Derek Walcott. O poeta que deu à sua ilha um perfil homérico

Ao contrário do Brasil, Portugal não teve até hoje a oportunidade de ler mais do que alguns poemas dispersos de uma obra incontornável do século XX, e que conquistou o Nobel da Literatura em 1992

Santa Lucía, um minúsculo país insular, no Caribe, viu crescer um dos mestres da literatura mundial. Derek Alton Walcott, o poeta e dramaturgo galardoado com o Nobel em 1992, morreu nas primeiras horas da passada sexta-feira, aos 87 anos, na sua casa perto da localidade de Gros Ilet. A causa da morte não chegou a ser especificada, mas o seu estado de saúde vinha-se deteriorando nos últimos meses de vida.

Com um dos mais discretos percursos literários entre os vencedores da maior distinção literária, este homem carregava nos próprios traços físicos um prenúncio das tradições que nele alcançaram um espantoso efeito de mestiçagem. Negro, de tez rubra, os olhos claros, filho de pai inglês e de mãe descendente de escravos, com uma costela holandesa, no sangue como na sua poesia, Walcott elevou o seu legado a uma grandeza épica. Um dos grandes escritores pós-coloniais de língua inglesa, nos seus primeiros escritos já demonstra uma urgência em perceber a que tradição pertence: “Eu que estou envenenado pelo sangue das duas,/ pra que lado me devo virar, dividido que estou até dentro das veias?”. E mais tarde descreveu-se assim: “Sou um mulato que ama o mar./ Recebi uma sólida educação colonial./ Há em mim muito de holandês,/ negro e inglês:/ Sou ninguém ou sou toda uma nação.”

Marcada por um poderoso apelo metafórico, a sua consciência desperta de uma atenção aos elementos que o cercam, e a expansão do seu universo faz-se a partir de uma compreensão musical das coisas. Walcott revela, desde a adolescência, quando publica os seus primeiros versos em jornais locais, uma noção da poesia como a invenção de uma identidade, forjando-a entre dois mundos e culturas. É esta percepção que o leva a confrontar as questões existenciais a par da captura e embalo nos ritmos e sonoridades, paisagens e texturas da vida na ilha no leste do Caribe.

A mãe, Alix Maarlin, uma professora de liceu, teve um papel decisivo na sua formação literária, não apenas instigando o seu espírito inquisitivo, mas abrindo-lhe os horizontes. Nascido em 1930, quando esta era permanecia como um ponto deslocado e de pouca monta no mapa colonial britânico, antes dos vinte anos, a mãe ajudou-o a custear os  primeiros livros, dois breves opúsculos em que Walcott revela já uma impressionante amplitude no que toca às suas leituras. De Homero a T.S. Eliot e James Joyce, passando por Dante e Shakespeare. Mas ao invés de isto infundir nele qualquer snobismo literário, um afastamento face ao mundo, fez despontar a urgência de dar voz à realidade caribenha. Bebendo no folclore, misturando o inglês com línguas do Caribe, como o créole, além do francês e do latim, captou a vivacidade do registo coloquial com a elegância da cultura clássica, e tornou-se um autêntico herói do Caribe ao resgatá-lo à banal ilustração dos postais para atrair turistas.

Na sua obra-prima, “Omeros” – que mereceu uma esplendorosa tradução no Brasil assinada por Paulo Vizioli, que teve uma primeira edição em 1994 pela Companhia das Letras -, Walcott rouba o fôlego de Homero e transpõe os heróis gregos para uma pequena aldeia no Caribe, numa narrativa épica em que a Guerra de Tróia divide agora grupos de pescadores. Os protagonistas de “Omeros” são agora as personagens antes mudas que vêm o seu mundo ameaçado pelo colapso ambiental, vidas que normalmente servem apenas de colorido às zonas de interesse turístico.

O fulgor épico desta narrativa é apoiado numa luxuriante tapeçaria lírica, uma visão sem igual na combinação das influências das vanguardas com a encenação trágica a ser complementada por imagens originais, surpreendentes e sumptuosas. A radiante força evocativa e alegórica dos quadros que pinta produz, ao mesmo tempo, uma brilhante síntese da cultura literária universal, entrando em diálogo com autores como Melville, Edgar Allan Poe, Maiakovski, os surrealistas e até os Beatles.

“Por algum dinheiro extra, sob uma amendoeira marinha,/ ele lhes mostra uma cicatriz feita por uma âncora enferrujada,/ enrolando uma perna das calças com o lamento ascendente/ de uma concha. Ela ficou enrugada como a corola/ de um ouriço-cacheiro. Não explica a sua cura./ ‘Tem coisas’, sorri, ‘que valem mais do que um dólar’”, escreve o poeta.

Se o talento de Walcott tinha merecido a atenção de tantos poetas, a atribuição do Nobel da Literatura dois anos após a publicação de “Omeros” assinalava a espectacular singularidade de uma obra que, dividida em sete partes, 64 capítulos, e estendendo-se por mais de 300 páginas, por si só, fez do poeta caribenho uma das principais vozes da língua inglesa, e levando a crítica mundial a render-se-lhe. Foram vários os poetas, grandes nomes, que foram exultantes no espanto e admiração que lhes provocou o livro.

