Os tesouros da saúde em Portugal vão ter uma nova casa

De uma receita do séc. XVIII, com pétalas de rosa e resina de cedro, aos instrumentos do Nobel Egas Moniz: séculos de cuidados de saúde estão a ser passados a pente fino por uma equipa do Instituto Ricardo Jorge e um renovado Museu da Saúde vai nascer no Hospital dos Capuchos, em Lisboa. O SOL…

A azáfama é grande, ou não faltassem duas semanas para abrir a porta ao público. Colam-se cartazes, acertam-se etiquetas, dispõem-se peças. 

Estamos no antigo serviço de neurocirurgia do Hospital dos Capuchos, junto ao Campo Mártires da Pátria, em Lisboa. O edifício desativado há mais de uma década está prestes a ganhar uma nova vida: será, no futuro, o espaço sede do Museu da Saúde, um projeto do Ministério da Saúde para reunir a história dos cuidados médicos em Portugal: séculos de progresso e de gente que se destacou, nomes mais e menos conhecidos. A memória de como chegámos à medicina tecnológica e os desafios de saúde pública – da malária à tuberculose, que não pouparam o país, ao início da epidemia do vírus da sida, que guarda um dos marcos mais importantes da história médico-científica nacional. Foi com ajuda portuguesa que se identificou o VIH de tipo 2. Isto claro, sem esquecer, meio século antes, Egas Moniz e as suas inovações, da angiografia – exame com contraste para analisar os vasos sanguíneos – à fórmula pioneira de encarar o cérebro como órgão que também adoece e tentar tratá-lo: a lobotomia.

Helena Rebelo de Andrade, virologista do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, coordena os trabalhos. Há dez anos que o Instituto Ricardo Jorge tem entre as suas missões a instalação de um museu, por isso o papel de ‘curadora’ não é propriamente novo para a especialista em microbiologia, que agora junta o estudo de vírus respiratórios a esta imersão pela história da saúde no país.

Em 2011, começaram a trabalhar de forma sistemática no inventário. No ano passado, o Governo reforçou o apelo e pediu a todos os serviços o levantamento de património. 

A equipa cresceu para cinco elementos, com competências nas áreas da saúde, museologia, história e antropologia. E se já tinham mais de 2.500 peças em mãos, entretanto metade das 59 instituições contactadas pela tutela enviaram informação, sinal de muitos mais tesouros para descobrir nas arrecadações ou vitrinas dos hospitais espalhados pelo país.

Além disso, o passa palavra faz com que continuem a chegar ofertas ao museu. As filhas do anestesiologista Avelino Espinheira, durante anos diretor de serviço em Santa Marta, doaram uma das maiores coleções: 2000 peças, entre instrumentos médicos, bibliografia e documentação. 

Isabel Fragata, também anestesiologista e mulher do cirurgião cardiotorácico José Fragata, ligou há pouco tempo também com instrumentos antigos para doação.

José Pereira Miguel, antigo presidente do Instituto Ricardo Jorge e um dos impulsionadores do museu, fez várias doações na área de cardiologia e medicina preventiva. E as bisnetas de Ricardo Jorge, médico precursor da saúde pública em Portugal no final do século XIX, também já entraram em contacto com a equipa para doar alguns artefactos do avô. 

Trabalho para dois anos

Helena Rebelo de Andrade diz que há trabalho de análise e catalogação para dois anos, mas por agora estão concentrados naquela que será a mostra de estreia do futuro espaço – a exposição «800 Anos de Saúde em Portugal», com inauguração prevista para 7 de abril, Dia Mundial da Saúde. 

