Karla Suárez. “Angola continua a ser um lugar fantasma para mim”

A guerra de Angola é um momento em que participaram mais de 400 mil cubanos, mas ainda está imersa

A certa altura, no livro, o narrador cubano, que está numa taberna, nota: “Os portugueses não gostam de gritar.” O livro “Um Lugar Chamado Angola” é uma espécie de grito em surdina que conta a vida dos cubanos durante o conflito. Tenta resgatar as memórias da gente comum imersa no caldeirão dos conflitos do séc. xx. É a história de um filho de um “herói” cubano, que terá morrido a combater, que procura as razões que levaram o pai a sacrificar-se.
 
Há heróis na guerra civil angolana?

Muitos, sim. Todos os que morreram são considerados heróis em Cuba. Há muita gente que participou no conflito.

O que é ser um herói na guerra?

Não sou eu quem determina quem é herói ou não é. Mas em Cuba sempre se chamou heróis às pessoas que participaram na guerra de Angola. Há mesmo uma espécie de percurso de heroísmo histórico que abarca os heróis da independência, os da revolução e os heróis internacionalistas da guerra em Angola. Todos os que participaram, de alguma forma, são considerados assim porque fizeram alguma coisa por um processo e pelo país. 

A ideia de heroísmo associa-se normalmente à participação numa guerra justa. Para os cubanos, a sua participação na guerra em Angola foi a participação numa guerra justa?

Eu não sou historiadora. Não sou eu que vou tirar as conclusões se a guerra era justa. Havia razões para ir para a guerra no princípio que foram mudando ao longo do tempo. Mas o meu interesse no romance não é analisar da justeza do conflito. Até porque há um problema de testemunho: quando a guerra começou, eu era uma criança, eu não a vivi, cresci com ela. Ela era algo presente na minha vida porque cresci com ela, e toda a gente que estava ao meu lado e perto de mim tinha ligações ou conhecia gente que lá estava ou tinha estado. Homens, mulheres, médicos e professores, foi muita gente para Angola. O que faço é escrever um romance, não é julgar historicamente um conflito. É uma guerra muito complicada. De alguma maneira, foi o último conflito da Guerra Fria, em que estiveram envolvidos muitos atores regionais e potências globais, para além dos três partidos angolanos MPLA, FNLA e UNITA, cada um com muitos apoios internacionais, países que faziam guerras contra outros países usando a guerra de Angola como campo de batalha. Eu não pretendo nem vou fazer essa análise. 

Um romance não pode ser uma análise e uma forma de verdade sobre essa situação?

Sim, mas no romance o que me interessava é como se viveu a guerra em Cuba. Quando estava a escrever o romance procurei muita informação sobre as coisas e testemunhos que foram escritos. Já quando vim para Lisboa procurei outros livros e publicações de angolanos e portugueses que me davam uma outra luz e outros testemunhos sobre o conflito. Para mim foi interessantíssimo. Com estas posições diferenciadas e contraditórias entendi a grande complexidade desta guerra, que já me parecia complicada vista apenas a partir de Cuba. Quanto mais lia e investigava, mais complexa me parecia a guerra. Aquilo que faço no romance é, a partir de uma pessoa que morreu na guerra, o filho do morto vai tentar perceber as circunstâncias e as razões da morte do pai. Para ele, a guerra não é apenas um problema teórico e político do país, é uma questão pessoal.

Mas mesmo nos personagens há opiniões diferenciadas: o filho do morto qualifica o pai de herói e um amigo deste diz simplesmente: “A guerra é uma merda.”

Precisamente, por isso é tão complicado analisar esta guerra. Eu entrevistei muitas pessoas para conseguir perceber como viveu muita gente o conflito, e o que mais me interessa a mim não é escrever uma tese e tirar conclusões, porque senão tinha-me dedicado à história ou à política, e não à literatura. E esta mesma literatura abre o caminho das perguntas, e não o das respostas. A mim, o que me interessava era dar exatamente toda esta diversidade de vozes. Neste conflito há opiniões diferentes que, muitas vezes, correspondem a momentos diferentes da guerra: aqueles que foram em 1975 não opinam da mesma maneira dos que foram em 1985.

Até porque, provavelmente, aqueles que foram no início da Operação Carlota [nome de código da ação militar cubana em Angola, que ganhou o nome de uma escrava vinda do país africano que foi para Cuba] eram militares de carreira e, em 1985, provavelmente eram civis mobilizados, dado que passaram mais de 400 mil cubanos por Angola.

Sim, os primeiros foram militares e, depois, mobilizados. Mas há posições diferentes conforme o momento histórico. Eu tive pessoas que me disseram sem sombra de dúvida que, se voltassem a ser mobilizadas, iriam sem hesitar, e outros que, embora achassem a guerra justa e necessária a certa altura, depois consideravam que já não justificava o seu envolvimento. O que me pareceu mais curioso é que, na guerra, nunca há uma única posição e uma única verdade. 

