As três esquerdas e o nosso fado

Por uma questão de facilidade, fala-se muitas vezes em ‘esquerda’ para designar o conjunto formado por PS, PCP e BE.

Sucede que esses três partidos têm muito pouco em comum. 

O PS, herdeiro do republicanismo, é um partido ‘de interesses’.

Compõem-no gente da pequena e média burguesia urbana – empregados de comércio e serviços, pequenos comerciantes, funcionários públicos.

Muitas destas pessoas não têm fortuna e vivem do seu ordenado ou de uma reforma; algumas economias que vão amealhando colocam em contas a prazo ou certificados de aforro.

Em geral, trata-se de gente sem grandes ambições, que quer viver tranquilamente a sua vida, e que, por isso, não gosta de arriscar. 

Tem uma mentalidade conservadora, pouco aberta à mudança.

As casas de alguns dos seus dirigentes mostram bem esse conservadorismo.

O PCP é um partido radicalmente diferente.

Ao contrário do PS, não tem uma tradição burguesa.

Constituem-no operários ou ex-operários, trabalhadores rurais, professores liceais, intelectuais e alguns quadros técnicos do Estado.

Também é muito conservador, e a velha guarda é mesmo imobilista: continua a pensar como há 50 anos, quando ainda havia União Soviética.

Desde aí não se modernizou – parou no tempo.

O seu conservadorismo vê-se nas ideias, nos gostos e na maneira de vestir.

No geral, não é gente interesseira: é gente convicta.

Acredita nos dogmas do comunismo, como os católicos acreditavam na Idade Média nos dogmas do cristianismo.

Para eles, há coisas que não se discutem – e por isso é muito difícil discutir com um comunista.

E mesmo assim escondem às vezes o que pensam, porque isso seria escandaloso: de facto, muitos continuam a acreditar em Marx, Engels, Lenine e Estaline.

Refutam os crimes atribuídos a Estaline, negando os milhões de mortos do estalinismo.

O Bloco de Esquerda, por sua vez, distingue-se muito bem dos outros dois.

Não tem uma extração operária nem camponesa, antes é formado por gente das cidades ultra politizada, em geral sem problemas económicos e sem grande experiência da vida. 

Compõem-no muitos estudantes, alguns quadros técnicos que se desiludiram com o PCP (e alguns com o PS), alguns professores – e tem o apoio de bom número de jornalistas. 

A sua ação é caracterizada por um misto de fanatismo e hipocrisia.

Lutam encarniçadamente contra os fundamentos da nossa sociedade, atacando o casamento e a família, ou pondo em causa os limites entre a vida e a morte ao defenderem o aborto e a eutanásia. 

Politicamente são uns falsos puros, não hesitando em abdicar dos ‘princípios’ sempre que lhes convém.

Vestem a pele do lobo para atacar a herança do Governo anterior e os seus protagonistas – mas comportam-se como cordeiros quando falam deste. 

Fazem tudo o que for preciso para manterem António Costa no poder, e das poucas vezes que o criticam é para inglês ver – ou seja, para os militantes acreditarem que são muito firmes nas suas convicções. 

Para não afrontarem alguns socialistas, chegam a fazer a defesa encapotada de José Sócrates.

A maioria de esquerda que apoia o Governo é, portanto, muito heterogénea, formada por um partido ‘de interesses’ (o Partido Socialista), um partido ‘de convicções’ (o Partido Comunista) e um partido que oscila entre ‘o radicalismo e a hipocrisia’ (o Bloco de Esquerda).

O PS é o ‘partido da situação’, e o que desde sempre colocou mais boys no Estado e nas empresas públicas.

Neste aspeto, o consulado de Sócrates foi o clímax desta atração do PS pelo poder, tendo dominado, além do poder político, parte importante da banca e dos media. 

Ainda hoje isso se faz sentir. 

Outra característica do PS é a quase inexistência de debate interno: mesmo no período final de Sócrates, quando já eram evidentes as suas ‘habilidades’, não se ouviam vozes críticas.

 Não me lembro de António Costa lhe fazer um único reparo, apesar de participar num programa semanal de análise política.

Porquê?

Porque isso poria em causa os ditos ‘interesses’ – e os respetivos beneficiários cair-lhe-iam em cima.

Veja-se a pancada que levou Francisco Assis quando criticou a constituição da ‘geringonça’, tendo de se moderar para não ser trucidado.

Sendo uma conjugação de interesses, de convicções, de conservadorismo, de fanatismo e de hipocrisia, a ‘geringonça’ vai-se aguentando – tendo uma combatividade e uma capacidade de intervenção muito superiores à da direita.

Dificilmente se partirá por dentro.

O PCP é o que se sente mais desconfortável com certas medidas do Governo, sendo visível o seu mal-estar, mas lá vai votando a favor.

E fá-lo para não ser acusado de beneficiar ‘a direita’ – uma direita que os comunistas diabolizam como se estivessem a falar do fascismo ou mesmo do nazismo (também nisso o PCP parece ainda viver no tempo da II Grande Guerra).

O grande problema da ‘geringonça’ é que vai puxar cada vez mais o país para trás, por três razões: 

1. O Estado não vai aligeirar-se, vai continuar gordo e pesado, porque é aí que a esquerda tem boa parte da base de apoio;

2. As empresas não vão aumentar a competitividade, porque a pressão dos sindicatos vai fazer aumentar os salários e as regalias dos trabalhadores, além de que a esquerda não gosta de facilitar a vida aos ‘patrões’; 

3. As reformas serão impossíveis, pois o conservadorismo da esquerda é avesso à mudança.

Por tudo isto, quando a ‘geringonça’ cair lá teremos de voltar à austeridade.

Portugal está condenado a isto: à alternância entre Governos de esquerda que adotam políticas populares e Governos de direita que aplicam medidas de exceção para porem o país nos eixos.

Com Guterres foi o regabofe, Durão Barroso disse que Portugal estava de tanga e cortou as despesas, José Sócrates abriu de novo os cordões à bolsa, Passos Coelho voltou a apertar o cinto, António Costa regressou ao bodo aos pobres.

É o nosso fado.