“Quando a arte conceptual se tornou moda, de repente toda a gente queria as minhas obras”

As suas peças invisíveis, em que usou ondas de rádio, gases inertes e trasmissão de pensamentos, tornaram-no conhecido no final da década de 60. Aos 81 anos, Robert Barry ainda não pensa na reforma. Continua a trabalhar e a fazer exposições, como a que pode ser vista até 14 de abril na galeria Cristina Guerra.

Considerado um dos mais influentes artistas norte-americanos da sua geração, Robert Barry está representado em grandes coleções de arte moderna e contemporânea – Guggenheim, MoMA e Whitney, em Nova Iorque; Hirshhorn e National Gallery, em Washington; Pompidou e Museu d’Orsay, em Paris.

Há uma semana, esteve em Lisboa para a inauguração da sua primeira exposição em Portugal, na galeria Cristina Guerra, que inclui um pequeno núcleo de obras sobre cartão da década de 1960 e telas mais recentes com um fundo de cor (branco, encarnado ou azul) e palavras inscritas. Essas palavras são escolhidas «intuitivamente», explica, a partir da leitura de jornais ou revistas. «Quando vejo uma palavra que me interessa, anoto-a num bloco de apontamentos».

Quanto às telas, a sua disposição resulta de um processo curioso. Cada conjunto, que pode ter até oito quadros, está numerado. No local da exposição, Barry lança oito moedas – também numeradas – como se fossem dados e, consoante a posição relativa das moedas, assim são dispostas as pinturas na parede.

Nascido em Nova Iorque em 1936, Robert Barry ajudou a redefinir, a partir do final da década de 60, o que pode ser uma obra de arte. Em 1968 começou a fazer peças invisíveis com ondas de rádio. No ano seguinte, experimentou trabalhar com a transmissão de pensamentos e ultrassons, pois interessava-lhe explorar realidades que «existem para lá dos estreitos limites arbitrários dos nossos sentidos».

1969 foi, aliás, uma espécie de annus mirabilis para Barry. Nele concebeu obras como Radiation Piece (uma quantidade minúscula de caesium-137, uma substância que é libertada durante testes e acidentes nucleares e que emite energia indefinidamente) ou Closed Gallery (Galeria Fechada), que consistia em convites para exposições em Amesterdão, Turim e Los Angeles. Porém, os mesmos cartões dos convites informavam de forma lacónica: ‘Durante a exposição a galeria estará encerrada’.

Recentemente, quando um curador quis reativar a obra (ou a exposição), e pediu a Barry os convites originais, este respondeu-lhe com a ironia habitual: «Não há exposição. Não quero que as pessoas vão lá porque a galeria está fechada».

Muitos artistas vão para a escola de artes porque, em crianças, gostam muito de desenhar. É o seu caso?

Quando entrei para a universidade, no Hunter College, ainda não sabia o que queria ser. Tinha pensado que podia ser escritor, porque gostava de escrever, escrevia contos, e também imaginei que poderia escrever sobre jazz. Havia muitos clubes de jazz em Nova Iorque naquela altura e à noite eu costumava frequentá-los. Podia-se apanhar grandes músicos – Miles Davis ou Coltrane, por exemplo, atuavam em Nova Iorque –, por isso pensei que talvez viesse a escrever sobre isso. Não pensava tornar-me um artista. Mas acabei por conhecer professores de arte muito bons, muito famosos. O Robert Motherwell dava aulas de pintura no Hunter nessa altura, e em História da Arte tive o William Rubin, que mais tarde se tornou diretor do Museu de Arte Moderna. Era um orador muito dinâmico, ensinava arte moderna, arte do século XX, impressionismo e pós-impressionismo. Tanto ele como o Motherwell eram pessoas muito interessantes, mas também havia outros professores de que eu gostava muito.

E foi por causa desses professores que decidiu ser artista?

À medida que continuei a trabalhar fui-me interessando cada vez mais pelas ideias da arte, fui descobrindo como podia exprimir-me, o que podia fazer. Falar sobre estética e essas coisas foi-se tornando mais e mais aliciante. Tínhamos professores que eram artistas profissionais, que faziam exposições, podíamos ter uma aula com eles de manhã e à tarde ver uma exposição com obras suas numa galeria. Eles gostavam do meu trabalho, eu também gostava do que fazia e achava que podia ser uma boa vida, até porque não me imaginava a trabalhar num escritório. No fundo era a coisa que eu sabia fazer melhor. Foi então que tive de ir para o Exército, em 1959 e 60, porque ainda havia o serviço militar obrigatório. Quando voltei fiz um mestrado no Hunter e eles convidaram-me para dar aulas lá e eu aceitei. Tornei-me professor catedrático e lá fiquei até 1979.

