‘A I República foi altamente nociva para os ideais democráticos’

São ambos católicos e nacionalistas, mas não se consideram conservadores. José Luís Andrade e Jaime Nogueira Pinto conhecem-se «desde sempre» e partilham as mesmas ideias. A propósito do livro ‘Ditadura ou Revolução?’, que Andrade escreveu e Nogueira Pinto prefaciou, juntámo-los para uma conversa sobre «o lodaçal político» da I República, os retoques do comunismo, o…

Natural de Idanha-a-Nova, José Luís Andrade (n. 1954) estudou Engenharia Eletrotécnica no Instituto Superior Técnico, onde ainda apanhou «muita pancada» da Polícia durante o marcelismo. O encerramento anómalo do IST em 1973 levou-o a transitar para a Academia Militar, onde acabaria por concluir os estudos como aluno civil, sem ter feito sequer a recruta.

Apesar da formação em engenharia, José Luís Andrade foi sempre um apaixonado pela História e pelas humanidades – «comecei a namorar com a minha mulher porque ambos gostávamos muito de Fernando Pessoa», confidencia.

Uma vez que a tese oficial difundida pelos compêndios não o convencia, estudou a fundo a Guerra Civil espanhola e, encorajado por um amigo, aproveitou o tempo livre que tem desde que se reformou da Caixa Geral de Depósitos para fazer uma tese de doutoramento sobre o assunto. Mas apercebeu-se de que, para compreender bem a questão, teria de recuar à antecâmara desse período. Assim nasceu Ditadura ou Revolução? O dilema Ibérico nos anos decisivos de 1926-1936 (ed. Casa das Letras), um livro de quase 500 páginas onde episódios como o golpe de 28 de Maio de 1926, que derrubou a I República, e a ascensão de Salazar são contados em paralelo com a evolução da situação política em Espanha. O prefácio da obra ficou a cargo de Jaime Nogueira Pinto, seu amigo de longa data, o que serviu de pretexto para juntarmos os dois numa conversa.

O encontro realiza-se no Salão Nobre Círculo Eça de Queiroz, onde, apesar do ambiente solene (o uso de gravata é obrigatório), ambos se revelam perfeitamente à-vontade e descontraídos. Reclinado num sofá para duas pessoas, Jaime Nogueira Pinto é constantemente solicitado pelo telefone, que toca com uma persistência exasperante, pois a ocasião coincide com o auge da polémica causada pelo cancelamento de uma conferência sua na Universidade Nova de Lisboa. «Que horror», queixa-se o advogado. «Não param!».

Antes de passarmos ao tema que nos traz aqui, gostava de vos perguntar: desde quando se conhecem?

Jaime Nogueira Pinto: A gente conhece-se desde sempre. Tu és dez anos mais novo que eu…

José Luís Andrade: Nove anos. Cruzámo-nos antes do 25 de Abril e eventualmente em círculos ultramarinos.

J.N.P.: Julgo que o relacionamento mais intenso começou quando voltei para Portugal, à volta da revista Futuro Presente. O primeiro número saiu no verão de 1980.

Começou como um relacionamento profissional?

J.N.P.: Um relacionamento ideológico, ligado a termos as mesmas ideias.

J.L.A.: Um pouco aquilo que antigamente se designava por camaradagem.

J.N.P.: Das pessoas que pensam como nós, há umas com quem a gente se dá mais e outras com quem se dá menos. O Zé Luis é das com quem me dou mais.

Passando ao livro, começaria pelo título – ‘Ditadura ou Revolução?’. São dois conceitos que se excluem?

J.L.A.: Não necessariamente. O editor achou que era um título mais provocador e que fazia uma síntese da obra. Do ponto de vista técnico não são mutuamente exclusivas, como é óbvio. A maior parte das revoluções acaba em ditaduras.

J.N.P.: E claro que aqui faz um certo sentido. Embora o 28 de Maio se chamasse a si próprio ‘revolução’, ‘revolução’ nesta época era essencialmente a revolução soviética, que gerou como respostas outras revoluções.

Como se fosse um sismo que tem réplicas noutros pontos?

J.N.P.: Chamemos-lhe alternativas, como a revolução fascista e o próprio Nacional Socialismo. E gerou também os tais regimes autoritários militarizados, em Portugal, depois na Espanha, depois na Polónia, etc. É mais neste sentido. Ao mesmo tempo, e o José Luís retrata isso bem no livro, a conjuntura revolucionária facilita a suspensão do Estado Constitucional.

