José Magalhães. “O PS não deve ter medo de casar com o PCP e o BE”

Ex-governante defende que são “possíveis e desejáveis entendimentos que se projetem na participação no governo”

José Magalhães foi deputado do PS e ganhou visibilidade no programa Flashback, da TSF, com Pacheco Pereira e Nogueira de Brito. O socialista escreveu um livro sobre as remunerações dos políticos e fala sobre a necessidade de alterar um regime que cria “disfunções” e peca por falta de transparência. O ex-deputado já está a escrever o próximo livro que é dedicado aos autarcas. 

Foi deputado no parlamento pelo PCP e, mais tarde, pelo Partido Socialista. Ficou surpreendido com a coligação entre o PS, PCP e Bloco de Esquerda?

Tinha esse sonho e batia-me por isso. Tinha e tenho condições para isso, porque conheço muito bem as famílias. Achava que todos perdíamos com o conflito pela negativa. Quanto mais discutirmos as divergências mais bem preparados estaremos para as resolver. E é absolutamente necessário, porque a alternativa é a tacanhez e uma direita falida ideologicamente que se aproveita da globalização e do vento externo e até do vento populista para dizer: “Somos a única alternativa”.

Conhecendo o PCP como conhece tinha a esperança de que uma aliança à esquerda um dia se iria concretizar. 

Nunca perdi a esperança, porque conheço bastante bem as pessoas e não as julgo por aquilo que não valem. Julgo-as pelo que não valem e pelo que valem. Ainda há dias apresentei o livro do Carlos Brito sobre o que foi a sua vida durante anos e anos na cadeia do Forte Peniche com renovada admiração por ter havido gente que no mundo do medo e da escuridão foi capaz de dar anos de vida por uma causa. E, portanto, temos de ter essa justiça e generosidade de aproveitar o potencial de energia de mudança que cada força tem. 

António Costa também foi decisivo. O PS nunca tinha conseguido aproximar-se desta maneira do PCP e do BE com outras liderança.

O António Costa teve um papel absolutamente decisivo. É um homem com grande flexibilidade e abertura e um sentido prático absolutamente invulgar. Em outubro de 2015 estávamos numa situação extrema. Ou uma solução inovadora ou mais quatro anos da Maria Luís de Passos. Temos um país que é perfeitamente desenvolvível mas não com a canção do cangalheiro. Isso deprime as pessoas e destrói a força criativa. Trata-se de uma oportunidade para aplicar um programa que seguramente é melhor como os factos demonstram e é fazível. 

Está convencido que este governo vai durar os quatros anos com o apoio dos partidos à sua esquerda no parlamento?

Julgo que sim até porque agora existe mais experiência dos contactos entre os partidos. 

O PS deve concorrer sozinho às próximas eleições ou via com bons olhos que fossem estudadas outra hipóteses?

Não temos perdido nada com o respeito pela pluralidade, mas entendimentos que se projetem até na participação no governo são possíveis e até desejáveis. O caminho revela que é possível reforçar, diversificar e é por isso que somos hoje objeto de estudos de ciência política. 

O PCP e o Bloco de Esquerda poderão integrar o governo?

Sim, porque a responsabilidade política já existe. Não deve haver medo de casar. Uma união de facto é respeitável, funcional, mas em certo momento não há que ter medo de casar. Não se perde a liberdade com um casamento entre pessoas livres. 

Este governo tem sido ajudado por Marcelo Rebelo de Sousa?

Marcelo em Belém foi bom para toda a gente. O ambiente que se respirava era asfixiante. Limitativo. Julgo que o comportamento do governo também tem sido impecável e que quando alguma coisa corre mal corrige-se. O Presidente pode ser muito poderoso se for muito hábil e pode não ter poder nenhum se se comportar como, por exemplo, Cavaco Silva.

Como olha para o processo que envolve o ex-líder do PS José Sócrates? 

Todo o nosso sistema processual penal está também no banco dos réus e será julgado em função da sua eficiência neste caso. Isso deve levar o parlamento a interessar-se pelos remédios. 

No caso que envolve José Sócrates ficou surpreendido com este caso?

O António Costa sintetizou muito bem a posição que o partido devia assumir e tem sido cumprida de forma dolorida, mas sem alternativa. É compreensível que se queira solidariedade, mas essa solidariedade tem que ser dada individualmente como cada qual entender. O que é um imperativo é a clarificação e os danos reputacionais não são reversíveis. Esse é o drama de qualquer processo.

É crítico do tempo que a Justiça está a demorar?

Não conheço quem seja entusiasta do infortúnio. Há meios processuais para reduzir a complexidade ou para parti-la aos bocadinhos. É possível partir em frações e ir clarificando. Há uma acusação de peculato. Sim ou não? Há uma acusação de fuga ao fisco. Sim ou não? E progride-se. Se se faz uma espécie de orgia acusatória gigantesca em si mesma isso não é uma homenagem à importância do político, mas sim uma carga de trabalho para a equipa de investigadores e o inferno para o arguido. Há uma pena prévia que viola a presunção da inocência e a culpa em política mata de imediato. 

