Jorge Sousa Braga. Um poeta de se lhe tirar o chapéu.

Poeta de pessoalíssima voz, antologiador e tradutor talentoso, Sousa Braga é avesso a circuitos promocionais, a escaparates (e a visões de superfície) que fazem da literatura mais um produto de uma cultura tendencialmente pobre

No livro A Psicologia do Vestir, Umberto Eco recorda-nos que “a indumentária fala”. Por meio dela (ou da sua ausência) se pode expressar uma identidade, comunicar uma intenção, revelar uma aspiração.

Vêm estas palavras a propósito de Jorge Sousa Braga (JSB) e da sua obra O Poeta Nu. O volume, que mantém a chancela da Assírio & Alvim e exibe na capa um guache de Ilda David’, reúne toda a sua poesia, dos livros de estreia, De manhã vamos todos acordar com uma pérola no cu e Plano para salvar Veneza – um duplo golpe de audácia que, em 1981, marcou a nossa cena poética – ao último livro publicado, O Novíssimo Testamento e Outros Poemas (2012).

Se é verdade que a nudez é habitualmente tida como um valor comercial seguro, não é menos verdade que JSB, poeta de pessoalíssima voz, antologiador e tradutor talentoso, é hoje avesso a circuitos promocionais, a escaparates (e a visões de superfície) que fazem da literatura mais um produto de uma cultura tendencialmente pobre. Um tal título, não isento de provocação, entender-se-á melhor se pensarmos que a sua poesia, cada vez mais seduzida pela beleza da escassez, aspira a formas de plenitude a que não é alheio este paradoxal “Strip-tease”: “Quanto mais me dispo/ menos nu/ me sinto”.

Assim reunida, a poesia de JSB, tão atenta aos movimentos mais íntimos do mundo interior, como à detida contemplação do mundo exterior (sobretudo o mundo natural e animal), adquire uma inequívoca dimensão lírica e a força de uma inventividade que conta com uma poderosa máquina de conjugar: a satírica truculência e a mais delicada sensibilidade lírica; a ternura e a fúria desejante; a palavra e a fala do silêncio; o sublime e o escatológico; a gravidade e a ironia, plena de sentido de humor.

Mas há nesta poesia outras constantes que se desenharam cedo: uma prática auto-deflacionada do poético, sempre comovida com o pequeno espectáculo do mundo, sensível ao detalhe e à unidade mínima (uma pétala, uma gota de orvalho, um grão de areia, uma escama); o prazer das formas (que é também uma forma de prazer), do haiku ao poema mais extenso ou do verso ao poema em prosa; o apelo das artes plásticas, nomeadamente a pintura, com a qual mantém um diálogo extenso em O lírio que há no delírio.

Outra constante será a atracção irreprimível pela figura da mulher; A Ferida Aberta, livro que se serve da sua experiência clínica como ginecologista e obstetra, é disso um óbvio sinal. Cedo se anuncia também a atracção pela estação Primavera/Verão, com uma presença fortíssima num universo poético que por vezes nos gela. Apenas um ex.: “Os Sapatos das Duas Estações”: “Na Primavera ou no verão / usava sempre sapatos de duas cores / E glícinias como atacadores”.

Curiosamente, também a indumentária, seja através de uma presença substancial, seja de modo mais fugidio, tem um papel a jogar na poesia de JSB, na qual marcam igualmente presença ‘adereços’ difíceis de ignorar, seja porque são índice de uma apuradíssima sensibilidade (“uma rosa de espuma na lapela” – Boca do Inferno), seja porque põem à vista a face cosmológica desta poesia (“Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno/ e quase ia morrendo com o receio de que não/ te coubesse no dedo”), seja ainda porque se manifestam por significativa ausência, como no humaníssimo poema “Um Anjo no Porto”: “Disfarçava mal as asas / por debaixo da gabardina // e abdicara da auréola” – Porto de Abrigo. Nada é adorno ou adereço em JSB, como bem testemunham alguns haikus de Fogo Sobre Fogo: “rubis”, “diamante”, “pérola” ou “esmeraldas”: “De que secreta primavera/ serão as esmeraldas / a memória?”

O Camões, “completamente pedrado”, com que nos cruzamos num dos poemas iniciais do livro de abertura usa “jeans coçadas e óculos escuros”, num arranjo que, preferindo as “paisagens de asfalto” ao panorama do biografismo romanticamente imaginoso, sintoniza com o figurino das mitologias da decadência. E os jeans que vestem ao poeta d’Os Lusíadas servem também a um Deus que, para sempre oculto mas revelado na palavra, comparece num dos poemas de O Novíssimo Testamento.

Interessante também é (re)ver, pelo viés da ironia e do humor (numa paleta que em JSB vai do azul bebé ao negro) o século que desfila pelos textos de Plano Para Salvar Veneza – cidade-metáfora de um século XX que, chegado ao seu termo, dava ares de moribundo: «Na altura da fuga vestia umas calças de bombazina lilás, um blusão negro e um lenço branco ao pescoço. Fugiu da História porque a História era demasiado pequena para ele”. Os modelos femininos não surpreendem menos: “Era quase tão bela como a Vénus de Milo. Um dia cortou os braços a sangue frio”.

Os leitores só agora chegados à poesia de JSB, que também sabe vestir as montanhas (“de branco, de verde ou azul”), não encontrarão nestas páginas um plano para salvar o país que um dia ele desejou “beijar muito apaixonadamente / na boca”. Tão pouco um plano para salvar o século XXI. Encontrarão, isso sim, aquela “injecção de essência de rosas” que apenas a grande poesia pode dar.