Há uma frase célebre atribuída ao Rei de França Luís XV que diz ‘Après moi, le déluge’ – ‘Depois de mim, o dilúvio’. No caso português, a alternativa era entre o caos e uma ditadura?

J.L.A.: No caso português, os excessos cometidos pelo Partido Democrático – uma fação do Partido Republicano que tomou o poder durante os primeiros anos da República – foram uma espécie de vacina. Esses excessos, e a participação um pouco artificial de Portugal no teatro europeu da Grande Guerra, levaram mesmo ao ódio contra o Partido Democrático, que se eternizava no poder através de processos de sufrágio eleitoral muito limitado.

J.N.P.: As mulheres não votavam, os analfabetos não votavam… Votava 7% da população.

J.L.A.: O Partido Democrático foi-se, portanto, eternizando no poder, até ao aparecimento de Sidónio, com o episódio de Pimenta de Castro pelo meio. Diga-se, aliás, que o Pimenta de Castro tinha sido a figura escolhida para encabeçar o 5 de Outubro, só depois aparece o Almirante [Cândido dos] Reis, porque a Marinha tinha mais peso, portanto não era de maneira nenhuma suspeito de ser monárquico. Mas digamos que o caos e a revolta da população, pelos excessos da gente do Afonso Costa, levaram a que a questão da ordem fosse necessária. Sobretudo quando se agrava a situação de pré-bancarrota em que o país foi deixado depois da intervenção na I Guerra Mundial.

A I Guerra é uma das causas próximas da Revolução Russa de 1917. Em Portugal também tem peso no derrube da I República?

J.L.A.: No meu entender é determinante. Do mesmo modo que são determinantes – e não digo isto por estarmos a viver os 100 anos – as aparições de Fátima. As aparições de Fátima provocaram um revivalismo católico na massa dos crentes (não na hierarquia da Igreja) que foi extremamente importante para enformar a sociedade contra as tais atitudes anticlericais do Partido Democrático. Muita vez isso é passado de lado pelos historiadores.

O livro faz alusão aos ecos que a Revolução de 1917 teve em Portugal. Havia pessoas cá informadas sobre o que se tinha passado na Rússia?

J.N.P.: Sim, sim. Aliás rapidamente aparece um partido – que primeiro não se chama Partido Comunista…

J.L.A.: A Federação Maximalista Portuguesa.

J.N.P.: Exatamente. E, já nos anos 20, lendo com atenção os jornais da época, nota-se esse grande medo que surge na Europa entre as classes altas e as classes médias em relação à repetição de um fenómeno de tipo soviético. Embora com coisas curiosas. Na revolução do Sidónio, que é em dezembro de 1917, há uma aliança também muito interessante de forças que a gente poderia chamar da direita e da esquerda. São os sindicalistas, por exemplo, que atacam a cavalaria da Guarda Republicana com aquelas bombas carregadas com pregos e com coisas horríveis. Portanto, o sidonismo junta todos os descontentes com a hegemonia do Partido Democrático – junta monárquicos, liberais, conservadores, católicos, sindicalistas e determinadas forças de esquerda. Como o 28 de Maio no princípio, é um movimento de repulsa dirigido contra o que está. É uma vastíssima coligação de forças que ideologicamente até seriam contrárias e depois se separam.

J.L.A.: Uma pessoa importantíssima no movimento anarco-sindicalista, que tinha uma relação pessoal com Sidónio e facilitou essa colaboração das forças sindicalizadas, foi um jovem estudante que tinha sido aluno do Sidónio em Coimbra, chamado Aurélio Quintanilha, que era o pai do deputado do Partido Socialista Alexandre Quintanilha.

Quando o J.N.P.: refere esse espectro alargado da oposição, significa que poderiam estar todos juntos contra alguma coisa mas que assim que o objetivo fosse conseguido…

J.N.P.: Assim que essa coisa é derrubada, dividem-se. Toda a mecânica revolucionária, com algumas exceções, tem essa lógica de convergência de esforços. A própria revolução soviética é assim. Na primeira fase, de derrube do czarismo, entram os liberais, socialistas revolucionários, mencheviques, bolcheviques, etc. E depois rapidamente os bolcheviques eliminam todos os outros elementos. No 28 de Maio passa-se exatamente a mesma coisa.

