O ‘partido’ sem cor da Assembleia

Há uma equipa de 362 funcionários parlamentares que ‘põe a máquina a funcionar’. Isentos à sucessão de legislaturas, têm muitas histórias para contar. O b,i. falou com o funcionário mais antigo, José Diogo, que entrou em funções no tempo da Constituinte e com Ana Dias, que  chegou a São Bento há seis meses. 

O ‘partido’  sem cor  da Assembleia

Alexandre Herculano tinha a alcunha de “Alexandre da sebenta” porque levava anotações para os debates parlamentares, ao contrário de Almeida Garrett que tinha grandes capacidades oratórias e falava de cor. José Magalhães tinha um discurso “imagético”. Natália Correia ainda é recordada dentro das paredes desta casa pelo seu sentido de liberdade – e por um dia quase ter deixado cair um microfone em cima da cabeça de António Guterres. Mário Soares, Almeida Santos, Álvaro Cunhal, Amaro da Costa, Freitas do Amaral, Vital Moreira e Salgado Zenha e mais duas mãos cheias de figuras da política nacional são lembrados pelas suas intervenções por quem ali trabalha e sobe, diariamente, as 76 escadas que separam a rua de São Bento da entrada da Assembleia da República. 

A escadaria imponente que leva à entrada principal é pisada não só pelos funcionários parlamentares como pelas mais altas figuras de Estado. Mas também por muitos cidadãos que não se deixam intimidar pela subida e fazem questão de estar presentes nos plenários, seja para ouvir os debates ou protestar contra quem se senta no hemiciclo. 

Só no ano passado, a Assembleia recebeu nas galerias da Sala das Sessões – mais conhecida por Plenário – 7.300 mil cidadãos. Um número endossado pelas visitas ao palácio de São Bento: cerca de 20 mil ‘turistas’. Destes, 15 mil participaram nas visitas guiadas organizadas pelo Serviço de Relações Públicas da AR. “E os restantes 5 000 visitaram livremente o palácio quando o mesmo esteve aberto no âmbito de dias comemorativos específicos – 25 de abril durante a tarde e Jornadas Europeias do Património, dias 24 e 25 de setembro”, revelou fonte oficial da instituição ao b,i.

Os cidadãos procuram conhecer melhor um edifício que transpira história. Mas, além dos frontões, volutas, carpetes carmim e quadros – e por detrás da rotação das legislaturas – há uma equipa permanente composta atualmente por 362 funcionários parlamentares. Gente que põe a estrutura a mexer e com muitas histórias para contar. Há quem já tenha passado aqui uma dezena de passagens de ano – antigamente, a segurança do edifício cabia também aos funcionários e não à Guarda Nacional Republicana. Há quem tenha aqui chegado há meia dúzia de meses e há quem trabalhe em São Bento há mais de quatro décadas. Mais do que em anos, os funcionários vão contando o tempo em executivos. «Cheguei cá na primeira maioria absoluta do Cavaco» ou «eu ainda sou do tempo do Soares» foram apenas alguns comentários que ouvimos como resposta à pergunta: «Há quanto tempo trabalha aqui?». 

José Diogo, 67 anos, é funcionário parlamentar desde os tempos da Assembleia Constituinte e é, atualmente, o mais antigo da casa. Em 1975, tinha 25 anos e estudava engenharia no Instituto Superior Técnico quando dois amigos foram a sua casa e lhe disseram que a Assembleia estava a admitir pessoas. «Foi um mero acaso», conta. Candidatou-se, fez as provas, ficou. Prepara a saída para este ano. 42 anos são uma meia vida. E 42 anos de carreira são uma vida inteira. «Entrei para um serviço que corresponde à divisão de redação e apoio audiovisual. Durante muitos anos dirigi a divisão, que elabora o ‘Diário da Assembleia’  e que tem também nas suas competências o canal da assembleia e a gestão dos outros meios audiovisuais. Participei e acompanhei o nascimento do ‘Canal Parlamento’», recorda. Atualmente, José Diogo trabalha na divisão de Relações Internacionais. Este departamento, entre outras competências, presta «apoio e assessoria às assembleias e organizações internacionais às quais a AR faz parte, como a Assembleia Parlamentar da Nato, a Organização para a Segurança e Cooperação Europeia, do Conselho da Europa e também com os países da CPLP». 

José já assistiu à entrada e saída de milhares de deputados. «Nas últimas legislaturas houve sempre uma grande renovação de deputados. É evidente que começou a haver uma geração posterior ao 25 de abril e isso altera a conceção que se tem da vida, mas isso é um facto natural». José diz que nota diferenças, por exemplo, na própria retórica. «Nota-se, por exemplo, na forma de expressão dos deputados que hoje têm um discurso mais focado para aquilo que depois a comunicação social vai buscar. É um discurso mais linear, sem grandes referências culturais ou políticas. Isso também resulta do facto de hoje o debate parlamentar ter tempos muito limitados». 