Como foi a experiência no exército?

Pffff! Aborrecida, estúpida! [risos] Foi uma altura em que não havia guerra nem nada parecido, por isso… O pior foi a crise dos mísseis de Cuba. Mas foi basicamente uma época de paz. Nunca saí dos Estados Unidos. Andávamos ali de um lado para o outro a fazer tarefas como limpar as espingardas, não acontecia nada.

E não aprendeu nada na tropa?

Aprendia-se a disparar armas de fogo, metralhadoras, por exemplo. Aprendi a ser um soldado.

E na universidade? Aprendeu coisas úteis para a sua formação?

Aprendi o que era arte, quais os diferentes tipos de arte que existem, aprendi história da arte. Como disse, o Hunter tinha professores fantásticos. Edna Wells Luetz, que era quem geria a escola, compreendia a arte moderna, trazia pintores contemporâneos, tinha imensas ideias. Nova Iorque era o centro artístico do mundo naquela altura, e eles podiam escolher o melhor que havia. O nível dos professores e dos alunos era muito alto.

E havia muita competição entre os alunos?

O normal, nada de especial.

Quando era estudante alguma vez pensou que poderia ser um pintor mais convencional?

Na universidade, não. Talvez quando andava no liceu… e mesmo assim penso que não. Para entrar no Hunter nós tínhamos de apresentar um portfolio e o meu era essencialmente de desenhos geométricos, tanto quanto me lembro. Sempre gostei de formas geométricas, abstratas.

Li que fez obras com gases inertes, libertando-os na atmosfera. 
Sim, no final dos anos 60.

Fez-me pensar no Marcel Duchamp, que fez uma obra que se chamava Air de Paris e consistia numa ampola com ar de Paris que ele levou para Nova Iorque. Duchamp era uma referência importante para os jovens artistas daquela época?

Eu não conhecia Duchamp na altura. Na peça dele o ar estava contido numa garrafa. A minha ideia era muito diferente. Em 1969 fui convidado para participar numa exposição em Los Angeles. Lembro-me que, quando estava no liceu, na aula de Ciências nos ensinaram sobre os gases nobres, os gases inertes, que só tinham sido descobertos uns cem anos antes. Antes disso não eram conhecidos. E tinham nomes gregos lindíssimos. Para essa exposição em Los Angeles eu andava à procura de um material que fosse invisível, como as ondas de rádio, coisas desse género, que existem e podem ser medidas, mas não podem ser vistas. Pensei que isso seria uma ideia interessante para uma escultura. Os gases inertes vêm do ar e estamos a respirá-los neste momento. São usados em coisas como lâmpadas de néon, xénon, e em experiências laboratoriais, nas aulas de ciência das escolas e das universidades. E encontrei um sítio onde se podia comprá-los, em Los Angeles. Podia-se comprar todos – cinco ou seis –, só um é que não se podia porque era radioativo (embora depois tenha chegado a fazer obras com material radioativo…). Em qualquer caso, achei que era uma ideia interessante para pôr em prática: podia comprar as garrafas, parti-las com um martelo e devolver os gases à atmosfera. Era como completar o ciclo. Fomos para sítios diferentes em Los Angeles – o deserto, a praia, Sunset Boulevard, todos esses sítios que eu conhecia dos filmes – e parti as garrafas. Tirámos fotografias e fizemos um texto. A peça não podia ser vista, só havia a ideia e as provas. Isso foi mesmo o início da arte documental.

E não era perigoso estar perto?

Não, estamos a respirar esses gases neste preciso momento. 

Mas em quantidades ínfimas, enquanto aí seria mais concentrado.

Ele dissipa-se no ar. Também era interessante por isso: em certo sentido, estávamos a respirar a arte. Ela torna-se parte da vida. Portanto era uma combinação de performance e escultura.

E era caro comprar essas botijas?

Nós não pagámos. Houve um colecionador, Stanley Grinstein, que tinha um negócio de venda e aluguer de empilhadoras, que pagou. A empresa tinha um cartão de crédito e usámo-lo para comprar as garrafas. O que é interessante nos gases inertes é que não têm cheiro, não têm sabor, durante milhares de anos as pessoas nem sabiam que eles estavam lá, até alguém os encontrou. Sabiam do oxigénio e do hidrogénio, mas não dos gases inertes, e são comuns. Gosto da ideia de respirar a arte. Se calhar agora mesmo estamos a respirar uma das minhas obras, não sei…

[risos] Também trabalhou com ondas de rádio e campos eletromagnéticos. Percebe o funcionamento desses aparelhos?
Aprendi.

