14 de março de 1958. Quando o sangue da arena deixou de ser a branco e preto…

Primeiro filme a cores do cinema português, com Amália Rodrigues e Diamantino Vizeu como protagonistas, fez sucesso na sua estreia, no Condes.

Anunciava-se alegremente a segunda semana triunfal de “Sangue Toureiro”, o filme realizado por Augusto Fraga, o primeiro a cores do cinema português.

Augusto Fraga: nascido em Lisboa, no dia 18 de setembro de 1910, jornalista, crítico, ilustrador cinematográfico. Redator de “O Século” nos anos 40, colaborador do suplemento “Êxito”, do “Diário de Lisboa”, argumentista, realizador. O homem do verismo. Admito: de que se trata isso, o verismo?, perguntarão alguns dos que me leem. E eu aproveito as palavras do próprio Fraga: “O verismo cinematográfico seria a fórmula ideal para manter a emoção nos temas taurinos filmados, se o realizador não tropeçasse com o grave inconveniente de ter de buscar um cidadão disposto a deixar–se colher por um touro no momento previamente assinalado no guião.” O facto é que Augusto Fraga encontrou mesmo um cidadão disposto a isso, e o mais indicado deles todos, como já veremos. Mas, entretanto, explique-se a trama. Em Vinhais há um abastado proprietário de terras apaixonado pela festa brava: chama-se Jerónimo e tem um filho, Eduardo. Ora, este Eduardo fascina-se por uma fadista, Maria da Graça, e vive a seu lado a boémia de Lisboa. Sem o dinheiro do pai, que lhe corta o financiamento por causa da esbórnia, torna-se toureiro. Certo dia é colhido por um touro em plena arena. Sangue! A sua recuperação é acompanhada à cabeceira por Isabel, a sua antiga noiva, que lhe perdoa os escândalos e a má vida. Regressa a casa e toma conta das propriedades paternas. Simples e direto ao coração.

Figuras 

Muitas são as figuras que fizeram parte deste filme histórico do cinema em Portugal. A começar pelo argumentista, Patrício Alvares, que conheci na velha redação d’“A Bola”, na Travessa da Queimada. Boxeur, campeão de Lisboa, jogador de râguebi, mais tarde jornalista. Ou Nuno Ferrari, um dos mestres com quem trabalhei, assistente de imagem. Maria da Graça, a fadista, foi Amália Rodrigues, e melhor escolha não podia haver. O toureiro, Eduardo, foi Diamantino Vizeu, o primeiro matador português, que fez carreira em Espanha, pois claro!, e foi grande rival de Manuel dos Santos.

É aqui que cabe falar da cena de sangue. Diamantino Vizeu colhido pelo touro. “Sangue Toureiro”. A película retratando a realidade. Augusto Fraga que o diga: “Como jornalista, orgulho-me de dizer que a colhida de Diamantino, no meu filme, tem o sabor de reportagem. Aqui, o jornalista venceu o cineasta, que parecia condenado a saturar-se de técnica capaz de resolver indispensáveis problemas, os quais surgem sempre que o toureiro profissional tem de substituir o ator nos fotogramas que captam cenas de lide. Aqui, o toureiro foi o ator e este foi aquele.”

Ou seja, Diamantino Vizeu foi mesmo colhido, na arena, pelo touro, e a cena ultrapassou a autenticidade convincente do cinema neorrealista italiano que, na altura, fazia escola. Diamantino Vizeu colhido na vida e na morte. Colhido também por um automóvel na Avenida de Berna, no dia 11 de fevereiro de 2001. A colhida fatal. Tinha 77 anos. Sangue no asfalto.

Eastmancolor

Era uma novidade completa. Um processo inventado pela Kodak. A cor tomava conta das telas no cinema falado em português. Diamantino Vizeu era um toureiro de tal ordem conhecido que, tal como o ídolo, Manolete, teve direito a um passe que levava o seu nome: “a diamantina”. Uma variante da “manoletina”.

Havia o cenário maravilhoso do Tejo e das lezírias. E uma Lisboa moderna, de avenidas novas e carros vistosos. Havia os vestidos negros de Amália, de rosa vermelha ao peito e mantilha verde, cantando: “Toiros e sol/ Não há nada/ Que uma toirada com mais emoção/ Não há festa com mais cor/ Que mais fale ao coração/ É bom ver um cavaleiro/ Tem gosto, um tique nas varas/ Eu sinto o sangue toureiro/ Ante uma pega de caras.”

Diziam: a boca de Amália parecia uma ferida sangrando por entre tanto negro.

Havia também o humor, o cinema português desse tempo raramente dispensava o humor e as canções. Havia uma jornalista americana, Miss Brown, representada por Fernanda Borsatti, e o seu cicerone, Faustino, um jovenzinho que tinha o nome de Raul Solnado.

Sobretudo, havia o toureio. O toureio português com os arrebiques rococós dos cavalos e a excitação das pegas dos forcados. O imprevisto. A sorte ou a desgraça do toureiro. A ovação unânime e ensurdecedora. A visão folclórica da festa. Do público. Do drama. Eduardo por terra na vitória negra do touro. A dureza bruta da arena.

Sol e sombra.

A cores.