Depressão. “É a pior doença que alguém pode ter, acredite em mim”

Não há quem não conheça alguém com depressão. O i decidiu contar a história de quem vive a doença enquanto espetador, apesar da inevitabilidade de se tornar personagem desta doença que afeta não só o doente, mas tudo o que o rodeia 

Ao pedido “conhecem alguém que lide com um familiar com depressão?” choveram dezenas de respostas. Este feedback serve de reforço aos números que põem Portugal no topo dos países com maior taxa de depressão do mundo. 

Com 20% dos portugueses a sofrer da doença, é quase só preciso fazer um jogo de pim pam pum para acertar numa casa na qual viva pelo menos uma pessoa depressiva. Neste trabalho decidimos focar-nos em quem tem de, todos os dias, lidar com alguém com depressão.

Filipe teve três namoradas com depressão, Catarina foi casada 12 anos com um homem depressivo e bipolar que tanto a considerava “a mulher mais bonita do mundo” como a seguir a ameaçava de morte, e Anabela, depois de lidar com a depressão profunda da mãe, caiu ela própria numa depressão crónica, sempre associada à fibromialgia, que lhe dá um estado de dor e cansaço constante.

 

Filipe Gomes, 65 anos

“Sou um bom ouvinte, acho que é esse o meu problema.” Aquilo que seria uma qualidade é descrito de forma negativa por Filipe, depois de um historial que lhe dá uma bagagem com “pelo menos” três namoradas depressivas. 

Talvez porque a memória lhe está mais fresca, começa por relatar a relação mais recente, que terminou há mais de um ano, depois de ter visto o seu quarto invadido por dez animais, entre cães e gatos. A ex-namorada lutava contra o desgosto de nunca poder ter tido filhos, vingando essa vontade nos animais. “Mas de uma forma doentia”, garante Filipe, que conseguiu lidar com as horas infinitas que a namorada de então passava a ver televisão ou a dormir, mas não com a falta de higiene que se apoderou de sua casa.

Recuando uns bons anos na cronologia, Filipe lança o desafio: “Imagine uma miúda que conhece o homem da sua vida, mas casa com outro. Divorcia-se com a promessa que esse amor faz o mesmo e ficam juntos para sempre. Enquanto isso não acontece, conhece outro palhaço que leva com isto tudo. Eu sou o palhaço.” O ar ligeiro com que conta as “peripécias” – como lhes chama – da sua vida esconde um episódio que podia dar azo à maior das depressões. A filha de Filipe morreu com cancro, mas nunca teve hipótese de ver o pai triste. “É que nem pensar”, garante. “Mesmo no final, fazia tudo para lhe proporcionar momentos de alegria, nem que fosse com um passeio ao pé do hospital.”

Se este episódio não o levou a uma depressão, não seriam as outras mulheres da sua vida que o iam fazer. “Aliás, eu adoro uma boa história de faca e alguidar”, brinca. É por isso que, voltando à história anterior, trocou a posição de “palhaço” para a de confidente dessa ex–namorada que, até hoje, permanece num estado de depressão, à espera que o homem da sua vida concretize a eterna promessa de divórcio e fique com ela para sempre. “Vai ser assim até ao fim da vida, de certeza”, refere.

Além de mulheres depressivas, Filipe parece ter uma predileção por mulheres casadas. No terceiro caso desta epopeia e depois das ameaças constantes do marido, decide sair de cena, sem saber do grand finale que aí vinha. Numa noite de loucura, a ex-namorada enfrasca-se em comprimidos, pega no filho e bate com o carro contra uma parede. “Felizmente ficou tudo bem e ela acabou internada num hospital psiquiátrico. Já eu, saltei fora.”

 

Catarina Domingues, 54 anos

Catarina devia ter lido os sinais. “Mas a família do Paulo ficou tão contente por ele ter encontrado alguém ‘normal’ que ajudaram a esconder alguns pormenores do seu passado.” Passado esse que o ligava a más companhias e atos de rebeldia. A isso juntava-se a separação dos pais e a ausência paterna a partir da adolescência, fatores que Catarina usava como justificações para um comportamento que deixou de ser aceitável logo a seguir a casarem.

