Hindus. Uma questão de direito ao fogo e às cinzas

Na génese da organização da comunidade, uma questão de tradição: lutar pela cremação, base do rito das cerimónias fúnebres, algo que não existia em Portugal

São cerca de 9 mil no total. Oitocentos sócios efetivos. Uma comunidade já com raízes profundas na sociedade portuguesa que luta pela liberdade de culto e pela expressão da sua cultura milenar.

Uma das suas principais tradições parecia estabelecer-se no campo da impossibilidade: a cremação. Depois dos ritos fúnebres, os corpos são cremados e parte das cinzas atiradas ao rio ou ao mar. Quem conhece Varanasi, também chamada Benares, sabe do que falo. A mais sagrada das sete cidades sagradas do hinduísmo e do jainismo. Os ghats já percorreram mundo, fotografados por todos os que por lá passam. Escadas de pedra mergulham no Ganges. Altares recebem as piras de madeira e os corpos ardem em fogueiras com o seu quê de macabro, sobretudo quando um pé, um braço ou uma mão resistem às chamas e ficam como testemunhas mudas de uma vida que se foi. Ouve-se o coro que canta Agni Pooja, a adoração do fogo. Depois, as cinzas tomam o caminho do rio. Os hindus acreditam que quem tem as suas cinzas entregues ao Ganges pode fugir do ciclo da morte e da reencarnação.

Em Portugal, durante muitos anos, a cremação não era possível. A comunidade bateu-se pelos seus direitos. Em 1985, após uma longa negociação com as entidades camarárias de Lisboa, o Cemitério do Alto de São João passou a ter um forno crematório. Ainda é, hoje, o centro funerário hindu por excelência.

No ano seguinte, mais um passo importante: com o apoio da Cruz Vermelha Portuguesa e do Instituto Português do Sangue passou a comemorar-se o aniversário de Mahatma Gandhi – tem lugar a 2 de outubro – com uma campanha de doação de sangue com a duração de quatro dias.

Passos seguros foram sendo dados. O ensino da língua, ou melhor, das línguas, não foi descurado. O gujarati, língua do estado do Gujarate, de onde vieram a grande maioria dos indianos que vivem neste momento em Lisboa – é o estado onde se encontram Damão e Diu e do qual saiu uma grande onda migratória para Moçambique, desviada para Portugal após a independência –, é ensinado em cinco escolas diferentes, espalhadas pela capital, do Areeiro a Chelas e às Olaias. As Olaias, bem como a Portela e Moscavide, são, aliás, os bairros mais habitados por indianos, muitos deles para lá deslocados após a destruição do bairro de casas precárias que existia por detrás das bombas de gasolina situadas na Avenida Gago Coutinho e da requalificação da chamada Quinta Holandesa.

A pouco e pouco, a comunidade estabeleceu a sua vida. Organizando festivais, comemorando datas religiosas, promovendo eventos desportivos – há um campeonato de futebol anual disputado no Estádio 1.o de Maio, bem como competições de críquete (o desporto nacional indiano) e de brídege. O convívio entre a comunidade de Lisboa e do Porto tem sido incentivado. A construção do templo Radha Krishna, nas Telheiras, abençoada pelo sacerdote Sri Ramesh-bhai Oza, vindo propositadamente da Índia, deu aos hindus uma casa onde se reunirem. É lá o centro da maioria da sua atividade cultural.