Hoje o ar que se respira em São Bento é, para todos os efeitos, tranquilo. Debates parlamentares mais crispados à parte,  há um misto de solenidade implícita – como convém a um órgão de soberania – associado à descontração de um local que é de todos. Em 1975, frenesim seria uma expressão mais apropriada.

«Estávamos a viver, não só aqui como em todo o país, uma transformação que foi fundamental para a minha geração. Fizemos a passagem da ditadura para a democracia. O país nessa altura vivia uma intensa vida política, cultural, social», continua José.

E o epicentro era mesmo ali. Com história a ser feita numa base quase diária. «Nessa altura havia basicamente episódios todos os dias». Da lista, José escolhe recordar «por exemplo, o chamado cerco à Assembleia Constituinte pelos trabalhadores da construção civil». «Nesse período, foi algo importante, mas recordar tanta coisa que aconteceu não é fácil».

Quando lhe pedimos para enumerar os momentos que o tenham tocado, José não hesita. «A minha entrada aqui marcou-me, depois o acompanhamento da elaboração da Constituição. Marcou-me porque também assisti ao nascimento da democracia em Portugal estando num local onde se preparou tudo aquilo que é o quadro legislativo do país». 

 

Palavra de ordem: isenção

Se hoje em dia a isenção e distanciamento dos funcionários relativamente às cores políticas é algo tão intrínseco que é um não assunto, nos tempos da Constituinte era quase impossível não sentir orgulho pelo trabalho que ali estava a ser feito. «Nessa altura sentia-se muito, até porque aquilo que se passava na sociedade tinha um reflexo muito grande aqui dentro. Depois essa questão foi-se consolidando. Hoje os funcionários da Assembleia da República têm um especial dever de isenção e uma consciência muito aguda de serviço público e do trabalho para o Parlamento no seu conjunto. Aqui dentro somos profissionais independentemente das nossas opções como cidadãos. E, como sabemos, de quatro em quatro anos ou em determinadas épocas há uma mudança da maioria», diz José. 

Ana Dias, 25 anos, é funcionária parlamentar desde outubro de 2016. É a mais jovem funcionária da Assembleia e faz parte do último ‘lote’ a ser admitido em funções. Seis meses de casa e, nesta questão, endireita as costas com a mesma postura do veterano José: «Não interessa a nossa opção política, aqui dentro somos completamente isentos. Nem falamos de política. Trabalhamos diretamente com os partidos mas não há qualquer mistura. Fazemos a máquina funcionar, é um facto, mas não demonstramos qualquer preferência». 

A trabalhar na secção do protocolo, conta «que ainda não aterrou totalmente». Compete-lhe, por exemplo, «fazer acompanhamentos protocolares a altas entidades ou outras entidades que venham à Assembleia da República e tenham direito a esse estatuto».

Quem tem ou não direito a este tratamento não é uma escolha interna: está definido por lei. «Regemo-nos muito por uma lei das precedências», conta. Em termos práticos, trabalhar no Protocolo engloba não só elaborar e executar os planos de acompanhamentos como a preparação das sessões solenes. «Por exemplo, quando veio o Rei de Espanha, a sessão solene na Sala das Sessões foi organizada pelo Protocolo. Mas a Assembleia funciona muito numa lógica de multi serviços, todos os departamentos se juntam nos eventos. É muito engraçado quando se está por dentro perceber esta dinâmica», explica.

O entusiasmo de Ana pela Assembleia começou dois anos antes de ser funcionária parlamentar. Em 2014, fez um estágio a propósito do seu mestrado em Relações Públicas. «Fui muito bem recebida por toda a gente». “Durante o estágio apanhei o 25 de abril e a AR fez uma visita de porta aberta. Senti mesmo que as pessoas perceberam que isto é uma casa que também é delas. Houve uma senhora que veio ter comigo e disse-me: «Ainda bem que vocês fizeram isto, assim dá para perceber que trabalham aqui pessoas normais». 

Mas o estágio acabou. Em 2015, estava desempregada e quase nem acreditou quando abriram vagas para a posição que agora ocupa. Candidatou-se e, entre esse ano e o seguinte, fez quatro provas, todas eliminatórias: exames psicotécnicos, conhecimentos gerais, inglês e informática.

O meio ano de trabalho na Assembleia já lhe deu um episódio caricato para partilhar. «Por exemplo, tivemos a visita de um chefe de Estado que nos avisou logo que fumava muito. Por isso, tivemos de planear as visitas tendo isso em conta e arranjando forma de ter muitas paragens», explica. 

Mas há mais curiosidades que podem ser partilhadas. Por exemplo, a escolha das flores nas sessões solenes. Se no 25 de abril não há dúvidas quanto aos cravos vermelhos, «nas visitas oficias de Chefes de Estado, presidentes de Parlamento ou de primeiros-ministros, a cor das flores reflete a cor da bandeira do país».