Pertence à maçonaria?

O que é público e notório não deve impressionar.

Há muitos políticos que preferem não o assumir…

Essa matéria está a ser, em Portugal, alvo de uma espécie de estado de suspeição que deve ser quebrado pelos próprios, exibindo bons feitos e boas obras e contrariando a negatividade que mancha as organizações quando um dos seus viola leis.

O que o levou a escrever este livro sobre a remuneração dos deputados?

Nasceu de uma necessidade pessoal de compreender que estatuto remuneratório é que tinha quando cessei funções após a derrota eleitoral de 2015 e depois lentamente, à medida que fazia perguntas, verifiquei que não tinha respostas devido à opacidade do sistema. Estou absolutamente em discordância com o secretismo. Os cidadãos têm direito a saber tudo sobre o dinheiro gasto pelos contribuintes. Quando estudei este assunto apercebi-me que havia assimetrias remuneratórias de que eu próprio não tinha consciência e subitamente tive a ideia de olhar a partir do alto, não apenas a situação dos deputados, mas a situação dos titulares de cargos políticos. E fiz, no fundo, uma auditoria. Este livro funciona como um guião para correções e entendo que as correções são urgentes.

Existe algum controlo para saber se os deputados cumprem os requisitos para receberem determinada remuneração?

É insuficiente. É feito unicamente na base de uma declaração não sujeita a verificação. Em relação a um conjunto muito importante da remuneração, que são os abonos complementares para trabalho de círculo ou para trabalho nacional, é feito o pagamento não sujeito a qualquer comprovação. O que aconteceu foi que se tornou num segundo salário. Com a vantagem de não estar sujeito a impostos. Um suplemento remuneratório com várias camadas é um inferno e nenhum governo conseguiu pôr ordem nos suplementos remuneratórios. No caso dos parlamentares, este regime, em que os deputados são pagos e não é verificado se fazem o trabalho, gerou um problema melindroso, porque não há nos grandes círculos trabalho parlamentar de contacto. Se o deputado não gastar esse dinheiro tem um segundo salário. Se o gastar não tem um segundo salário. Esse dilema ético casa-se com o fosso que se cavou entre eleitos e eleitores e é uma situação perversa. 

Existe desigualdade entre os deputados?

Há representantes eleitos no continente, nas regiões autónomas e no estrangeiro. O deputado que está no Rio de Janeiro não pode ter a mesma remuneração que o deputado que está em Campo de Ourique, mas não tem que haver um fosso piramidal que leve a receber 80 mil euros por ano em subsídios de deslocações. Não tem que haver e sobretudo a opinião pública tem que ser informada e os montantes gastos têm de ser justificados. 

É possível responder à pergunta quanto ganha um deputado?

Há 230 remunerações. 

Qual é a solução para corrigir essa situação? 

Tem que ser um cocktail de medidas na sequência de uma auditoria que aprofunde esta situação. Esse trabalho deve ser feito pela Assembleia da República. Outro aspeto que tem de ser resolvido é que hoje o governo tem um código de conduta, que regula, por exemplo, as ofertas e as viagens a convite. É absurdo que o parlamento não tenha implementado um código desse género. Isso cria um ambiente de suspeição. 

O governo também só implementou essas regras depois da polémica com as viagens pagas pela Galp a alguns políticos. 

Não podemos é ficar paralisados. Há uma espécie de inércia que precisa de um despertador e eu quis fazer esse trabalho de relógio. 

É legítimo questionar até que ponto os deputados não mantém esta situação por beneficiarem dela?

Essa é a ilação mais venenosa, mas ao mesmo tempo mais frequente, porque onde não reina claridade todos os gatos são pardos. Neste caso todos os gatos são suspeitos. O estado de suspeição é venenoso e julgo que é preciso acordar. É muito fácil fazer um código. Temos de um lado quem tirou ilações e aplicou medidas e do outro lado quem, aparentemente, está tranquilo sem regras enquanto a suspeição pode ser desencadeada por qualquer fagulha. O parlamento não pode ter telhados de vidro.

Os deputados recebem muitas ofertas? 

Ninguém pode responder a essa pergunta. As ofertas não são declaradas e ninguém consegue ter a mais vaga ideia sobre qual é a dimensão do fenómeno. Enquanto não houver obrigação declaratória é possível a suspeição máxima e conhecimento zero. 

Corresponde à realidade em alguns casos a ideia muito enraizada na opinião pública de que os deputados trabalham pouco?

