Francisco Mendes da Silva. “O CDS não nasceu para ser mordomo do PSD”

Francisco Mendes da Silva, dirigente do CDS, foi deputado durante 28 dias e divide o programa “Sem Moderação” com João Galamba, Daniel Oliveira e José Eduardo Martins. Uma entrevista exclusiva.

Depois do chamado “caso das offshores”, pareceu haver algum receio interno de que o CDS se tornasse um partido de casos? Não começam a ser polémicas a mais? 

Não é o CDS que é um partido de casos; é a política que, hoje, infelizmente, se faz de casos. Vivemos um tempo em que a verdade é menos importante que o combate político. No “caso” das offshores, a maior parte das pessoas tira conclusões de factos que não conhece e de leis que nunca procurou conhecer. Não tem sentido centrar isto no CDS porque é algo vivido em todos os partidos. Cada vez que um atira lama a outro antes do apuramento de factos envenena um ambiente que acabará por virar-se contra si. 

Diz que é vivido noutros partidos. Quer exemplificar?

Há algo diferente quando se tira conclusões políticas de factos políticos. O ministro Centeno, por exemplo: o próprio confessa que foi imprudente, assumindo um erro de perceção. Outra coisa é concluir-se que houve qualquer ilegalidade ou imoralidade durante o exercício do cargo quando ainda não se sabe minimamente o que esteve em causa. A política não pode ser um desporto de combate que esquece as suas prioridades: o aperfeiçoamento das leis, o aperfeiçoamento do Estado e o bem–estar. 

A reação do PSD foi apresentar uma iniciativa legislativa para tornar obrigatória a publicação das estatísticas que Paulo Núncio não publicou. Há um crescente distanciamento entre o PSD e o CDS?

Os temas que envolvem offshores contaminam sempre o debate e ninguém quer estar colado a esse tema, por isso admito que o PSD tenha sentido algum receio de que o tema lhe caísse no colo. Com os Panama Papers, com os LuxLeaks, com contas na Suíça, a reação política tendeu a ser sempre “vamos apertar a malha”. O problema é que, quando vão reforçar o controlo de capitais, a proibição de planeamento fiscal em offshores, etc., dão-se conta de que a lei portuguesa já é bastante fortalecida nesses aspetos. 

E há distanciamento entre o PSD e o CDS ou não?

Há, mas há desde o fim do anterior governo. O essencial da política do atual governo foi reverter e criticar o anterior governo, logo é natural que o CDS e o PSD o defendam juntos. Mas são dois partidos distintos. O CDS não nasceu para ser o mordomo do PSD.

Então, a proximidade é mais quando se defendem da geringonça do que para contrapor à geringonça?

Sim, naturalmente. Agora é preciso partir para outra. A direita tem de perceber…

Qual direita? 

A direita parlamentar, o PSD e o CDS. 

É que Passos Coelho diz que não é de direita e nunca ouvimos Assunção Cristas dizer que é de direita… 

Certo, mas picuinhices ideológicas não é comigo. Utilizo o termo tendo em conta a configuração histórica e parlamentar. A mim também me acusam muitas vezes de não ser de direita…

Porquê? 

Porque a direita tem muitos picuinhas. Por vezes tenho posições um pouco menos ortodoxas em matérias de – e eu não gosto nada do termo – costumes. 

É demasiado liberal nas causas fraturantes?

Defina causas fraturantes. 

Está a dizer que as causas que a esquerda vende como fraturantes não têm todas a sua rejeição?

Nem todas essas “causas” têm a minha rejeição por princípio, é verdade. 

E isso não vai contra posições maioritárias dentro do CDS?

Provavelmente, mas por alguma razão se chama posição maioritária e não posição única. A minha posição no partido não depende de acenar que sim em dez matérias. Há militantes do CDS mais estatistas do que eu em muitas coisas: razão de Estado na segurança, no fisco, na economia… Estão mais próximos do Partido Socialista do que eu. 

Mas é compreensível que um democrata cristão, em termos de Estado social, esteja mais próximo de um socialista ou de um social-democrata, não é? 