Os operários portugueses tinham consciência do que se passava na Rússia?

J.L.A.: Tinham, tinham. É aliás isso que vai apaixonar as pessoas e que as vai dividir. Portugal é o único caso na Europa – pelo menos dos países mais significativos – em que o Partido Comunista nasce do anarco-sindicalismo. Em todos os lados, o PC nasceu das fações mais esquerdistas dos partidos socialistas. No caso português, não. O Partido Socialista era praticamente inexistente em Portugal, um partido de intelectuais, com uma expressão sindical muito baixa. Isso vai fazer com que o movimento sindical se cinda em duas partes: uma que privilegia a questão da organização política, ou seja, o internacionalismo a partir da revolução russa que será triunfante (estamos ainda em processo de guerra civil); e os outros, que entendem que qualquer partido é contra os interesses dos trabalhadores. Só no princípio dos anos 30, quase no dealbar do Estado Novo, é que a hegemonia do anarco-sindicalismo em Portugal cede perante aquilo que mais tarde será o Partido Comunista.

No seu livro faz um retrato não muito lisonjeiro do Partido Comunista Português. Diz, por exemplo, que «a história dos partidos totalitários está cheia de retoques e maquilhagens e o PCP não é exceção». Queria pôr em causa uma certa ideia ‘romântica’ que existe do PCP?

Fico um bocado surpreendido que diga isso porque acho que não tomo uma posição. Trato o PC do ponto de vista do historiador, com isenção. Esses casos são conhecidos. Aliás, vou-lhe contar uma coisa: na foto de que eu teria gostado inicialmente para a capa do meu livro aparecia parte do Politburo soviético à volta do Estaline, e tinha a cara de um dos dirigentes cortada. Isso retrata o comportamento dos partidos ditatoriais. No caso português faço isso, se não estou em erro, quando recordo o Armando Magalhães, um operário vidreiro da Marinha Grande que teve de fugir ainda antes do 18 de janeiro de 1934. Foi para o Brasil e separou-se do PC, portanto a historiografia do partido ignora-o, quase como se tivesse sido eliminado da fotografia. As histórias são rescritas, a própria biografia oficial do Cunhal é retocada, porque o seu início é um pouco nebuloso. A historiografia oficial do PC passa em duas penadas o período que vai de março de 1921 até 29. Isso tem algum significado, porque o PC existiu, teve cá funcionários da Internacional Comunista, como o célebre Codovilla. Mas o Partido Comunista não gosta de falar nessa época, não sei porquê…

E interessava-lhe, portanto, retirar essa maquilhagem e expor esses retoques?

J.L.A.: Exatamente. Acho que a História tem de estar sempre associada à verdade e portanto não faz sentido esse tipo de retoques. Desde o momento em que esses factos sejam comprováveis e comprovados, não sei por que o PC os há-de esconder.

O J.N.P.: concorda que existe uma versão ‘melhorada’ do PC?

J.N.P.: Acho que todas as forças políticas procuram criar os seus mitos. Esses mitos podem ser à volta de um dirigente ou o contrário – pode ser o apagamento de aspetos mais desagradáveis ou mais chocantes. Também é preciso ver que, praticamente até à consolidação do regime de Salazar, a esquerda é muito mais identificada com aquela oligarquia do Partido Democrático, que essencialmente não tinha nada a ver com o comunismo – no fundo era um partido de classe média, de burguesia, mais identificado com o seu anticlericalismo, ligações à Maçonaria e manipulação das eleições. Curiosamente, as forças mais radicais de esquerda também eram inimigas desse regime. Na política há sempre uma definição, e às vezes com uma certa instabilidade, do inimigo principal. Quem é o inimigo principal? Até muito tarde, a direita viu como o seu inimigo principal os chamados democratas, que eram os herdeiros do Partido Republicano Português na feição e na fação de Afonso Costa. Esses é que eram o núcleo contra o qual se faz o 28 de Maio, a reação sidonista e a reação do Pimenta de Castro.

Referiu os aspetos desagradáveis que o PC quis apagar. Poderia nomear alguns?

