Felizmente, e não obstante todas as polémicas, Portugal vai ganhando o hábito, que é cultura noutras paragens – de países com democracias muito mais antigas e sedimentadas -, de os principais protagonistas da história contarem na primeira pessoa ou através de biógrafos autorizados (neste caso, o jornalista José Pedro Castanheira) como viveram os seus mandatos, o que fizeram, o que pensaram, o que não fizeram, o que não pensaram, porque fizeram ou não fizeram.
Sujeitam-se, como é óbvio, a críticas, correções, mal entendidos.
É natural. Até porque os outros atores, na sua esmagadora maioria, não só estão vivos como permanecem no ativo – e bastantes em lugares de destaque, na Administração Central e Local, na vida empresarial, nas mais variadas atividades profissionais, muitos na política ativa ou com participação cívica e política capaz de influenciar decisores e/ou a opinião pública.
Até por isso, pela frontalidade de se sujeitarem à crítica e à contradita, a publicação de testemunhos como o de Sampaio é de aplaudir.
Com a difícil missão de suceder a Mário Soares em Belém, Jorge Sampaio teve um primeiro mandato relativamente tranquilo e discreto.
Já no segundo mandato, porém, foi o contrário.
Nem um ano passado sobre a reeleição, Sampaio vê-se a braços com a primeira crise política sob a sua Presidência, depois da demissão de António Guterres – na sequência do desastre eleitoral nas autárquicas de Dezembro de 2001.
Guterres demitiu-se para evitar o «pântano» – expressão sua.
O que Guterres evitou de facto, e olhando para a cronologia da história, foi estar na liderança do Governo e do PS quando, meses depois, estalou o escândalo que marcou política e socialmente o país no início do milénio: a rede de pedofilia na Casa Pia.
Um ‘caso’ que rebentou no seio da direcção do PS e cujos estilhaços apanharam Sampaio em Belém.
O envolvimento de amigos do Presidente levam-no a confessar que, ainda hoje, não gosta de falar sobre isso.
Ninguém gosta.
Mas não se pode ignorar.
É por isso que vale a pena destacar um pequeno episódio contado por Sampaio neste segundo volume, que parece mas não tem somenos importância.
No dia em que o juiz Rui Teixeira irrompeu pela Assembleia da República para pedir o levantamento da imunidade parlamentar de Paulo Pedroso – ex-ministro e deputado socialista acusado de pedofilia -, Jorge Sampaio seguia a caminho de Sevilha para assistir à final da Taça UEFA entre o FC Porto de José Mourinho e o Celtic de Glasgow.
Face à gravidade da situação, o Presidente diz ter recebido insistentes pedidos da sua própria Casa Civil, de conselheiros e amigos, para que cancelasse a viagem e regressasse de imediato a Belém: tinha de intervir («meter esta gente na ordem»). Afinal, Paulo Pedroso era número dois do líder do PS, Ferro Rodrigues.
Sampaio não o fez. Em nome da separação de poderes, da independência da Justiça e dos «princípios», corretos, que entende subjacentes aos poderes e papel do Presidente da República. Cumpriu a Constituição. Como devia. Para agravo dos amigos que pediam a sua intervenção: como o líder do PS e da Oposição à época, Ferro Rodrigues, ou o então líder da bancada parlamentar socialista, António Costa.
Sampaio fez muito bem.
Sensivelmente um ano depois, enfrentou a segunda crise política da sua Presidência, por força da demissão de Durão Barroso, forçada pela sua candidatura à presidência da Comissão Europeia.
Sampaio confessa que fez o possível para evitar que Santana Lopes (que considerava não ter «arcaboiço» para o cargo) sucedesse a Durão na chefia do Governo – tentou convencer Manuela Ferreira Leite (n.º 2 do Governo), depois Marcelo Rebelo de Sousa e Marques Mendes.
O que não fez foi a vontade ao seu amigo Ferro Rodrigues de dissolver a Assembleia da República e convocar eleições antecipadas.
Ferro demitiu-se e sucedeu-lhe José Sócrates.
Diz Sampaio que a decisão de empossar Santana lhe valeu inúmeras e duras críticas de muitos amigos. Cita particularmente Ana Gomes à entrada do Rato.
Existindo uma maioria parlamentar, não havia razões objetivas para dissolver a Assembleia da República e fazer a vontade a Ferro Rodrigues, Ana Gomes e aos amigos, incluindo da Casa Civil, que o criticaram.
Sampaio não refere nas suas memórias, mas é óbvio: com Ferro Rodrigues cada vez mais isolado na liderança do PS e o caso Caso Pia bem presente, o eleitorado dificilmente daria a vitória aos socialistas. Porventura, umas eleições legislativas naquela altura ou dariam a Santana uma legitimidade reforçada (por nova maioria absoluta do PSD e CDS) ou colocariam o país numa crise de governabilidade de imprevisíveis consequências.
Por isso, Sampaio não viu alternativa a convidar Santana a formar Governo. Tudo ponderado, era a sua única alternativa. Ainda por cima, porque assim, muito embora continue a negar as teses de um calculismo extremo para levar o PS à conquista da sua primeira maioria absoluta – meses mais tarde, com José Sócrates -, a verdade é que essa foi a consequência.
Santana queixa-se que foi armadilhado. E foi. Mas a culpa não foi de Sampaio. Foi dele. Cometeu um erro fatal: a ambição de ser primeiro-ministro tolheu-lhe o faro e a intuição política. Precipitou-se para o poder e fragilizou-se.
Ao aceitar o convite de Sampaio, sujeitou-se a um conjunto de condições (até para a formação do Governo) e deixou-se enredar numa numa teia de compromissos que teria evitado se tivesse ousado reclamar o escrutínio popular.
À distância, com tudo somado, Sampaio e Santana têm ambos razão.
Os amigos de Sampaio é que não têm razão alguma. Sobretudo porque, no dia em que Sampaio apresentar o livro, e por ironia do destino – ou não -, afinal, Ferro Rodrigues é presidente da Assembleia da República e António Costa primeiro-ministro.
E, já agora, Marcelo Rebelo de Sousa, amigo de Sampaio e à época seu conselheiro e influente comentador, é o Presidente da República.
É chegada a hora dos amigos de Sampaio darem a mão à palmatória e lhe pedirem as devidas desculpas. Porque as merece.
Santana é o único que se pode queixar.