Índia. A imaginação impossível de se estar simplesmente ao sol…

De Gokarna e Palolem às baías do Andra Pradexe e do Gujarate, os picos dos Himalaias do Sikkim a Kashmir, os vales que vão de Shimla a Kalimpong e Gangtok. Sons mágicos

Índia.

O teu nome deve ficar assim, suspenso entre duas linhas, tão solitário como a tua imensidão, preso simplesmente ao parágrafo que lhe distingue a sonoridade das sílabas.

Índia.

Em milhares de quilómetros aprendi a tua verdade ímpar. Milhares de quilómetros que acabam no vento que sobe a Rua do Norte, essa rua na qual só entra o vento que vem do sul. Nós estaremos sentados na esplanada do Calcutá, nada nos fará ficar longe dela, e, porque é talvez agosto, um calor indiano subirá pela rua lentamente, empurrado por esse vento que vem do sul e se espalha na vertical, devagar, quase parado, quase insuportável, quase único. Digo e escrevo estaremos, e explico: nenhum outro tempo do verbo estar me parece tão a propósito, tão desobediente ao tempo e ao passar inequívoco dos minutos, das horas e dos dias. Estaremos simplesmente porque haveremos de estar ali, cristalizados nas conversas, nos risos e nas lembranças e na atenção da gente que passa a favor do vento, subindo a rua em esforço, de sul para norte como o bafo que vem do Tejo e invade o Bairro Alto, sacudindo as roupas que secam nas janelas, abanando os velhos taipais de madeira, suando os corpos, tornando a respiração mais difícil e as frases mais espaçadas.

Índia.

O fascínio do teu nome arredondado. Ou melhor: ondulado. É isso. É assim mesmo que é o teu nome. É essa a palavra que sussurram as ondas que rolam pelos areais de Gokarna, Palolem e Benaulim; é esse o nome que o mar murmura nas baías do Andra Pradexe e do Gujarate; é esse o som do vento nos picos dos Himalaias, do Sikkim a Kashmir, nos vales de Shimla a Gangtok.

Índia.

Um comboio pontualmente fora de horas que nos deixa numa cidade errada; o frenesi ruidoso de Bombaim e os bairros megalómanos da pobreza elevada ao infinito; o espaço branco das areias de Colva, Malibu Beach, o calor grosso das ondas, o futebol impreciso de gente de países misturados, o avançado-centro do Vasco da Gama de Panjim que justificava a sua inabilidade num inglês cortante

“Zizizvicozzovdavind…” (this is because of the wind)

e as ciganas de Karnataka pousando o seu bricabraque prateado sobre panos vermelhos escuros e sobre sorrisos claros que se refletiam no brilho dos olhos; a noite prolongada de estrelas em céus impossíveis e sem horizontes; as igrejas crescendo à sombra irrequieta das palmeiras; o barulho inseguro do vento nas folhas das árvores, à mistura com o crocitar uníssono das gralhas e dos corvos.

Índia.

Uma delas. Vi tantas outras. Entre o encanto e a miséria das crianças ao abandono como pontes velhas pelas quais já ninguém passa.

Desembarcamos um a um em filas obedientes. O oficial do serviço de fronteiras perde-se por minutos na contabilidade dos vistos no meu passaporte. E solta:

“You come often to India…”

Confirmo a verdade impressa dos carimbos.

E ele quer saber:

“Why?”

Como posso eu explicar-lhe? Devia poder recitar-lhe a declaração de amor de Salman Rushdie em “O Chão que Ela Pisa”: “Índia, nadei nas tuas águas tépidas e corri, feliz, pelos caminhos das tuas montanhas. Mas porque é que tudo o que eu digo soa como uma “filmi gana”, uma canção barata dos filmes de Bollywood? Pois muito bem: percorri as tuas ruas imundas, Índia, sofri muitas dores devido às doenças engendradas pelos teus germes. Comi o teu sal e bebi o enjoativo chá açucarado que serves à beira das estradas. Durante anos, os teus mosquitos da malária andaram a morder-me por todo o sítio onde passasse e nos desertos ou nos verões de todo o mundo fui picado pelas tuas vespas de Kashmir. Índia, minha terra infirma, meu abismo marinho, minha cornucópia, minha gente. Índia, meu excesso, meu tudo-ao-mesmo-tempo, meu abraço, minha fábula, minha mãe, meu pai e minha primeira grande verdade. Pode ser que eu não seja digno de ti, que tenha sido imperfeito, confesso. Posso não compreender o que estão a fazer de ti, que talvez já tenham feito, mas tenho idade suficiente para dizer que esta nova Índia não a quero, nem preciso de a compreender. Índia, fonte do meu imaginário, nascente da minha selvajaria, destruidora do meu coração.”

Sei tudo isto de cor, mas não posso repetir-lho. Digo apenas:

“Because I love it!”

Ele sorri, satisfeito com a explicação curta. E pousa suavemente mais um carimbo na página que os espera. Não como um carimbo, mas como um carinho.

Índia.

Desde que me lembre, estaremos sentados numa esplanada da Rua do Norte, que é o lugar ideal para alimentar a amizade. Pode ser uma hora qualquer, da manhã ou da madrugada, o vento, se o houver, vem do sul, só o vento do sul entra na Rua do Norte, e sacode as roupas descoloridas que estão penduradas nas janelas e desarruma os picos brancos de espuma das ondas de Colva e faz tremer as folhas intranquilas das árvores onde mergulham, de vez em quando, as gralhas e os corvos perante o olhar desconfiado das pombas apodrecidas da cidade que se aninham nos algerozes sem reações. O céu por cima de nós, quieto. Estaremos: presos nesse tempo do verbo que dura para sempre e ao prazer absurdo da imaginação impossível de se estar simplesmente ao sol.

Índia.