J.N.P.: O José Luís terá mais a dizer sobre isso, mas penso que o principal incómodo era desde logo o que o PC estava a fazer na Rússia. É muito interessante a influência que têm os emigrados russos, conservadores, monárquicos, religiosos, no seio da própria Alemanha. Eles vêm contar o que está a acontecer na União Soviética – todos os horrores da guerra civil e a eliminação de determinadas classes sociais. Os partidos comunistas, que eram vistos como partidos libertadores de uma determinada classe, passam a ter também o peso das realizações da União Soviética. Estes partidos vinham numa linha do socialismo utópico, a ideia ‘de cada um segundo as suas possibilidades, a cada um segundo as suas necessidades’, conceitos que até fazem pare de uma visão, digamos assim, cristã do mundo. Só que, a partir do momento em que há um socialismo real em construção na União Soviética, essa imagem otimista e dourada passa a ser inquinada pela visão das realidades.

J.L.A.: Se pegarmos no jornal A Batalha, que é o órgão dos anarco-sindicalistas, e formos analisando todos os editoriais, começamos a ver uma linha de simpatia pela revolução russa que rapidamente, à medida que se começam a conhecer as notícias da repressão sobre os anarquistas, começa a arrepiar caminho e a condenar o que se estava a fazer na União Soviética – não pelo que estavam a fazer aos padres ou aos aristocratas, mas pelo que estavam a fazer aos anarquistas, seus irmãos e militantes de convicção. Ainda em relação ao ponto anterior, uma questão muito simples: o primeiro secretário-geral do Partido Comunista é um homem chamado José Carlos Rates, que vem exatamente do anarco-sindicalismo. O José Carlos Rates é eliminado praticamente da história do partido porque vem a aderir à União Nacional em 1931 e isso é uma vergonha para o Partido Comunista. O primeiro secretário geral da Federação Maximalista Portuguesa foi convertido ao catolicismo pelo Padre Cruz em 1920. Tudo isso são coisas que o PC não gosta de reconhecer e que elimina da sua história. Mas são factos, são verdades, não há forma de dar a volta a isso.

Passemos agora ao ambiente social que antecede o golpe de 28 de Maio. O J.N.P.: faz um retrato desse ambiente no livro Nobre Povo.

J.N.P.: Há aqui uma série de fenómenos, alguns sociais, outros económicos. Nas antevésperas do 28 de Maio está para se votar mais uma vez a questão dos tabacos. Os tabacos eram um monopólio do Estado que, sempre que era concedido, dava umas guerras fortes entre grupos económicos, e isso acaba por fragmentar o próprio Partido Democrático. Por outro lado, repetem-se algumas tentativas de regeneração mas não há confiança no dinheiro, na estabilidade, portanto os capitais emigraram para Londres, e verificam-se fenómenos de desordem social. Há uma tensão muito grande e isso vai convergir tudo, como é normal neste tipo de sociedades mais periféricas, nas Forças Armadas, que são essencialmente o Exército.

J.L.A.: Permite-me só acrescentar uma coisa: isto depois de o próprio Partido Democrático tentar fazer com que as Forças Armadas se resumissem à Guarda Nacional Republicana.

J.N.P.: Exatamente. A Grande Guerra criou nos militares o sentimento de terem sido um bocado abandonados depois de os mandarem para a Flandres. E essa ideia do governo de criar uma espécie de guarda pretoriana também gerou muito mal estar nas Forças Armadas…

Porque era uma tentativa de as instrumentalizar?

J.N.P.: De as neutralizar. Há esse descontentamento militar que, juntamente com uma fortíssima atividade de revolucionários extremamente jovens, vai conduzir ao 28 de Maio, que é um movimento que parte de Braga e converge para Lisboa. As tropas do Gomes da Costa entram em Lisboa já em junho.

J.L.A.: Elas desfilam na Avenida da Liberdade em 6 de junho.

J.N.P.: A tropa estava acampada em Sacavém. Porquê? Porque vem para Lisboa de comboio. Esse é um fator também interessante: sendo os sindicatos ferroviários largamente dominados por elementos anarco-sindicalistas, não há uma sabotagem.

J.L.A.: Aliás o Sindicato dos Correios, Telégrafos e Telefones boicotou imensas comunicações governamentais.

Recuando um pouco. Antes do 28 de Maio há um clima de tensão, com explosões, assassínios, greves. Isso provoca um sentimento de insegurança nas pessoas, que às tantas estão desejosas que alguém ponha ordem no país?

J.L.A.: Sobretudo nas classes médias.