Serão apresentadas ao público 400 peças que, por estes dias, vão ganhando o seu lugar nas salas do antigo serviço hospitalar. Logo na entrada, somos recebidos por figuras caras à história da medicina. Uma estatueta de Esculápio, deus da Medicina e da Cura, filho de Apolo, guardada durante anos na farmácia do Hospital de S. José. Metros ao lado, outras duas imagens, de São Cosme e de São Damião, irmãos gémeos e santos mártires, patronos dos médicos, cedidos pelo médico José Germano de Sousa, no ano passado nomeado pelo ministro da Saúde como Alto-Comissário para a instalação do Museu da Saúde.

O espaço mantém a aura de hospital, com as paredes brancas e amplas, mas começa a respirar história. Algumas fotografias nas paredes, a preto e branco, ajudam a recuar no tempo. Médicos de barbas compridas, como se usam hoje, mostra como muito muda mas outro tanto permanece. Já a anos-luz do que vemos hoje nos hospitais, há aparelhos ‘vintage’ como uma antiga máquina de raio-x do início do século passado. E outras relíquias curiosas, como uma cadeira obstétrica de madeira, onde as mulheres tinham os filhos sentadas.

Além do mobiliário antigo, algumas das peças mais preciosas estarão, até ao dia da inauguração, ao resguardo de papel. Helena Rebelo de Andrade não quer revelar tudo, para não estragar o efeito surpresa, mas a curiosidade fala mais alto a cada espreitadela. Numa parte da mostra dedicada aos primeiros anos da nacionalidade e época medieval, um pequeno livro datado já do ano de 1789 evoca a «arte de sangrar» que durante os séculos anteriores era o tratamento disponível para a maioria das maleitas.

O preâmbulo diz tudo: ali se expõe o que há a saber sobre os «vasos sanguíneos, artérias e veias, para melhor instrução dos sangradores: o melhor método de sangrar, de aplicar sanguessugas e ventosas, de abrir os fontículos, operações todas pertencentes aos sangradores», lê-se, lembrando a técnica de tirar sangue ao doente para o libertar das pestilências e o papel dos sangradores, que precisavam de autorização de cirurgiões para exercer. Ensinava-se também uma novidade à época: «A operação da cesariana na mulher prenhe», para a «poderem praticar na falta de cirurgioens», como se escrevia no português antigo.

As peças mais antigas na exposição provenientes do parque do Serviço Nacional de Saúde não viajaram, porém, de muito longe: são um conjunto de azulejos que numeravam as camas de uma enfermaria no Hospital Real de Todos-os-Santos, que ficou destruído no terramoto de 1755 e daria lugar ao Hospital de São José. As iniciais ‘OS – Omnia Sanctorum’, Todos os Santos, nome prometido para o futuro centro hospitalar de Lisboa, lembram esse legado.

Há ainda uma receita médica do século XVIII, que mais parece um produto para limpar móveis. Não se diz para o que servia, mas fica o guião: solução de pétalas de rosa, acetato de chumbo, extrato de ópio e resina de cedro.

Noutra sala, e já décadas adiante, exibe-se a mesa onde Egas Moniz fez a primeira angiografia em 1927 ou o leucótomo, instrumento que inventou e mandou fazer para extrair a zona do cérebro que pensava estar por detrás de psicoses. A técnica controversa, iniciada em 1935 no Hospital de Santa Marta e que lhe valeria o Nobel em 1949, depressa revelou efeitos secundários graves como apatia e perda de memória, um remédio pouco melhor que a doença.

No futuro, o museu deverá ocupar outros dois edifícios nos Capuchos. Helena Rebelo de Andrade acredita que este novo capítulo da vida do projeto vai valorizar a chamada Colina de Santana, o coração do Centro Hospitalar Lisboa Central. Mas o objetivo é, sobretudo, chegar às pessoas. «A avó de uma amiga minha costuma dizer que a saúde para ela é a diferença entre o joelho direito e o esquerdo: um dói e outro não», sorri a coordenadora, que acredita que o papel diferenciador do projeto, além de contribuir para preservar a história, será sensibilizar a sociedade para o «papel da arte médica e sanitária portuguesa ao serviço do bem-estar individual e coletivo».