sexual, das pessoas, por que demónios estão em processos escutas cujo teor único é precisamente essa mesma intimidade? Realmente deve ser difícil ouvir toda e cada uma das escutas, para detetar quais não podem sobreviver no processo. E é óbvio ser impossível pedir a uma só pessoa que as ouça todas. Ça va de soit! Então arranjem quem as ouça, para que a lei se cumpra. E não se afirme que a lei tutela os direitos das pessoas. A lei tutela… a prática não.

Temos um sistema legal perfeito, objeto de aplauso pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. O problema é que, entre o sistema legal e a prática diária, não vai um passo – vão quilómetros! Na prática, o sistema é o oposto daquilo que a lei afirma. E o que se diz para as escutas telefónicas vale ipsis verbis para a apreensão de ‘correspondências’ – feita tantas vezes a esmo, sem controlo.

Em suma, grande parte dos megaprocessos só existe por vontade e objetivos óbvios da investigação. Muitos têm conversas, fotos, correspondência que nunca deles deveria ter feito parte. Mas acontece. A eito e a esmo. Sem controlo.

Mais assustador do que isto só as duas regras, sem exceção, que as autoridades portuguesas continuam a aplicar sem perceber que só cá assim sucede: 

(i) A regra da detenção para interrogar ou inquirir, independentemente de o visado se disponibilizar a comparecer no próprio dia ou no seguinte, como aconteceu em casos mediáticos recentes; 

(ii) A regra de que as 48 horas de duração máxima da detenção está ‘cumprida’ com o ouvir a identificação do arguido, mandando-o depois ficar nessa condição todo o tempo que seja necessário até que o tribunal se considere capaz de o ouvir, ou de terminar a audição do mesmo. Dir-se-á que a regra é que a detenção só pode durar 48 horas até haver um ‘passou-bem’ ao juiz. Mas a situação de detenção, antes de aplicada qualquer medida de coação, tanto pode durar 48 horas como 48 dias ou 48 meses… o absurdo do raciocínio demonstra bem o irracional da interpretação da lei que cá é feita. Graças a Deus, noutras paragens da Europa civilizada tal não sucede. Deveria cobrir de vergonha o país pioneiro na abolição da pena de morte!

É com esta prática travestida de Direito que o leitor um dia pode ter com que se confrontar … Verá que, se for o caso, lhe parecerá mal, muito mal. Mas enquanto for com os outros, tudo bem! 

P.S. – Provas de todos os casos relatados estão ao dispor, para demonstração em qualquer sede em que tal se mostre necessário.

 

Opinião de P. Saragoça da Matta

Advogado