J.N.P.: Há um velho argumento conservador mas que é importante. Os regimes políticos não são fins em si, existem para assegurar a vida da comunidade em determinados termos – ordem, lei, estabilidade, etc. Se o regime não cumpre essas funções, normalmente é derrubado, e é isso que se observa em Portugal com a I República.

J.L.A.: As pessoas estavam muito inquietas e sobretudo estavam a ficar preocupadas com a desordem. O terrorismo era uma prática habitual, tendo aparecido várias estruturas mais ou menos clandestinas de terrorismo. E, além da questão da ordem, era também a questão financeira. O descontrolo total das contas do Estado, nomeadamente com a dívida, o descrédito internacional. O descrédito internacional não era só uma questão de imagem: condicionava nas importações, no crédito, a vida económica estava praticamente paralisada e a ameaçar a bancarrota iminente.

E que consequências isso tinha na vida da população?

J.L.A.: Falta de farinha para fazer pão, por exemplo. Falta de bens essenciais, aumento do custo de vida… Houve fome em muitos concelhos do Alentejo, onde o trabalho era essencialmente sazonal. Teve de haver intervenção a nível central para colmatar problemas de fome e de carências imediatas.

J.N.P.: Além da instabilidade governativa, começa a haver pequenas insurreições, focos de rebelião militar. E tudo isso se junta para perturbar exatamente aquela vida regular e ordeira das classes médias, que são muito sensíveis a isso. As classes altas têm sempre alguma defesa. Às vezes até saem, emigram – foi o que aconteceu com muitos. Começam a aparecer, por exemplo, as grades nas janelas, para proteger das bombas e dos assaltos. Ao mesmo tempo, há um problema económico e financeiro – ou seja, há um problema financeiro do Estado que acaba por se refletir na economia da nação. Mas há também uma fortíssima instabilidade político-social mesmo da ordem das ruas. O Estado deixa de cumprir as suas funções sociais e isso leva a que as pessoas estejam preparadas para aceitar uma mudança.

E a ditadura militar resolve esses problemas?

J.L.A.: O problema da ordem resolve. O financeiro não.

Resolve como? Com medidas repressivas mais fortes?

J.L.A.: Sobretudo com uma maior coerência na repressão. Há uma estabilização do aparelho repressor e uma presença mais efetiva e mais clara da autoridade em tudo – não só na rua. Os tribunais antes não conseguiam condenar as pessoas, e passa a haver uma maior efetividade no exercício da autoridade. Durante a ditadura militar propriamente dita e a ditadura nacional houve muitos casos de revoltas, alguns fogachos – quer dizer, não foram bem fogachos porque causaram muitas mortes e tiveram consequências desastrosas para os intervenientes, porque foram derrotados e ou se exilaram ou foram desterrados.

Em relação ao segundo problema, o de ordem financeira, persiste durante a ditadura militar. É por isso que é preciso chamar Salazar, para pôr as contas em ordem.

J.N.P.: Na época, Salazar é professor de Finanças e vai escrevendo artigos em jornais diários e da área conservadora, católica, etc., e fazendo discretamente intervenções sobre o problema financeiro. Ele percebe que, na ditadura militar, o poder não está nos generais, mas está essencialmente nos quadros médios – nos capitães, nos majores, etc. É essa gente que ele cultiva e à qual chega fundamentalmente através dos escritos da sua especialidade financeira. E interessa sublinhar que, quando em Abril de 28 ele vai para o Ministério das Finanças, tem carta-branca para autorizar ou desautorizar tudo o que é despesa. A partir daí, através desse controlo da despesa oficial – a regra que ele impõe é que os ministros das outras pastas não podem fazer despesa sem autorização do Ministério das Finanças –, ele torna-os a todos dependentes, não só da sua erudição e sabedoria, mas também da sua decisão. Isso tem efeitos muito poderosos, e ele vai-se apoderando gradualmente da própria classe política. Além de que, ao contrário dos militares, ele tem um pensamento político coerente. Uma combinação de uma certa base católico-cristã com o nacionalismo, e também com uma teoria da História de Portugal. Salazar não é filosoficamente anti-democrático, até admite aquele tipo de instituições, que podem funcionar na Inglaterra, mas a experiência democrática portuguesa que foi a da I República falhou. A experiência da I República foi altamente nociva para os ideais democráticos. Acabou por ser uma espécie de governo do Partido Democrático que se caracterizou pela manipulação eleitoral, fraude eleitoral frequente, pela utilização das Forças Armadas e de segurança como uma espécie de pretorianos do regime, por abusos contra a Igreja Católica, por uma intervenção na Guerra que acabou por ser altamente censurada por todas as forças do país. Portanto, o Salazar constrói muito o Estado Novo por alternativa depois de denunciar os vícios do regime anterior.