Quanto aos almoços e jantares das ditas visitas e outras ocasiões similares, há um prato que é rei. «Enviamos as propostas do catering, mas acabam por escolher quase sempre bacalhau», revela Ana. 

Ainda está na fase da paixão aguda por um local que descreve como «grandioso». E o encantamento de trabalhar não só na sua área como na AR resume-se numa frase simples: «Sinto-me uma privilegiada». 

 

O alento dos símbolos

Para Ana a relação com a Assembleia é recente, para José já tem mais dedos do que os do corpo humano. Mas isto não significa que não se recorde da primeira vez que entrou em São Bento e do impacto do momento. «Lembro-me muito bem porque isto era apenas visto como um local onde reuniam deputados eleitos – entre aspas – e cuja função era meramente presencial». Um símbolo do poder da ditadura. «E também teve um impacto grande até pelo edifício. Trabalho num sítio que em termos arquitetónicos e simbólico é muito bonito», continua. «Isso dá alento e vontade de vir trabalhar». 

José garante que se continua a deslumbrar com a tal simbologia, embora «ao longo do tempo isto se torne quase o local de vida, porque passamos aqui muitas horas». [Nota: os funcionários parlamentares têm isenção de horário e devem estar disponíveis para meter a mão na massa seja a que hora for]. «Mas ainda consigo deslumbrar-me e encontrar pormenores arquitetónicos, e isso é uma coisa que pessoalmente me interessa». 

Se quarenta anos depois ainda há lugar para a descoberta, José percebe o interesse dos cidadãos que nunca aqui vieram. «Sempre houve – e há – uma grande curiosidade em visitar a Assembleia. Mas as pessoas quando entram aqui sentem o peso da instituição e há algum respeito pelo espaço, também julgo que é importante. Mas quando vamos a um museu também sentimos algum impacto, o impacto de estarmos perante arte. Por isso acho que esse sentimento que pode haver das pessoas é natural». 

É provável que, no final deste ano, José se retire de São Bento. Em jeito de retrospetiva, também considera que este foi um percurso que o marcou. «Trabalhar aqui, além do local que é e do que se faz, há também o estabelecimento das relações pessoais. Tornei-me amigo de muita gente. Claro que isso marca». 

 

Um gigantesco gabinetede curiosidades 

Conversámos com Ana e José nos Passos Perdidos, onde já é raro os deputados perderem os passos – que é como quem diz, esperarem. Por ali passam com andar apressado os ténis dos deputados do Bloco, os saltos de Assunção Cristas e de Isabel Moreira e os sapatos mais e menos formais dos demais. 

É um dos espaços preferidos dos funcionários ouvidos pelo b.i. e um dos locais incluído na visita ao público. A sala foi feita para ser uma antecâmara das sessões plenárias, um local de espera e de encontro. É por lá que nos cruzamos com Maria José, também funcionária parlamentar. «Lembrem-se que antigamente não havia forma de avisar que alguém poderia chegar mais tarde», explica Maria José a um grupo de cerca de 40 visitantes da Universidade Sénior da Secção de Lisboa Norte da Associação Nacional de Professores. 

Em 2016, a Assembleia organizou cerca de 400 destas visitas guiadas. Além da história do edifício – do antigo mosteiro de São Bento – a visita inclui ainda uma breve explicação sobre as competências da Assembleia.

Seguimos Maria José que guia o grupo por um sem número de curiosidades. Por exemplo, o candeeiro em ferro forjado que encima a chamada Escadaria Nobre tem 144 lâmpadas e é limpo «anualmente ou de dois em dois anos». «Depende também do número de lâmpadas que vão ficando fundidas», conta a  funcionária. Afinal, o ‘adornozinho’ pesa qualquer coisa como 1191 kg. 

 No Salão Nobre – construído durante o Estado Nobre – há um tapete de Arraiolos que é o segundo maior do país. «O maior está em Arraiolos». E na Sala das Sessões o grupo recebe também uma explicação política. «Sabiam que o presidente da Assembleia da República é, hierarquicamente, a segunda figura do país?», conta Maria José. Muitos dos visitantes, sentados nos lugares dos deputados – cujas cadeiras têm o símbolo da AR incrustado em dourado, ao contrário das cadeiras onde o Governo se senta que não têm qualquer sinalética – acenam em sinal negativo. Outra nota: as pateadas dos deputados atingem madeira de carvalho.

Para a maioria destes reformados, é a primeira vez que visitam o Parlamento. No final, Graça Pereira, Francelina Duarte e Maria Cabaço comentam que a sala parece «muito mais pequena e aconchegante do que parece na televisão». E Laura Rentes diz ter ficado «encantada» por ter conhecido a casa da democracia. Só tem uma queixa. «Não vi a minha deputada favorita, aquela miúda que tem muita garra. A Mariana Mortágua»