Na escola?

Não. O meu pai era engenheiro eletrotécnico e, quando eu era muito pequeno, fez um transmissor de rádio para o meu irmão. O meu irmão era nove anos mais velho do que eu e gostava de pôr discos a tocar, como um disc jockey. Com o transmissor que o meu pai lhe deu, ele podia passar discos e falar, era como uma estação de rádio na vizinhança. Sempre pensei que era uma ideia interessante, esta de transmitir dentro de um certo raio de ação, e quando dava aulas no Hunter tive um aluno que era aquilo a que chamávamos rádio amador. Ele convidou-me para ir a sua casa e mostrou-me que quando se emite essas ondas, se houver um rádio por perto todas as estações nessa frequência ficam silenciosas, as ondas são tão fortes que bloqueiam tudo o resto. Fiz isso numa galeria, a galeria tinha um transmissor, e se se levasse um pequeno rádio e se pusesse nessas frequências, o rádio ficava completamente silencioso. Mas se nos afastássemos um pouco da galeria, o som voltava. Achei que era uma boa ideia para uma escultura invisível.

Na altura em que fazia essas obras, era importante para si que as pessoas as vissem como obras de arte e não peças de engenharia ou eletrónica, por exemplo?

Se era importante?! Não me preocupo com o que as pessoas pensam.

E para si? Era importante saber que o que fazia era arte?

Interessava-me que houvesse pessoas que percebiam o que eu estava a fazer. Nessa altura trabalhava com um marchand privado, que organizava exposições, e eu mostrava esse tipo de trabalhos com ondas de rádio ou infravermelhos.

E era fácil vender essas obras imateriais?

Vender? Nem pensar [gargalhada]. Nunca vendi nada. Dava aulas e a minha mulher era contabilista. Não tínhamos dinheiro, esqueça o dinheiro. Ninguém comprava nada, talvez uma pessoa ou duas… Nessa altura… Mas mais tarde, sim. Quando a expressão arte conceptual se tornou moda, de repente toda a gente queria as minhas obras. Aí diziam: ‘Awww, isto é arte conceptual? Então tenho de comprar’. [risos]

Não se considera um artista conceptual, portanto.

Não, não. Eu já fazia estas coisas quando a expressão arte conceptual ainda nem sequer existia. Não gosto da expressão – é demasiado cerebral. Toda a arte é conceptual, os mestres antigos são conceptuais, porque tem sempre a ver com o pensamento. Não sei o que significa arte conceptual. Não sei qual é a definição. Nem conheço ninguém que se considere um artista conceptual. O [John] Baldessari não se considera, o [Lawrence] Weiner também não, o Kosuth tem uma longa definição… que para mim não quer dizer nada. O Sol [LeWitt] penso que ficava irritado por ter dito algumas coisas nos anos 60 que as pessoas interpretaram mal. O termo arte conceptual é muito cómodo para os críticos, mas acho que não quer dizer nada. Considerar o Donald Judd arte conceptual? É ridículo. É um chavão usado pelos críticos, sobretudo.

Tem problemas com os críticos?

Não gosto de críticos, em geral. São bons se compreenderem o trabalho do artista, escreverem sobre ele e disserem alguma coisa interessante que ninguém ainda disse antes. Mas não percebo para que fazem críticas negativas. Quem é que quer saber o que eles pensam? Eu tive muitas críticas negativas, e pensava: ‘Ele não faz ideia do que está a dizer. Nem percebe o que eu faço. É tão estúpido e limitado’. Mas tenho amigos chegados que são críticos. Penso que um bom crítico, se for conhecedor e honesto, pode dar um bom contributo para o conhecimento da obra. Não percebo os que escrevem coisas negativas. Se gostas, tudo bem. Se não gostas, cala-te. Vai, diz o que quiseres aos teus amigos, mas não escrevas.

Quando começou a fazer pinturas?