O J.L.A.: fala do «lodaçal político da I República». As pessoas tinham noção de que isso era algo a evitar?

J.L.A.: Tinham. Os republicanos da fação democrática achavam, de uma forma sobranceira e paternalista, que o povo não sabia o que queria, eles é que sabiam o que era bom para o povo, e portanto tomavam conta do regime. E foi assim que eles se foram eternizando durante a I República. A figura mais conhecida é Afonso Costa, é ele que dá a cara, mas há muitos, muitos outros. Ainda em relação a Salazar, e à pergunta a que o Jaime brilhantemente respondeu, há uma pequena nota de curiosidade: muitos tenentes determinantes no 28 de Maio tinham sido alunos de Salazar em Coimbra, conheciam-no pessoalmente. E não deixa de ser engraçado que quem chama Salazar pela primeira vez para o governo é Mendes Cabeçadas, um maçon, e quem reivindica a sugestão do nome de Salazar a Mendes Cabeçadas é Cunha Leal.

Que mais tarde vem a chamar «ser hipocondríaco» e «monge voluntariamente castrado» a Salazar.

J.L.A.: Passado um ou dois anos. O nome de Salazar surge porque efetivamente ele era conhecido, como o Jaime disse, mas especificamente havia alguns tenentes determinantes, que tinham poder muito para além da sua patente e que tinham sido alunos de Salazar. Depois Salazar é soprado ao ouvido do Mendes Cabeçadas pelo Cunha Leal. O 28 de Maio foram golpes sobre golpes e a história não está muito bem contada porque o Estado Novo conta uma versão quase monolítica e os adversários contam outra versão, a dos perdedores. Aliás, é quase inaceitável que haja historiadores normalmente sérios e de grande renome que chamam Estado Novo ao período que vai de 26 a 74. 1926 não tem nada a ver com Estado Novo, o Estado Novo só surge depois da constituição de 33. Até aí é uma situação muito confusa que inclusive importa dividir entre ‘ditadura militar’, em que havia de facto uma hegemonia militar, e ‘ditadura nacional’, em que há já uma mistura de militares com civis no poder. E o Estado Novo afasta definitivamente os militares, enquanto corporação, do poder executivo imediato.

Quando toma posse como ministro das Finanças, Salazar faz um discurso famoso em que diz que vai ser preciso fazer «sacrifícios salutares» e fala da «ascensão dolorosa de um calvário». Isso veio a verificar-se?

J.L.A.: De que maneira!

J.N.P.: São dois ou três anos até ao equilíbrio orçamental. Na época, as condições de fundo do país existiam, ou seja: havia dinheiro, só que tinha fugido, uma parte substancial estava em Londres.

E era de quem?

J.N.P.: Era de pessoas que o tinham e o puseram fora [risos]. Porque aqui desvalorizava. O problema não era a questão financeira em si, era a estabilidade política. Depois havia o fenómeno da ordem nas ruas. Isso a tropa resolveu. O Salazar impõe essa regra que toda a despesa ministerial seja autorizada por ele. A partir daí tem o controlo da despesa e, portanto, faz um bocadinho, como ele dizia, uma economia de dona de casa: produzir e poupar, gastar menos e tentar angariar mais. Nessa época, o império colonial era uma extensíssima área de reserva – em termos de matérias-primas, de espaço para pessoas, etc. –, portanto o país não precisava de imaginação. Precisava exatamente daquilo que os militares trouxeram – ordem e lei – e depois aquele outro lado que o Salazar deu que foi endireitar a questão financeira. Praticamente desde o liberalismo a questão financeira foi sempre a questão crítica do Estado Português. As guerras civis trouxeram um enorme endividamento ao Estado e desde aí os governos foram sempre dependentes de empréstimos estrangeiros. E é com isso que o Salazar acaba.

À custa de quê?

J.N.P.: À custa da supressão de uma parte das liberdades públicas, sobretudo das liberdade partidárias. Há direitos civis mas não há direitos políticos – vamos pôr as coisas assim.

