A farpa

Se não estivesse a escrever num jornal, escreveria ‘merda!’, com ponto de exclamação. Porque nunca se escreveu e disse tanta como nos últimos tempos.

Em todo o lado, nas televisões, nos jornais, nos clubes de futebol, no Parlamento Europeu. É muita da dita ou dita a mais.

Bruno de Carvalho, presidente do Sporting reeleito por oxaniana maioria no fim de semana passado, discursou triunfante depois de proclamados os resultados. Cercado por adeptos do clube de Alvalade, evocou o tio avô em cercos de outros tempos e mandou «bardamerda» os não sportinguistas (como Pinheiro de Azevedo, à saída da Assembleia da República, ‘chateado’ por ter estado sequestrado no Parlamento, bradou «bardamerda mais o fascista»).

A madrugada já ia avançada e Bruno de Carvalho não resistiu.

Horas mais tarde, terminado o Sporting-Guimarães, para a 1.ª Liga, com um empate a um golo, depois de um encontro em que nem a exibição (tirando a do avançado Bas Dost) se salvou, foi às bancadas pedir desculpa às claques sportinguistas pela porcaria de jogo que a equipa de Jesus acabara de fazer.

É claro que o presidente de um clube de futebol, sobretudo com a dimensão social do Sporting, não deve fazer uso público, nem privado, de palavrões.

Mas daí a transformar a afirmação de Bruno de Carvalho num caso da semana, com direito a comentários e análises de horas nas televisões, vai uma distância maior do que a que separa o Sporting dos primeiros classificados do campeonato.

Bruno de Carvalho ganhou com 90 por cento dos votos dos sócios sportinguistas porque é como é. Polémico, apaixonado, desabrido no discurso.

Num clube sem as receitas dos rivais nem os resultados desportivos, tem de o ser.

Ou o Sporting, elitista, sulista, bem comportado e acomodado, será o eterno terceiro e não um dos três grandes.

Mas voltemos à dita cuja que faz título deste texto.

Dias antes de Bruno de Carvalho ter mandado a tal destino quem não partilha das suas preferências clubísticas, Jean Claude Juncker, no plenário do Parlamento Europeu, irritado com os eurodeputados e a falta de cultura democrática e de debate construtivo, não resistiu a recorrer à latina palavra de cinco letrinhas apenas e que mais não é do que o menos repudiável de todos os palavrões. E m bom francês, soltou: «Merde!».

Corrigiu de imediato: «Se não estivesse no Parlamento Europeu, diria merda».

Ou seja, reincidiu.

Tal como ao presidente do Sporting, também ao presidente da Comissão Europeia não fica bem utilizar palavrões. Nem a quem escreve em jornais, fala na rádio,  debate na televisão, interage em público.

Reza uma anedota que estando um padre em pleno púlpito e dirigindo-se aos fieis, tendo espetado uma farpa ao apoiar a mão, ante a dor e os crentes, exclamou: «Virgem Santíssima!!!». Terminada a missa, o sacristão chamou o marceneiro ali presente e pediu-lhe que tratasse mal pudesse do polimento das madeiras. Ao que o homem, com ferramentas ao dispor, de pronto tirou o casaco e deitou mãos à obra, enquanto o padre e o sacristão preparavam o fecho da igreja. Errando um prego saído na mesa do altar e acertando com o martelo em cheio num dedo, o marceneiro soltou um grito bem audível: «Porra!». Ao que o sacristão acorreu de imediato, condenando-o e corrigindo-o:  num templo sagrado, na casa de Deus, não se admitem blasfémias; se se magoou, faça como o senhor prior e diga, por exemplo, ‘Virgem Santíssima’. O padre, assistindo à cena, sorriu e manteve-se nos seus afazeres. Nem minutos depois, o marceneiro, agora de serra em punho,  cortou um dedo e a falange rolou até aos pés do padre. «Virgem Santíssima!!!», logo gritou o marceneiro. E não é que a falange começou a mover-se e recompôs-se no dedo, voltando a mão à normalidade? E, perante o milagre, ecoou na igreja em silêncio a exclamação incrédula e atónita do pároco: «Poooooorra!».

Ele há ocasiões em que o mesmo termo, a mesma palavra ou até palavrão, tem significados bem diferentes e pode ser mais ou menos apropriado.

No enquadramento de uma madrugada eletiva, rodeado de fanáticos que nele depositam a esperança de um Sporting com ambição de vitórias e de títulos, Bruno de Carvalho não fez nada de mais. Disse o que lhe veio à cabeça.

No Parlamento Europeu, rodeado de cadeiras vazias e de um  punhado de deputados que, agarrados aos discursos dos grupos parlamentares e partidos respetivos, ignoram as propostas da Comissão Europeia e fazem tábua rasa dos caminhos possíveis para o futuro da Europa resumidos em livro branco, Juncker aplicou o termo com toda a propriedade.

Mutatis mutandis, no debate quinzenal parlamentar entre Governo e Oposição, nesta quarta-feira, o tom dos discursos e das intervenções não andou muito longe dos impropérios de Bruno de Carvalho e de Juncker.

Eventualmente, desceu até a nível mais baixo. E, como é regra por cá como lá fora, assim fez subir o interesse e a atenção dos meios de comunicação social.

Ele há, de facto, ocasiões em que só mesmo um bom palavrão – daqueles socialmente menos censuráveis – pode na verdade despertar consciências e surtir  efeito.

É que, sinceramente, não faltam ocasiões nem momentos em que, parafraseando Juncker ou Bruno de Carvalho, apetece mandar tudo à merda… ou bardamerda.