John Romão. “Perdeu-se o pudor de fazer não tendo a certeza absoluta”

Arranca hoje a primeira edição da BoCA – Bienal de Artes Contemporâneas, um projeto do encenador e ator John Romão.

Uma máquina de pinball com Roberto Carlos e Britney Spears não é objeto  que se espere encontrar num museu de arte antiga, ainda menos se der para jogar e sem pagar e ao lado de um tríptico de Bosch de 1505, “As Tentações de Santo Antão”. Mas isso era até hoje, o dia em que arranca a primeira edição da BoCA, a bienal de artes contemporâneas que até ao final de Abril toma conta de Lisboa e do Porto, lançada pelo ator, encenador e agora programador John Romão, com quem nos encontrámos no jardim do Museu Nacional de Arte Antiga, onde arranca a programação com esta obra do encenador e dramaturgo Rodrigo García, com quem colabora há 11 anos, para uma conversa sobre esta bienal, o que deve ser a arte e o modo como ela opera neste mundo em mudança.

João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira encenam o seu primeiro espetáculo numa tenda de circo, a realizadora Salomé Lamas faz o mesmo no CCB num projeto que em paralelo dará um filme, Vhils faz apresenta uma obra em palco. De onde veio esta vontade de dar aos artistas espaço para criarem fora das suas áreas habituais que parece ser o fio condutor da BoCA?

Veio da necessidade de cruzar estes territórios artísticos, que é uma prática corrente já nas próprias linguagens artísticas mais contemporâneas. Olhando para aquilo que está a acontecer, o objetivo desta bienal é assumir isso como algo primordial e não como algo secundário, como constantemente tem sido tratado.

Houve um convite a vários artistas para criarem fora do seu formato de especialização. O facto de querer chamar bienal a isto e não festival já é uma decisão que comporta expectativas também. Geralmente as bienais estão associadas a uma só cidade e apenas ao campo das artes visuais. Nós aqui ampliamos aquilo que é considerado arte, que normalmente se restringe aos campos visuais, às artes na sua pluralidade.

E qual foi a reação dos artistas?

Nalguns casos até foram os artistas que propuseram esse desvio, e isso é engraçado. O João Pedro Vale foi uma das primeiras pessoas com quem falei porque tinha acabado de trabalhar com ele em duas peças minhas. Ele já tinha experimentado tantos formatos diferentes que a única coisa que lhe faltava era criar o seu próprio espetáculo e perguntei-lhe se não queria fazê-lo neste contexto. Ele pensou um pouco e depois ele e o Nuno Alexandre Ferreira disseram que tinham uma ideia que era criar um espetáculo de circo, temática em que já andavam a pensar há algum tempo, penso que até para um filme, inicialmente. No caso do Alexandre Farto o ponto de partida foi pensando que a obra dele são trabalhos muito site specific. E a proposta era a de um desvio conceptual, no sentido em que se cria uma obra em palco que nasce e morre à frente dos nossos olhos. O que é engraçado é que depois os próprios artistas foram manifestando o desejo de operar fora do seu contexto habitual.

O que revela que talvez estivesse a faltar espaço para isso. 

Este desvio é comum mas tem sempre este lado excêntrico  e acho que não devemos olhar para esse desvio como uma raridade ou excentricidade porque é algo primordial e que deve estar entranhado nas práticas artísticas contemporâneas. Por exemplo o Romeu Castellucci é considerado um grande encenador mas estudou artes plásticas, daí a sua linguagem ser tão visual. Ele também cria instalações e performances que são apresentadas em todo o mundo, que por acaso a Portugal nunca vieram. Digamos que o artista não se esgota nessas obras. O que a BoCA propõe é mostrar essas outras facetas, que um artista nunca é uma só coisa, que não é necessariamente aquela imediatez que se conhece dele. E todas as minhas propostas para sítios, como o caso do Rodrigo García para aqui [MNAA] ou do Alexandre Farto para o CCB, foram muito bem recebidas pelos próprios programadores e diretores artísticos. Portanto, não há essa prática corrente nas instituições mas há a abertura e o desejo para que isso aconteça e esse desejo encontra aqui o seu contexto. Muitos  festivais programam os artistas que já costumam ir às próprias casas, encontram ali um contexto para mais uma peça, mas na verdade aquele artista e aquela peça não precisam do contexto daquele festival para estar ali. Com esta bienal tentei que todos os projetos não fossem projetos de gaveta nem projetos que estão em circulação normalmente, são projetos que nasceram para aqui especialmente.

