Mão Morta. Variações, orquestrações, mutações

Entre o passado recente do espectáculo com o Remix Ensemble, a reconstrução de “Mutantes S. 21” e a gestação de um novo álbum, o ano dos Mão Morta vai ser inquieto 

Quando do primeiro ensaio no Theatro Circo com o Remix Ensemble, os Mão Morta só pensavam: “Vamos fugir”. Não, não era o incitamento lançado pela canção recuperada para o alinhamento do agora subtitulado com sarcasmo de “Nós Somos Aqueles Contra Quem Os Nossos Pais Nos Avisaram”, “ponto de chegada “não referido durante a minidigressão por Braga, Porto, Coimbra e Lisboa no ano passado. Era a conclusão imediata de um encontro inicial com o ensemble requisitado pela banda bracarense para o espetáculo de encerramento das comemorações do 100º aniversário do Theatro Circo. “O ensaio foi o caos completo porque ninguém ouvia ninguém”, não esquece. “O primeiro dia foi péssimo. Vamos embora que isto vai ser um buraco horrível”, conta Adolfo Luxúria Canibal.

Entre as correções obrigatórias, era necessário pensar numa forma de acomodar o formato ao palco. O grupo pensara em arrumar o Remix Ensemble em andaimes. “Mas quando chegámos ao Theatro Circo não cabiam. Então foi necessário improvisar uma solução de última hora”. recorda. Remédio: colocar biombos e acrílicos a separar as duas dimensões sonoras. Ultrapassado o desafio técnico, a criação não se voltou contra o criador e o “real ultrapassou as melhores expectativas”. A gravação agora ouvida recupera a estreia do espetáculo no Theatro Circo. “Ouvimos e estava pronta a editar”, refere sem esconder alguma surpresa na primeira reação ao resultado final do áudio.

Todo o processo decorrera à distância com o arranjador Telmo Marques, antigo teclista dos GNR, fã de Frank Zappa e músico identificado com as linguagens do rock e da música erudita. “Explicamos-lhe o que pretendíamos. Não era um adorno.” E o músico fez uma escolha a partir de uma primeira seleção dos Mão Morta de forma a encontrar “um choque entre as duas entidades para chegar a um estado terceiro de ultrapassagem. Uma coisa nova”, define. E assim se chegou a uma colisão entre a eletricidade e a uma orquestra. “A ideia de que a elite e o popular não se dão foi derrotada e o resultado a que se chegou não é elitista nem popular. É um híbrido estranho”, defende Adolfo Luxúria Canibal.

De facto, a relação entre a eletricidade e as orquestras vem de muito longe e remete para o rock sinfónico mitificado por bandas como os Genesis ou os Yes que, entre o final dos anos 60 e meados dos anos 70, registaram algumas das obras mais opulentas e grandiosas na forma da história do rock. Goste-se ou não, sem discos como “Close To The Edge”, “Tales from Topographic Oceans” – os dois dos Yes nos anos consecutivos de 1972 e 1973 – “Selling England by the Pound” e The Lamb Lies Down on Broadway” dos Genesis na mesma época, talvez o punk sido mesmo necessário para devolver a espontaneidade e a fúria à arte elétrica, quando imperava o virtuosismo técnico, ornamentos e barroquismos.

Mão Morta e o Remix Ensemble voltaram a encontrar-se na Avenida dos Aliados em Setembro para uma retoma breve do espetáculo. Por agora, os Mão Morta preparam um concerto de comemoração de “Mutantes S. 21” (ver caixa). Pela primeira vez, interpretarão na íntegra o álbum de 1992 mas o exercício não será de revisionismo puro. A edição especial do disco – hoje um objeto de coleção – continha uma banda desenhada ilustrativa de cada um das nove teias citadinas. A banda quis fazer-lhe justiça e pediu a 15 ilustradores para criar universos visuais para cada uma das canções a apresentar ao vivo.

Um primeiro convite foi recusado porque, lembra o vocalista, “tornou-se uma banalidade o exercício e de todos os álbuns repostos, só houve um que me tocou. O “Horses” da Patti Smith”, assume. “Passou a ser mais publicidade que trabalho artístico”, adiciona. Mas quando repararam que “Mutantes S. 21” se preparava para atingir a marca dos 25 anos, aceitaram. E partindo do “lado mais espetacular do vinil, o gráfico”, desenham agora o conceito do espetáculo que estará na estrada. A imagética de um disco “sobre temáticas geográficas e referências urbanas” será adaptada com “projeções e técnicas próximas do video-mapping. Ilustrações estáticas mas passíveis de ganhar movimento”, anuncia. “Intervenções de outras artísticas que contaminem o espetáculo” e contornem o mero ato nostálgico.

Viradas as duas páginas, e com “Mutantes S.21 em manutenção” a banda estará de volta à composição de raiz. Após o verão, os Mão Morta planeiam ir para estúdio, gravar um álbum e editá-lo antes do final do ano. Novembro é o mês prometido. O processo ainda está em embrião e Adolfo Luxúria Canibal não esconde que “ainda não sabe a que irá soar” mas todos os atos do grupo têm uma intenção declarada. Por exemplo, no anterior “Pelo Meu Relógio São Horas de Matar” a ideia “passou por trabalhar a lentidão e daí terem saído canções tão pesadas”.

No 2017 dos Mão Morta, não há lugar para a inércia. Passado recente, presente revisitado e futuro imediato: três tabuleiros em que se joga. Até cair.

Adolfo Luxúria Canibal recorda-o como o álbum “da transição do vinil para o CD” mas “Mutantes S. 21” foi, além de um dos álbuns mais elogiados e recordados da música portuguesa dos anos 90, o responsável pela subida de “banda de culto” à primeira divisão. Foi um “vai ou racha”. Os Mão Morta fecharam-se no estúdio Angel com o produtor José Fortes. Quase não deram concertos em 1992. E no final do ano chegaria o álbum. O impacto nacional só chegou no ano seguinte, largamente impulsionado por “Budapeste” e por um refrão ainda hoje guardado na memória: “sempre a abrir noite toda, sempre a rock’n’rollar”. A terceira canção do périplo citadino pelo submundo cresceu graças ao programa “Pop-Off” da RTP2 e ao vídeo de José Pinheiro. Estava identificado o hino, facto que levou a banda a abandoná-lo durante anos. Um divórcio parecido com o dos Radiohead de “Creep”. Ultrapassado o período de nojo, voltaram a Peste e a Buda mas seria injusto reduzir as nove cidades a uma só. “Mutantes S. 21” arranca em Lisboa – “táxi, Casal Ventoso sff”, remata Adolfo Luxúria Canibal, pisa o risco vermelho da Amesterdão do sexo e das drogas, continua em Budapeste, segue para a Plaza Real de Barcelona, toma o gosto às especiarias de Marraquexe, viaja à Berlim da queda do muro, deleita-se nas artes e letras de Paris, deita-se no mistério de Istambul e vê a luz a Oriente no local místico de Shambalah. A seguir, assinaram por uma multinacional. Voltariam à independência depressa.