J.L.A.: Não há todos os direitos políticos. Os partidos continuaram a existir até uma determinada altura, mesmo no Estado Novo. O Partido Socialista só acaba em 37, por exemplo.

J.N.P.: Mas restringe isso, restringe a liberdade de expressão, há a censura nos jornais, etc. Há uma supressão de liberdades políticas – chamemos-lhe assim – e também há uma certa restrição em direitos fundamentais. E à custa disso cria-se um Estado autoritário, também com uma intervenção forte na economia.

J.L.A.: A supressão da epidemia de greves foi importante. O país vivia em greves permanentes, greve disto, greve daquilo – isso praticamente acabou. Podia haver uma manifestação ou outra, mas perderam todo o significado que tinham antes da ditadura militar. Do ponto de vista económico, isto tem uma relevância muito grande. O que é interessante é que já na altura se punha um problema que ainda hoje se põe, que era o primado da economia ou o primado financeiro, digamos assim. E obviamente o Salazar defendia primeiro pôr as contas da casa em ordem e depois é que se podia pensar na economia.

Que sacrifícios impôs o primado financeiro?

J.L.A.: Por exemplo, o abaixamento dos vencimentos. Os militares sofrem uma perda dos vencimentos.

É comparável ao que se passou recentemente com a troika?

J.L.A.: Julgo que sim, se não pior.

J.N.P.: Foi relativamente rápido, ele em dois anos tinha o orçamento equilibrado. E depois começou a fazer um sistema de desenvolvimento clássico, começou muito pelas indústrias hidroelétricas, a construção das barragens. Aliás é interessante que no Estado Novo a gente vê a prevalência de determinados grupos profissionais. A primeira fase é o domínio dos engenheiros, a segunda é a dos juristas e a terceira é a dos economistas, que é uma classe, ou um grupo, que já não é leal ao Estado Novo.

Falámos das colónias. O Cunha Leal diz «o lema de Angola bastando-se a si própria […] é mais do que ridículo, chegando a ser criminoso». As colónias davam prejuízo?

J.L.A.: Exatamente. Moçambique entrou no sistema de companhias majestáticas. No fim de contas era um arrendamento de espaços comerciais em que as companhias, normalmente de capitais estrangeiros, faziam o que lhes apetecia. Em Angola não houve essas companhias mas o orçamento era obviamente deficitário, porque eram te’rritórios imensos em que a administração praticamente não existia, as estradas praticamente não existiam, não havia nada. E o Cunha Leal defendia que era necessário investir nas infraestruturas, como aqui se investiu no fontismo, para se poder tirar partido das grandes riquezas que Angola tinha.

E Salazar conseguiu tornar as colónias rentáveis?

J.N.P.: Na fase final, que é a fase de grande desenvolvimento, sim… Quer dizer, as infraestruturas começaram a fazer-se nos anos 50.

J.L.A.: A partir de 53.

J.N.P.: Portos, aeroportos, rede de estradas, tudo isso é muito incrementado a partir dessa altura, e nos últimos anos, antes do 25 de Abril, Angola é a segunda economia da África subsaariana, depois da África do Sul. Há um surto enorme de crescimento, com números extraordinários, mas isso é na fase final. O primeiro movimento significativo de povoamento é a partir de 1930, quando se completa o caminho-de-ferro de Benguela. Depois volta a haver um incremento grande, nos anos 50, com a desvalorização do cruzeiro, que leva muita gente que ia para o Brasil a ir antes para Angola. E a partir de 61 é o fenómeno da guerra, que dinamiza muito a economia, sobretudo a economia angolana.

Entretanto, em Espanha, a Monarquia cai em 1934. Nós tendemos a ver as monarquias como um garante da estabilidade e como um sistema quase imobilista. No entanto, quer o final da Monarquia em Portugal quer o final da Monarquia em Espanha diz-nos o contrário: a Monarquia não garante estabilidade nenhuma.