Só uma questão: no seu romance colocou um personagem a dizer que em Cuba tem-se a História ao pequeno-almoço, almoço e jantar. Na conversa que teve com Raquel Ribeiro [que faz um belíssimo texto sobre a guerra e Cuba na “Ípsilon”] diz-lhe que, na ilha, a política come-se a todas as refeições. Por que razão nega uma dimensão política ao seu romance?

Eu não nego que o meu romance possa ser político. Apenas digo que não tenho as respostas. Não posso negar que um romance é também um ato político. E, de facto, em Cuba, todos nós vivemos e crescemos num ambiente hiperpolitizado. É a cruz que temos. Tudo se converte em política em Cuba, e os romances cubanos também não podem fugir a isso. O que digo é que eu não tenho a resposta nem a conclusão de que a guerra foi justa. Para além de tudo isso, não creio que já se saiba a metade das coisas sobre esta guerra. O que me interessa, porque cresci com isso, é perceber o que lá aconteceu. As pessoas falavam, as que falavam, da guerra como se fosse um fantasma que se passava longe. Já no meu primeiro romance há um personagem que tinha ido à guerra. Era isso que eu queria, colocar a guerra como tema de romance. E claro que é um livro bastante político, porque o tema forte do romance é toda esta reconstrução que um filho faz do percurso do pai na guerra, para perceber as razões e as circunstâncias em que ele morreu. O grande conflito dele, aquilo que o marca, é que, de um dia para o outro, no dia em que o pai morre, ele converte-se numa outra coisa: passa a ser “o filho do herói”, que tem de manter as expectativas de toda a gente, os professores, a família e os amigos. Ele não é nada do que queria ser, não vive a vida que queria viver, mas aquilo que as circunstâncias o obrigaram a ser. 

Parecia destinado a isso: em pequeno, a sua personagem imaginária era o Conde de Monte Cristo (risos). Mas é também uma micro-história de Cuba?

Sim, até porque, como disse, em Cuba, tudo é político. Eu escrevi quatro romances, e nesses quatro livros tento reconstruir, à minha maneira, o país onde vivi. Três são em Cuba e um outro não é , mas passa-se com emigrantes cubanos. Abordo aquilo que teve importância na minha vida pessoal: a família, a emigração, a vida em Cuba durante o “período especial” [depois da queda da União Soviética, principal fornecedor de petróleo da ilha, houve um período de grande austeridade em Cuba] e a guerra de Angola. Nestes meus romances há alguns personagens que atravessam vários, é um universo de ficção em que aquilo que sai da ficção é a minha experiência e vida. Eu vivi em Cuba até aos meus 28 anos. Estudei, por exemplo, na mesma universidade que Ernesto [o personagem principal do último romance], embora eu tenha feito engenharia eletrónica, e ele civil. 

Nasceu em Havana. Porque abandonou Cuba com 28 anos?
Eu vivi em Cuba nos anos 90, foram horríveis, muito difíceis. 

Estive em reportagem em 93, durante o período especial. Foi o pior ano. O meu romance “Ano Zero” passa-se em 93. Nessa época, cada vez fechavam mais coisas e eu não via como as coisas podiam melhorar. O país parecia não ter futuro. Para além disso, sempre gostei de viajar e viver em lugares diferentes. E em 98, finalmente, fui viver para o estrangeiro.

Mas antes de se ir embora tinha já estado no estrangeiro?

Passei uns tempos no Brasil e regressei a Cuba; depois estive em França e em Itália, e voltei a regressar a Cuba. Viajava com as limitações que tinham todos os cubanos: tínhamos de pedir uma autorização para sairmos que demorava meses, mas depois saíamos normalmente. A minha família e eu éramos normalíssimos, não tínhamos nenhuma influência especial, fazíamos o que faziam todos os cubanos para poder sair do país. Pedia–se uma autorização de saída com visto turístico – para isso tinha de se ter uma carta de convite. Tinha-se de pedir autorização, caso se trabalhasse, ao chefe; este pedia ao chefe dele e assim sucessivamente. O processo era demorado, mas no fim podia-se viajar. 

Numa entrevista disse que não tinha saído de Cuba por dificuldades de vida…

Tinha as dificuldades que tinha toda a gente, andava de bicicleta e, em grande parte do dia, a eletricidade faltava nas casas. O que eu digo, que é o que digo sempre, é que não tinha problemas políticos em Cuba, a mim não me expulsaram de Cuba. Os meus problemas eram como toda a gente, com a vida de todos os dias. Havana tinha sido, nos anos 80, uma cidade de que eu gostava muito, rica e com muita vida cultural, mas nos anos 90 não havia nada. Eu, que me licenciei em Eletrónica, passava o dia sem conseguir trabalhar porque havia sucessivos cortes de eletricidade. Não era um país interessante para viver. Foi por essa razão que me fui embora. Nas vezes anteriores que viajei, fi-lo como a maioria das pessoas, e voltei. 

