Civilização e selvajaria

Não vou, por ora, falar de eleições autárquicas. Nem do tempo que já passou nem, por ora, do sobressalto que acredito aí vem. 

Não vou deixar, por agora, que o coração brote em excesso nem que as emoções aflorem memórias que não se apagam. 
Nem sequer esquecer o que vivi ou o que amargurei. Sabendo bem o que é o prazer e a dor. 

O que sei é que, nesta aldeia cada vez mais global, vivemos porventura um dos momentos mais intranquilos no mundo nos últimos anos. Onde, quer do lado de cá quer do lado de lá do Guadiana, se proclama e clama pela civilização, e se sente e pressente a selvajaria. 

A Rainha de Inglaterra deu luz verde, esta semana, ao Brexit.
Na Holanda, uma elevada participação eleitoral impediu o ‘Nexit’.
Nos EUA, é o conflito bem aberto entre o Presidente e o poder judicial. 

A Coreia do Norte parece que ‘foge’ à China e a Turquia ‘foge’ da Europa, apesar dos milhões de turcos essenciais para algumas economias europeias. 

Entretanto, os pedidos de asilo à Europa – maioritariamente de sírios, iraquianos e afegãos – atingem os 1,2 milhões! De seres humanos bem concretos já que cada um se não repete! 

O que significa que a crise migratória é uma verdadeira crise de refugiados. É a fuga à selvajaria e à barbárie e a busca da civilização, da nossa civilização europeia. Que sente alguns dos seus valores ameaçados e pressente alguns dos seus princípios integradores questionados. 

Há algumas semanas ‘regressei’ a Aquilino Ribeiro, esse genial escritor português e beirão. 

Reli o diário É a Guerra, publicado em 1934, em que reflete acerca das consequências da primeira guerra mundial.
Herdei, com orgulho, uma edição encadernada, com uma dedicatória de Aquilino Ribeiro a um querido bisavô meu, José Júlio César, um regionalista assumido. E com uma carta em que se sentia bem a forte amizade que ambos nutriam. 

Deixo-lhes um naco do grande Aquilino: «A França bate-se pela civilização e liberdade do mundo; a Rússia pelo exalçamento dos povos oprimidos; a Inglaterra pela salvaguarda dos tratados e pela honra do Império; a Alemanha pela cultura e pela verdade; a Áustria contra a perfídia e pelo direito; todos mais inocentes uns que outros; todos cordeiros pascais; todos endireitados do torto e paladinos do fraco». 

Esta reflexão é de 20 de Agosto de 1914! No dia em que as tropas alemãs entravam em Bruxelas, a primeira capital europeia a ser ocupada por «um exército de conquista desde a queda de Paris em 1870». 

Não esqueço que o meu querido e saudoso Pai, sempre cauteloso em relação a Lisboa, defendia com fervor  – assumindo que o repetiria várias vezes a Aquilino! –  que as Terras do Demo começavam na sua freguesia natal, Cavernães. 

É que, como ele nos ensinou, «a Beira Alta não tem simile no mundo. Em poucas dezenas de quilómetros reproduz a terra toda: amenidade e braveza, a colina e o vale, a civilização e a selvajaria». A selvajaria que importa denunciar e a civilização que requer muita devoção. Do lado de cá e do lado de lá do Guadiana!           

* Advogado