E ao mesmo tempo não tínhamos uma bienal em Lisboa nem no Porto.

Sei que já houve várias tentativas de fazer o que é uma bienal a sério e não estamos aqui a tentar substituir a carência de não haver uma bienal. Esta não é uma bienal de Lisboa nem do Porto, é uma bienal que se chama BoCA. O seu objetivo não é replicar uma bienal de arte contemporânea mas olhar para aquilo que está a acontecer no mundo, sobretudo com artistas mais jovens que operam com muita facilidade estes desvios, que incorporam muitas ferramentas completamente desconhecidas no seu trabalho e que não têm pudor do desconhecido. Coisa que na era da especialização não acontecia –  um escultor faz esculturas. Agora perdeu-se o pudor de entrar em territórios mais incógnitos, mais desconhecidos, de arriscar, de fazer não tendo a certeza absoluta. Esta incerteza é uma característica do nosso tempo e da nossa sociedade que os artistas absorvem. Por outro lado, penso que esta operação desviante de muitos artistas, de absorção de informação e de referências de outros campos artísticos representa também uma resposta ao poder político que se está a tentar instituir na Europa e nos EUA com o que começam a ser políticas de extrema-direita que visam  uma espécie de fechamento do pensamento.

De normatização.

De normatização, de um extremismo que as artes tentam equilibrar, de uma forma quase animal até, porque não há uma carta ou um contrato assinado a dizer que a arte tem que ter este papel, mas, sem se perceber bem como, a arte tenta equilibrar esse fechamento através de uma abertura cada vez maior ao outro.

Sentimos mesmo que temos esse papel e não sabemos bem porquê.

Sentes isso enquanto artista?

Sim, tem acontecido gradualmente. Muitos artistas, e aqueles que programamos em geral, são artistas que transportam essa responsabilidade ética quase. 

Isso foi um critério ou aconteceu?

Há várias camadas em que pensei quando fiz a programação. Uma delas tem a ver com o acesso à diversidade de propostas artísticas e outras menos artísticas mas que estão contextualizadas e que quase questionam a pertinência de estarem integradas numa bienal de artes, como por exemplo o campeonato internacional de fingerboard. São afirmações que criam reações importantes, tão importantes quanto uma escultura ou uma videoinstalação. Enfim, a pluralidade de registos, de formatos e de estéticas interessou-me muito porque um dos papéis que esta bienal tem é o de tentar desmistificar um certo barroquismo que existe em torno da leitura da arte contemporânea. Tentei ter uma programação plural nesse sentido, pensando muito num público não especializado. A maior parte das nossas propostas são de entrada livre atendendo também a esse propósito e a um público jovem sobretudo,   pensando também no público especializado ao qual proporcionamos conhecer espaços e artistas que não conhece. O encenador e dramaturgo Rodrigo García vai estar aqui no Museu Nacional de Arte Antiga e o público das artes performativas que o conhece desloca-se ao museu não para ver uma performance do Rodrigo, mas uma instalação. 

E de repente o público habitual do MNAA confronta-se com uma máquina de pinball dele.

Tal como acredito que o público especialista em teatro não saiba quem são o João Maria Gusmão e o Pedro Paiva, que vão ter uma exposição no palco do D. Maria II. Há um público de artes plásticas que se desloca a um teatro para ver uma exposição num palco mas também o público daquele teatro que recebe um programa com as peças de Shakespeare e do Tiago Rodrigues e vê no programa uma exposição de artes plásticas naquele espaço a que é fiel. Ao mesmo tempo queremos deixar cair a máscara das convenções e do decoro que existem à volta da arte contemporânea, que muita gente considera um monstro. Aqui a arte contemporânea surge como uma linguagem que nos é muito próxima em que podes criar os critérios de perceção de cada obra consoante a tua experiência.