Não deseja regressar a Cuba?

Vivo há 19 anos fora: estive em Itália, em Paris, e agora vivo em Lisboa. E a verdade é que não me interessa viver em Cuba. Gosto de ir de visita porque a minha família e muitos dos meus amigos estão lá mas, para mim, o país ficou pequeno para viver lá. Talvez a vida que vivo aqui me agrade e não me apeteça mudar. 
Pode dizer-se que está num processo de reaproximação: começou por Itália e Paris, e agora está em Lisboa (risos).
Quem sabe. Agora não quero regressar. Mas daqui a dois meses, nunca se sabe. 

Este romance “Um Lugar Chamado Angola” saiu em Cuba?

Não. Saiu primeiro em Portugal. Foi uma questão prática: a minha editora aqui estava interessada em publicar o livro e, neste momento, ainda não tenho fechada edição em Espanha, e gostava muito que saísse em Cuba.

Apesar de 400 mil cubanos terem estado em Angola, a questão continua a ser tabu?

Em muitos aspetos, ainda é uma questão melindrosa. Nos anos 90, no pico da crise, não se falava muito em Angola. Foi só a partir dos primeiros anos do novo século que se começaram a publicar alguns livros de memórias e outros sobre Angola. Fez-se uma série de televisão, mas não é um assunto de que se fala muito. De tal forma que a última vez que fui à ilha e visitei a universidade, as pessoas mais jovens tinham um grande desconhecimento do que se tinha passado. Não falei com toda a população jovem, mas os que conheço sabem muito pouco. 

Mas pode dizer-se que foi uma experiência traumática? É que, mesmo que as autoridades não quisessem falar sobre o assunto, há 400 mil pessoas que o podiam fazer. 

Acho que para muita gente, sobretudo para as pessoas para quem a guerra significou uma perda pessoal na sua família, muita gente tem o pudor da dor. Eu tentei falar com muitas pessoas que não estavam disponíveis para o fazer. Isso entende-se, todas as soluções de dor pessoal fazem com que a maioria dos implicados não lhes apeteça correr o mundo a gritar a sua dor. 

Vivendo em Portugal, encontrou gente que tenha estado noutras circunstâncias como a guerra colonial em Angola, há situações semelhantes?

São diferentes, até porque uma seguiu-se à outra. Mas para mim foi interessantíssimo conhecer essas experiências. Eu sabia muito pouco sobre a guerra colonial e a revolução [do 25 de Abril], mas falei com muitas pessoas que me contaram as suas experiências e vivências. Foi fantástico, grande parte não está refletido no romance porque não é o mesmo período histórico. Toda a histórica está concatenada e isso dá-me mais informação. Fiz muitas anotações. Foram duas guerras diferentes. É preciso dizer que, inicialmente, a informação que se tem da missão dos cubanos em Angola é secreta e reservada – os primeiros cubanos eram especialistas militares e oficiais com uma missão específica [evitar a tomada de Luanda pelas colunas da FNLA, zairenses, da UNITA e da África do Sul] e a expetativa era que se retirassem logo. Começaram a fazê-lo, mas depois foi suspensa essa retirada. O que me interessava abordar no meu romance, porque vivi esse processo, é como que algo passa de secreto para um sussurro, e deste para algo conhecido que é comentado na imprensa e discutido nas ruas. E havia um momento em que isso se falava como o pão nosso de cada dia, era a nossa guerra. Isto parecia-me interessante. Eu encontrei muitos angolanos que estiveram lá durante a guerra e que viam os cubanos de todas as formas: havia gente que os adorava e gente que os detestava. Isso também é a guerra. Eu tinha tido a visão da parte em que vivia, em que em Cuba se sublinhava a parte heroica deste esforço, mas também me interessava ver outras opiniões e conhecer outros pontos de vista. Para mim, estar em Portugal permitiu-me conhecer muitas vozes. Havia uma altura em que já sonhava com isso, tantas vozes tinha escutado antes de escrever o romance. 

Nunca esteve em Angola?

Não. Angola, para mim, continua um fantasma.

Há uma parte da intervenção cubana em Angola, que é na repressão ao chamado golpe de Nito Alves, em que milhares de pessoas morreram. 

