Paulo Ralha. “Um inspetor teve um processo disciplinar por investigar o universo BES”

O presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos fala num clima de medo desde que foi criada a lista VIP.

Como explica que tenha escapado à Autoridade Tributária esta saída dos tais 10 mil milhões de euros?

Ainda falta apurar alguns factos, ainda é prematuro dizer que escaparam ou não escaparam. O que parece é que há um erro grosseiro, e esse erro grosseiro, pelas experiências existentes, não me parece que se deva apenas a um programa informático. O programa informático não trabalha sozinho e há duas situações que fazem ponderar muito sobre se houve um erro apenas informático ou se houve mais do que um erro informático e, pelas informações que temos, neste momento inclino-me muito mais para a tese do erro humano, independentemente de ser doloso ou não. Neste momento está fora de causa a questão do dolo.

E quais são essas situações?

Primeiro, a coincidência temporal. A omissão destes dados começa a ser grave depois da tomada de posse de Brigas Afonso. E depois há outra coincidência. Até essa altura, havia no sistema uma seletividade dos processos das transferências que iam para análise, e estes eram de pouco montante. Mas a partir do momento em que Brigas Afonso toma posse começam a surgir os montantes elevados. Se juntarmos este facto à seletividade no tipo de transferências, à origem destas transferências, e se é verdade que são do BES, como tem sido amplamente divulgado, temos aqui duas coincidências que, do meu ponto de vista, são claramente indiciadoras não apenas de um erro do programa informático, mas de mais do que um erro de um programa informático.

Acredita que possa ter existido alguma atividade ilícita?

Todas as transferências que são declaradas através do modelo 38 têm de ser analisadas. E não é dizer à partida se são lícitas ou ilícitas, carecem, sim, de uma análise, e isso é que é importante. Ou seja, o importante é ver qual é a origem do dinheiro porque é aí que pode estar o problema das offshores, porque as transferências são lícitas. Aliás, estas transferências são feitas através de um processo com alguma transparência. São declaradas à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) e a partir daí é preciso saber de onde vem o dinheiro e depois, se for caso disso, ver para onde é que foi o dinheiro. É nestes circuitos que está o crime, não é na transferência propriamente dita.

Mas são transferências que escaparam ao pagamento de impostos?

Não, neste tipo de transferências, os impostos são pagos. A questão é saber como é que foi adquirido o dinheiro e é isso que carece de investigação. A questão de ter sido alargado o prazo para a prescrição na liquidação do imposto não se coloca. É uma questão praticamente irrelevante porque o imposto já está pago. 

Mas esse foi um dos argumentos usados por Paulo Núncio ao dizer que aumentou a caducidade do prazo da prescrição para quem mandava dinheiro para offshores…

O problema não é o imposto em falta, porque não há. É a questão do crime, e depois há outra coisa. Há aqui duas situações. Quando nós, eventualmente, detetamos uma disparidade muito grande, e se formos analisar o dinheiro, das duas uma: ou o dinheiro já desapareceu porque, por exemplo, o BES já desapareceu, ou são empresas em que não vamos buscar absolutamente nada. Ou seja, aí, a questão da liquidação é inútil, ou então vamos para a questão do crime, e aí sim, quando há a aquisição destes montantes através de atividades ilícitas há uma transferência que depois vai passar por lavandarias fiscais, e depois o dinheiro entra no circuito normal como estando regularizado. Mas é sempre uma questão criminal, e não uma questão de liquidação do imposto.

E aí terá de ser o Ministério Público a atuar…

O Ministério Público e não só – cabe também à Autoridade Tributária detetar essas situações. Mas é claro que toda a investigação tem de ser coordenada com o Ministério Público. 

Mas destas 20 declarações que escaparam, 18 já apanham o atual governo…

É provável, mas sobre isso não posso falar porque nem tenho o conhecimento concreto das declarações nem das datas, porque estas declarações têm de ser apresentadas estatisticamente até outubro de cada ano. E, como são operações complexas, podem ser diferidas no tempo e, como tal, as instituições financeiras têm um prazo acrescido de seis meses para apresentar esses dados. E além da complexidade há aqui também muita contrainformação. Sabemos que essas declarações são de 2011, 2012, 2013 e 2014, mas carecem de mais pormenores para podermos dizer se houve ou não liquidação. Mas, mais uma vez, não é a questão da liquidação que está em causa, é uma questão de crime associado à origem do dinheiro. 

Mas uma das justificações que foi dada dizia respeito à falta de um subdiretor de informática que não houve durante três anos…

O cargo, não estando ocupado oficialmente, ou seja, por nomeação, estava ocupado em regime de substituição. Hoje em dia temos chefes em regime de substituição por todo o país e não é por esse facto que são menos responsáveis pelos atos que praticam. E na altura, apesar de não haver um subdiretor geral para a área de sistemas de informação, havia uma responsável pela área. E essa responsável pela área, mesmo em regime de substituição, tem naturalmente de arcar com as responsabilidades. O que não entendemos é porque não há responsáveis. Há pessoas que ocupam os lugares na direção-geral, que recebem bastante bem – aliás, o nosso diretor-geral deve ser um dos mais bem pagos da administração pública – e não sabem de nada. Então o que estiveram lá a fazer? Isso é uma irresponsabilidade tremenda. Um trabalhador, por muito menos, é alvo de um processo disciplinar porque tem de saber. E um alto cargo ocupado por uma pessoa destas diz que não sabe de nada? Isto é absolutamente inadmissível e incompreensível. 

E se um subdiretor não controla as transferências também poderá não controlar os outros impostos?

Grande parte dessa cobrança é automatizada. O que não se compreende é que situações deste tipo aconteçam e porque é que cargos destes estão a ser ocupados por pessoas que não sabem de nada. Têm de ser responsabilizados. Se há responsabilidade para os trabalhadores, também têm de haver responsabilidade para as chefias e para os dirigentes. 

Mas continua a existir um clima de medo dentro da AT para os inspetores fazerem essas investigações?

Sem dúvida. Grande parte dessas transferências eram do universo BES e temos um colega a quem foi instaurado um processo de averiguação e, depois, um processo disciplinar por estar com ordem de serviço a investigar o universo BES.

E essa ordem de serviço foi assinada por quem?

Pela responsável direta dele. Tinha uma ordem de serviço para verificar uma situação do universo BES e, quando estava a fazer a inspeção, foi alvo desse processo. Isto foi na sequência da lista VIP, que não durou os quatro meses que foram ditos, e o universo também foi mais longe do que aqueles quatro nomes que foram indicados. E isso ainda hoje funciona como uma arma intimidatória sobre os trabalhadores, é um mecanismo de repressão contra os trabalhadores e contra a forma de atuar da Autoridade Tributária.