“Passava da pessoa mais inteligente, querida e fantástica do mundo para a pior pessoa do mundo, com especial predileção em me agredir e à mãe, ainda que apenas verbalmente”, conta. Assim, também Catarina passava da mulher mais incrível do planeta para a origem de todos os males com que Paulo tinha de lidar. “Perdi a conta das vezes que ameaçou matar-me, aos nossos cães e aos nossos colegas de trabalho.”

Recusava-se a tomar a medicação para a depressão, à qual estava associada a bipolaridade, e por isso, os acessos de raiva eram constantes. “Um dia chegou a casa e eu estava assar bacalhau. Disse-me que tinha comido bacalhau ao almoço e eu respondi que não sabia. A reação dele foi começar aos pontapés a tudo e atirou o fogareiro pela janela”.

Catarina aguentou 12 anos de casamento, por saber que, apesar dos insultos e da insegurança de viver com alguém com este tipo de doença, era a sua tábua de salvação. Prova disso foi o período em que saiu de casa, durante o qual Paulo deixou de fazer a barba e nem sequer banho tomava. “Acabei por voltar, mas tudo continuou igual”, refere. Curiosamente, o ponto final da história foi dado por Paulo, que um dia lhe comunica que se apaixonou por outra pessoa. “Yes! foi a primeira palavra que me passou pela cabeça”, admite.

 

Anabela Carvalho, 58 anos

“Depressão? Trato-a por tu.” É assim que Anabela começa uma conversa sobre um tema com o qual lida desde miúda. Como viveu num colégio feminino desde os dez anos, habituou-se às “depressões momentâneas” de fins de namoro ou chumbos nos exames. Mas nada que a preparasse para lidar com a depressão profunda da mãe, que aos 68 anos entrou num estado tal que tudo indicava que seria algum problema neurológico. “Misturava o passado com o presente, desorientava-se, dizia coisas desconectadas, falava imenso da morte”, diz. De tal forma que, se lhe perguntassem o nome, a resposta era “Maria Teresa, até à morte”.

O trio de filhas uniu-se e deu à mãe os cuidados necessários para evitar um internamento. “Acredito que a mulher é mãe de muita gente: dos filhos, claro, mas também do marido, dos irmãos mais novos, e chegou o momento de ser mãe da minha mãe.” O trabalho compensou e Maria Teresa voltou ao que era, sem se lembrar de quase nada dos meses em que esteve noutra dimensão.

De volta à rotina desenfreada entre filhas pequenas e o trabalho como médica dentista, Anabela foi obrigada a focar a atenção em si quando a energia começou a falhar. “É que eu não era ativa, era hiperativa”, garante. Daí o espanto quando nem força tinha para cortar as cenouras para a sopa.

A fibromialgia, detetada depois de alguns exames, obrigou-a a deixar de trabalhar – “deixei de ter força para arrancar um siso, por exemplo” – e a adaptar-se a uma rotina comandada pelo corpo e, no caso de Anabela, também pela mente. À doença que causa uma dor constante juntou–se uma depressão quase permanente. “Para mim, vivem juntas e eu só deixarei de ter depressão quando deixar de ter dores. Como não há cura nem tratamento eficaz, a minha depressão é crónica”, explica.

A experiência enquanto espetadora dos dramas das amigas, cuidadora de uma mãe depressiva e pessoa com depressão dá-lhe autoridade para falar da depressão como “a pior doença que alguém pode ter”. 

Mas Anabela não se entrega à doença e entre “teatros do está tudo bem” e a força que lhe é natural, divide os dias entre passeios, as visitas das filhas, as leituras e o croché. No ano passado, até se aventurou como professora numa escola profissional. “Habituei-me a viver o dia-a-dia feliz com a minha depressão.”

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