É engraçado que eu não conhecia isso. Só soube quando comecei a coligir informações para escrever o romance. Esta parte, a mim, ninguém me contou antes. No romance, os reflexos disso aparecem em Cuba porque a ação passa-se em Cuba. E há coisas que não chegaram lá, como esses acontecimentos. 
Há uma frase forte que tem no romance sobre o caso Ochoa [general das forças armadas cubanas com um papel importante na guerra de Angola que é fuzilado por traição à pátria e envolvimento no narcotráfico em 1989] em que diz: “Não sabia que também se podem fuzilar heróis.” 
Este caso continua a ser tabu em Cuba. Não se fala disso. Mesmo em séries de televisão sobre a guerra, é um tema que não se menciona. E isso foi muito traumatizante. Eu estava em Cuba quando foram os julgamentos, e passaram partes na televisão. No final da guerra havia muita gente que não entendia porque iam fuzilar os heróis da guerra. Na minha memória, o processo era tão forte que parecia ter durado imenso tempo, mas quando estava a ler para preparar o romance descobri, com surpresa, que demorou muito pouco tempo. Ficou-me um imenso silêncio das pessoas sobre o que aconteceu. 

Como analisa este caso hoje?

Primeiro, eu sou contra a pena de morte, e não considero que um mês seja tempo suficiente para fazer um julgamento, quanto mais um processo deste tipo em que estão em causa vidas de pessoas. Acho que não devia ter acontecido assim. Não tenho relações com nenhuma força ou aparelho político, não sei exatamente a verdade ou a mentira das coisas porque não tenho nem dados nem conhecimento para isso. Acredito que a verdade sobre este processo é parte da verdade que ainda não é pública e se conhece. 

No seu livro há personagens que jogam xadrez. Se fosse uma partida, podia ser um gambito [sacrifício de uma peça em troca de uma vantagem posicional]?

Sim, podia ser. Mas para mim já me revolta que um processo que envolve pena de morte se possa resolver em apenas um mês. Isso é algo com que não posso concordar. Este momento foi, para muitas pessoas, o momento em que se acabou um país. Tinha acabado uma guerra, um momento heroico para muitos, que terminava no cadafalso para alguns dos seus protagonistas. 

O romance é também uma história de uma desilusão com um país?

Em certo sentido, sim, mas é preciso fazer notar que eu não participei na guerra, era uma criança. Em todos os meus romances, evito julgar as pessoas que tiveram de tomar uma série de atitudes em determinadas circunstâncias. Não estou a falar do governo, mas das pessoas. Eu não estive em determinadas circunstâncias e, portanto, não sei que atitude tomaria naquelas condições. É por isso que sou cuidadosa e nunca diria a alguém que a sua vida se converteu numa desilusão.
 

O romance não é apenas uma história da guerra em Angola, é também uma história de um homem e uma mulher que se conhecem numa campanha de corte de cana e se vão envolvendo no processo revolucionário. Que balanço é possível fazer deste processo?

Há coisas boas e más. A revolução tinha de ser feita. Há muita gente que a apoiou no início que depois se voltou contra ela. 
O problema é que uma revolução nunca fica igual, vai-se permanentemente transformando noutras coisas.

Isso é devido à opção de quem mandava na revolução ou fruto das circunstância e, nomeadamente, dos constrangimentos externos e da oposição e guerra movidas à revolução pelos sucessivos governos dos Estados Unidos?

Isto é um “se”. É certo que os EUA sempre estiveram aí e que o bloqueio existiu quase desde sempre. Mas isso também foi a justificação para quase tudo. Muitas coisas se fizeram dizendo que temos aí os EUA que nos atacam e bloqueiam. É um facto real, mas temos de fazer algo. O problema é que, pelo caminho, a tua vida se foi. No início tens 20 anos, e depois tens 60 anos e foi-se a tua vida pelo sonho de outra pessoa. Houve muitas coisas que o governo não quis fazer. E, para muitas gerações, isso não era justificável. A minha geração, que nasceu nos anos 60, já viveu depois de terem sido feitas as principais conquistas da revolução, eu cresci com isso, mas depois disso era necessário fazer mais coisas para a frente. Não vou olhar para trás para ver o homem de Neandertal, quero ver para o futuro. E aqui não se foi capaz de fazer isso, ficámos presos ao passado. Aqui desperdiçou-se muito tempo e gente. Os EUA converteram-se na justificação para tudo. Nos anos 80 vivíamos no clima de guerra iminente que nunca aconteceu e deixámos de viver muita coisa da nossa vida à espera de uma guerra. 

Agora, com Donald Trump, podem recuperar o clima e até ter uma guerra (risos). No livro, um personagem fala da guerra como um jogo de xadrez. Cuba foi peão desse jogo?

Acho que Cuba não foi peão. Fez a guerra que quis fazer. Havia muitas divergências entre soviéticos e cubanos, a guerra de Angola foi um conflito na Guerra Fria, mas os cubanos jogaram nela um papel essencial. Houve um momento em que os cubanos não eram dirigidos por ninguém e estavam a fazer a sua guerra. Por isso, no romance há um personagem que diz: “Em todo o caso, os peões fomos nós mesmos.”