Não há fumo sem fogo. Não encontra o trabalho que é feito nos pequenos círculos, como Castelo Branco, ou nos grandes círculos, que são mais de metade no parlamento. Isso é insustentável. Se há uma cheia em Lisboa e os deputados do círculo não aparecem gera-se a imagem de que não existem ou não servem para nada. Só se consegue apagar essa imagem pelo trabalho concreto. Se as medidas que eu proponho forem aplicadas, como espero, muitos deputados receberão menos. Alguns muito menos. Mas o trabalho que fazem será mais visível e ajudará a resgatar a imagem declinante. Nunca tão pouca gente deu a sua confiança aos eleitos. Estamos um pouco acima dos 20%.

Quase 80% confiam pouco…

Negam essa confiança. 

O que propõe para corrigir a situação em que um deputado pode ser pago por um trabalho que não concretiza?

O que proponho é o regime do Parlamento Europeu que é o reembolso com fatura. O deputado ter dinheiro para trabalhar, mas olhar para essas regras com os olhos de 2017. 

Ofereceu o livro ao presidente da Assembleia da República Ferro Rodrigues. Tem esperança que o parlamento implemente algumas das soluções que apresenta?

O presidente da Assembleia da República teve a enorme coragem de alertar para a necessidade de olhar para a vida das pessoas após o mandato. Ninguém tem um mandato eterno. A atual situação é de dualidade. Cerca de 300 pessoas têm uma pensão vitalícia e todos os outros, no day after, não têm nenhum apoio à reintegração. A reintegração de alguém com 50 ou 60 anos, depois de uma vida parlamentar, sobretudo para os que tiveram o ato heroico de se dedicarem em exclusivo, não é fácil. Se queremos evitar os saltos terríveis para a selva dos negócios e outros cargos aliciantes, mas seguramente não exemplares, temos de tratar desta situação. É uma situação perigosa.

Foi o PS que acabou com essa medida… 

Essa situação criou uma dualidade radical. Se não queremos o parlamento sem jovens e com pessoas que ou são ricas ou não têm onde cair mortas temos de criar um regime que não confronte as pessoas com a necessidade de se fazerem reeleger a todo o custo e ficarem na sexta fila do parlamento de boca fechada. Se não queremos isso temos de ponderar sanções. Eu defendo a solução do parlamento britânico. As pessoas quotizam-se durante o mandato para exercerem solidariedade com quem já não exerce o mandato. Isso gera um complemento de reforma gerido como todos os fundos de pensões. Não se pode adiar isso. 

Os políticos, em Portugal, são mal pagos?

Fui buscar números e cruzei os salários com a riqueza de cada país. Há casos aberrantes. Na Bulgária seriam necessários 108 anos de trabalho para o trabalhador búlgaro comum ganhar o que ganha um deputado. Tem que haver alguma relação. Há países onde os deputados se recusaram a fazer cortes nos seus ordenados, mesmo estando sujeitos a programas de austeridade. Tem que haver uma relação entre aquilo que o país cria de riqueza e o que paga aos seus políticos. Nós não estamos mal. O grande problema é que há gente que ganha para o que faz extraordinariamente bem e gente que ganha para o que faz bastante mal.

Não é assim tão verdadeira a ideia de que os políticos ganham mal ou muito menos que os outras?

Alguns ganham bastante bem. Bastante bem. E não estou a falar das acumulações

É a favor da exclusividade dos deputados?

Sou a favor da proibição de que determinadas profissões possam exercer-se em simultaneidade com o parlamento. A começar pela de advogado. 

Deixou de ser deputado em 2015. Mudou também o seu estilo de vida.

Tive uma bela sabática. Fez-me muito bem. Estava a precisar de resolver alguns problemas e dedicar mais atenção a mim próprio. Como vê estamos aqui num espaço magnífico onde se cultiva o yoga e o Pilatos. Um espaço magnifico que melhorou imenso a minha qualidade de vida. Qualquer alteração na minha vida não será acompanhada por nenhuma alteração neste estilo de vida saudável. 

Anda muito a pé.

Ando e faço centenas de quilómetros no tapete. No livro analiso o facto de não haver nenhum interesse pelas desgraças que acontecem aos políticos. Ninguém estudou que tipo de doenças afetam os deputados. Como se desfazem casamentos. Como é que se renuncia à vida pessoal a troco de muito pouco. Esses aspetos não são discutidos.

Pratica regularmente?

Totalmente. Como se fosse chegar ao plenário às três da tarde.

Entretanto viveu uns anos no Brasil. O que é que o levou a optar pelo Brasil?

Tornei-me residente permanente com cartão de residência e, portanto, posso ser um homem de dois países. Adoro os trópicos e o Brasil em concreto e os brasileiros. Tenho uma atração irresistível.

Tem saudades do Flashback?

Foi um privilégio que devo ao Emídio Rangel. Mudou a minha vida. Obrigou-me a estar atento e foi um formidável incentivo à cultura política.