Até ao final dos anos 80 fiz outras coisas, projeções de slides, vídeos projetados. Fiz outras coisas, não pintura. Então tive esta ideia para pinturas, penso que a primeira exposição foi em Colónia [na Alemanha] em 1988 ou 89, por aí. Mostrei as pinturas e venderam-se todas. Depois fiz uma exposição na Yvon Lambert, em Paris, e vendeu-se tudo. Amigos meus diziam-me que a pintura tinha morrido. O homem faz pintura há 50 mil anos! Os homens das cavernas fizeram pinturas nas paredes, Kosuth pintou palavras, é pintura. Fiz cinco ou seis exposições em que se vendeu tudo. Os colecionadores gostam de pinturas. 

Num texto seu que é citado na folha de sala desta exposição, diz o seguinte: «Penso que a arte conceptual foi o fim da arte moderna. Penso que a arte moderna estava num limbo e cortou esse limbo para ver o que acontecia». Com as suas obras tentou fazer isso, cortar a ligação «para ver o que acontecia»?

Aí referia-me ao último grande movimento da arte moderna. Se pensar no modernismo como algo que vem dos impressionistas, passando pelos cubistas e Duchamp, tem várias gerações que abriram novas formas de pensar o que pode ser arte. Novas avenidas para explorar. A arte conceptual foi o fim dessa forma de pensar. No século XXI não tem um grande movimento, como o minimalismo, a arte pop ou a arte conceptual. Os artistas de hoje parecem basear-se nas ideias do passado, há expressão individual mas baseada em velhos métodos, em velhas estratégias. Quando eu era novo, podia-se entrar numa galeria, dar uma olhada, e as pessoas dizerem ‘Não há aqui nada’. A galeria podia estar cheia de arte – mas as pessoas não viam o que lá estava como arte. Não acho que se consiga fazer isso hoje. Hoje, quando vou a uma galeria, vejo algo que pode ser melhor ou pior, mas percebo sempre de onde vem.

Isso é culpa de quem? Dos artistas? Das galerias?

Não é culpa de ninguém, é o curso da história. Hoje as pessoas veem a arte sobretudo como uma expressão pessoal feita com base em ideias estabelecidas nos últimos 150 anos. Pegam nestas ideias, renovam-nas de algum modo e criam algo pessoal. Pode ser interessante ou não.

Quando vai às galerias não vê coisas de que gosta?

Há muito tempo que não vou às galerias. Vivo em Nova Iorque e devia ir a mais. Mas não me interessa, a não ser que seja um artista que eu conheça e de que goste. Vi agora uma exposição da Agnes Martin. Grande artista, uma bela exposição no Guggenheim. Vi Hanne Darboven no Dia [Dia Art Foundation], outra bela exposição. O Weiner tem uma belíssima exposição na galeria Marian Goodman, uma das melhores. Estas são as exposições a que eu vou, mas são de velhos amigos.

E a museus gosta de ir?

Também gosto de arte antiga.

Nova Iorque tem museus magníficos. Costuma ir ao Metropolitan?
Sou membro do Met, tenho um passe. Vou lá algumas vezes por ano. Está lá uma exposição de Velázquez e dos seus seguidores que vale a pena ver. E antes tiveram retratos de Cézanne. Lindos. Se vir um retrato de Cézanne é fantástico, continuamos a aprender com ele. Depois vemos um retrato pintado hoje e perguntamo-nos: ‘Para quê dar-se ao trabalho de fazer a mesma coisa?!’.

Li que trabalhou com telepatia.
Sim, no passado.

Acredita na telepatia?

Antigamente acreditava, hoje não sei. Nos velhos tempos havia galerias na rua 57 e no final da rua ficava um Instituto Telepático. Podia-se entrar e tinha muitos livros que se podia consultar, então pensei que podia usar aquilo numa peça. Fiz uma performance de transmissão de pensamentos entre a galeria e o instituto.

Funcionou?

Eu fiz a performance, se funcionou não sei. As pessoas disseram que receberam os meus pensamentos [risos]. Agora já não faço essas coisas. Fiz uma peça através do Skipe, para o Pompidou Metz. As pessoas olhavam para um ecrã de televisão, eu não dizia nada. No fim, dizia o que estava a pensar. Infelizmente o curador ficou um bocado furioso comigo.

Porquê?

Isto foi para uma exposição coletiva, chamada Out of the Mind. Primeiro pediram-me para mandar algumas obras para a exposição, por isso mandei umas seis, eles escolheram três. A minha obra telepática foi sobre as obras rejeitadas. No final, quando me perguntaram no que estava a pensar, disse: ‘Estive a pensar naquelas três obras de que vocês não gostaram e que rejeitaram. Decidi trazê-las para a exposição na mesma’. [Risos]