“O que me guiou foi o sentimento de dever: um dever para com a luz das Caraíbas”, disse ao “New York Times” em 1990.  “Todo o livro é um acto de gratidão. Um acto de gratidão para com as Caraíbas – a paisagem, os cheiros, as pessoas.” Walcott declarou-se então parte de uma constelação que incluía outras figuras como Aimé Cesaire, Saint-John Perse ou Édouard Glissant, que emergiram das colónias para o palco internacional afirmando a autonomia cultural e identitária desses territórios que durante séculos eram tidos como exóticos apêndices das nações coloniais.

Numa entrevista à Paris Review ainda em 1985, Walcott havia sublinhado o que alguns dos escritores que mais admirava tinham notado sobre a atenção ao seu lugar no mundo. “Yeats disse-o; Joyce também. É espantoso pensar que Joyce possa ter dito que se preocupava em escrever para a sua raça, referindo-se aos irlandeses. Serias levado a pensar que Joyce teria em vista um horizonte mental maior, mais continental, mas ele continuou a insistir no seu provincianismo, ao mesmo tempo que demonstrava possuir a mente mais universal desde Shakespeare. Aquilo que podemos fazer como poetas, em termos da nossa honestidade, é simplesmente escrever a partir de um perímetro imediato que, na verdade, não vai além de umas vinte milhas.”

Ao atribuir-lhe o Nobel, a Academia Sueca justificou a sua escolha por Walcott ter escrito uma “obra poética de uma enorme luminosidade, sustentada por uma visão histórica e resultado de um compromisso multicultural”. Walcott foi então apenas o segundo autor negro a receber a distinção, depois do nigeriano Wole Soyinka.

Como dramaturgo, levou para os palcos a atmosfera de sonho dos seus poemas em peças como “Ti-Jean and his brothers”, de 1958. Tendo fundado com o irmão um grupo de teatro em Trinidad, depois de concluir o curso universitário na Jamaica, na década de 1950, com pouco mais de 20 anos, passou a dividir o seu tempo entre Santa Lúcia, Nova Iorque e Boston. Entre 1981 e 2009, viveu sobretudo nos EUA, onde leccionou em Harvard e na Universidade de Boston. E entre 2010 e 2013 foi professor de poesia na Universidade de Essex.

Este último cargo foi-lhe oferecido depois de, aos 78 anos, ter desistido de uma candidatura a Oxford em que reunia maior apoio que qualquer um dos outros candidatos para a que é considerada a posição mais prestigiante de poesia no Reino Unido. A dias da votação, uma série de cartas anónimas foram enviadas para centenas de professores de Oxford recuperando alegações de uma aluna de Harvard que, em 1982, acusou Walcott de assédio sexual. Três dias antes da votação, o poeta afastou-se dizendo que a corrida tinha “degenerado numa vil e degradante tentativa de assassinato de carácter”.

Ruth Padel, que seguia em segundo lugar, veio a assumir o cargo em Oxford, tornando-se a primeira mulher a ocupá-lo, mas nove dias depois foi pressionada a demitir-se, por ter sido revelada como a responsável pela divulgação das alegações sobre Walcott, de acordo com notícias publicadas na altura pelo “The Guardian”. Depois de inicialmente ter recusado qualquer envolvimento na campanha, acabou por assumir que tinha enviado emails a dois jornalistas, mas justificou-se dizendo que se limitara a partilhar informação já do conhecimento público, e que o fez apenas no sentido de representar a preocupação que lhe tinha sido expressa por alunas da Universidade. Mais tarde veio ainda dizer ao diário britânico que estava convencida de que a campanha fora afinal um plano concebido para a prejudicar a ela.

Deixando as miseráveis intrigas do meio literário, certo é que os poetas brilhantes acabam por encontrar-se, como notava Hilton Als na "New Yorker", formando laços de cumplicidade que estão para lá das meras conivências daqueles que simplesmente se amatilham. "O mundo deles é bastante pequeno apesar da influência que exercem ser profunda e vasta", escreve Als. Embora se descrevesse como um "miúdo da província", Walcott manteve laços fortes dentro da elite literária. Formou uma tríade insuperável de poetas que eram amigos e se tornaram figuras de proa da literatura do século XX. Com Joseph Brodsky, nascido na Rússia, e Seamus Heaney, poeta irlandês, partilhou a experiência de exílio, a força de um sentimento cobrindo uma imensa distância. Juntos encontraram algum conforto nesta irmandade entre estranhos na América, numa cumplicidade que se estendia àquilo que escreviam. Os três venceram o Nobel. Brodsky foi o primeiro, em 1987, e foi ele um dos mais empenhados defensores da atribuição do prémio a Walcott: "O reino do qual nos chega este poeta é o de uma Babel genética, mas o Inglês é a sua língua", notou, tendo mais tarde afirmado que Walcott é um desses raros homens que garantem a sobrevivência de uma língua.