J.L.A.: Passou-se em Espanha nos anos 20 o mesmo que se tinha passado em Portugal entre o fim do século XIX e 1910. Muitos políticos monárquicos ligados ou à Maçonaria ou às tendências mais liberais da Monarquia converteram-se ao republicanismo. No caso português, temos o exemplo do Bernardino Machado. E, antes disso, o Norton de Matos e o Leote do Rego, que só se converteram à República praticamente depois da revolução republicana. Qualquer um dos dois era um furioso apoiante do João Franco. Esse tipo de vira-casaca era muito comum. Em Espanha passou-se a mesma coisa. E, tal como em Portugal, o republicanismo espanhol era essencialmente urbano. As eleições autárquicas de abril de 31 foram ganhas por monárquicos. A esmagadora maioria dos eleitos foram monárquicos, na ordem dos 80%. Só que nas 48 maiores cidades ganharam os republicanos e a partir daí o Rei resolveu ir-se embora para não criar a guerra civil. Como cá: o D. Manuel II foi-se embora exatamente para evitar a guerra civil. Era um regime condenado.

O regime de Salazar foi ou não foi um regime fascista?

J.N.P.: Não. O regime de Salazar não tinha essa característica totalitária porque não havia um partido único – a União Nacional não era propriamente um partido único, era uma espécie de agremiação que recrutava pessoas para as eleições. Salazar despartidarizou muito a vida política portuguesa e sempre controlou o Estado e a sociedade a partir do governo. E o seu grande aliado chamava-se Forças Armadas. O Professor Borges de Macedo insistia muito nisso: se Salazar tinha um partido com que podia contar eram as Forças Armadas que, até por razões da sua história no século XX, tiveram uma identificação ideológica com o Estado Novo muito forte. Eu chamo a atenção para este dado: o movimento militar do Sidónio Pais, que faz agora em dezembro cem anos, saiu da Escola de Guerra, da Academia Militar. Todos os alunos aderiram maciçamente. Se fizer as contas, os alunos da Escola de Guerra teriam nessa época entre os 17-18 e os 21-22 anos. Esses cadetes de 1917 são os tenentes e capitães do 28 de maio, são depois os coronéis dos anos 40 e os generais dos anos 50. No fundo, é um grupo muito identificado com o regime: com as ideias nacionalistas, autoritárias, muito críticas do governo dos democratas. Isso marca muito a duração do Estado Novo, mas também o seu fim, porque depois desse ciclo o Exército deixa de ser leal, e o primeiro sinal é a conspiração dos generais em 61, no princípio da guerra de África. Depois, o 25 de Abril já é outra coisa completamente diferente. Em Espanha, o general Franco acaba por ser sobretudo também um chefe militar, é graças às Forças Armadas que ele vai arbitrar as forças civis.

J.L.A.: É exatamente o mesmo fenómeno que estavas a explicar. [O regime de Franco] acaba quando os mesmos oficiais que fizeram a guerra civil desaparecem.

Gostava de vos colocar uma última questão. Estamos no Círculo Eça de Queiroz, onde as coisas não são muito diferentes do que seriam há cem ou 200 anos. Pergunto-vos, a esse propósito, se se consideram conservadores.

J.N.P.: Eu sou mais nacionalista do que conservador. Sou conservador nalgumas coisas, por exemplo nos chamados valores da família. O Roger Scruton tem uma definição de conservador muito interessante. Ele diz que conservador é aquele que acha que há coisas do passado que é importante a gente guardar. Eu acho que há coisas do passado que é importante a gente guardar. É importante, por exemplo, guardar certos afetos familiares, é importante guardar um certo valor e carinho pela História, um certo valor e carinho até pelo meio, pelos edifícios, pelas coisas que fazem parte da tradição. Mas as velharias bafientas, aquelas autoridades sem sentido, nisso não sou absolutamente nada conservador. Agora, politicamente considero-me mais nacionalista, acho que o grande valor político é a comunidade nacional, e graças a Deus em Portugal temos uma nação bem definida, quer nos seus contornos históricos, quer no seu tempo de duração, e até nos afetos e nas solidariedades que criou entre os portugueses. Isso é um capital, e muita coisa que acontece de boa – ou que não acontece de má – é exatamente por sermos uma nação muito antiga. Mas não me incomoda nada que me chamem conservador. Sou mais conservador que liberal e sou mais conservador do que progressista. Mas tenho uma enorme curiosidade e não olho para as coisas novas com incómodo. Procuro percebê-las, entendê-las e sobretudo ver o que fica do que passa.

J.L.A.: Eu subscrevo integralmente as palavras do Jaime. Mas, talvez porque sou nove anos mais novo do que ele, não me sinto muito confortável quando me chamam conservador.