A direita tradicional também era mais estatista. Talvez isso seja politicamente mais estruturante que saber se as pessoas devem casar com um homem ou com uma mulher… Eu não acho que alguém que seja a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo seja menos próxima da matriz do CDS em 2017 do que alguém que ache que o Estado deve ter mais presença na economia. Acredito que ambos podem fazer parte do CDS; todos os partidos são coligações de sensibilidades. Uma pessoa do CDS com a formação feita nos anos 60 e 70 é diferente de uma pessoa como eu, que fez a sua formação com “O Independente”. São coisas diferentes. 

Foi para o CDS por causa d’“O Independente”? 

Não. 

Foi para o CDS por causa de Paulo Portas? 

Podemos falar sobre isso, é um tema de que gosto muito. Tem tempo? (risos)

Imenso. 

Eu venho de uma família bastante apolítica, pouco politizada. Não tive nenhuma orientação. Não sou do CDS por herança familiar. Estava sujeito aos elementos.

Que foram?

Dois negativos e um positivo. Eu era um miúdo da província, de classe média, em Viseu. No início da adolescência, aquilo que mais me irritava era a arrogância social do cavaquismo. Viseu era o Cavaquistão; havia um certo pedantismo numas elites geradas espontaneamente com isso. Uma nomeação ou uma proximidade fazia de fulano um baronete. O outro elemento negativo era a arrogância civilizacional da esquerda; era bastante bafienta. 

E ainda é?

Um bocado (risos). Mas na altura era mais; soava a Brigada Victor Jara e a baladas de Coimbra. Falavam como se tivessem um direito divino a governar, como se fossem melhores que os outros. Tudo isto me afastou do poder do PSD, por um lado, e do Partido Socialista, por outro. 

E a influência positiva?

“O Independente”. Começou a circular lá em casa. E “O Independente” era rock’n’roll. Eu era miúdo, ia descobrindo o rock, a música alternativa, e aquele lado da política. Também era arrogante, é verdade, mas era uma arrogância que me dizia mais. Uma insolência quase juvenil muito minha que me fez aproximar da direita. Há a geração dos que escreveram lá e a geração dos miúdos que foram apanhados por aquilo – eu sou um deles. Se quiser, entrei na direita pelo lado intelectual. Quando o Paulo Portas resolve ir para o CDS, fico atento ao CDS. Vi que havia uma continuidade, uma nova geração. Lembro-me de gostar de ouvir o António Lobo Xavier, com quem vim a trabalhar, e tudo aquilo fez sentido. 

Indo ao seu trabalho em si: é advogado. Vê falta de transparência entre esse mundo e o mundo da política?

Talvez haja. Mas talvez os jornalistas olhem no sentido errado. Sempre que se fala de casos de negócios públicos que foram assessorados por advogados, isso nunca resulta de grande investigação. Basta ir ao portal da contratação pública; está lá, é transparente. Muita gente faz um grande número com isso e anda desatenta ao que realmente interessa: outros casos, de advogados na política cujos negócios não são transparentes. 

Gosta do que faz?

Muito.

E saudades do parlamento?

Não sei se tive tempo para ter saudades. Foram só 28 dias.

Isso chateou-o?

A maior fã da geringonça, tenho–a em casa: é a minha mulher. Não pela bondade intrínseca da coisa, mas porque, diz ela, me salvou do parlamento. Quando fui convidado por Paulo Portas para integrar as listas no Porto, debati-me com opções de vida para quatro anos. Posso dizer-lhe que, na política, era o papel que gostaria mais de exercer, de deputado. É o mais nobre e o que tem mais a ver com o tipo de gosto que tenho pela política.

Porquê?

Pelas influências que tenho, do parlamentarismo britânico. Estive um mês no parlamento e talvez tenha tido um mês mais interessante que a restante legislatura. Cheguei à Assembleia com a noção muito séria de que é preciso tempo para aprender. É um tipo de talento que só se ganha com tarimba e eu achava que precisava de pelo menos seis meses. Apreciei muito de perto Cecília Meireles, extraordinária, Nuno Magalhães…

Estamos a falar em termos de oratória?

De tudo, capacidade de trabalho, rigor, seriedade. Eu debato semanalmente com um dos deputados mais temíveis, que é o João Galamba, mas é num programa de televisão, numa conversa quase entre amigos… Não é o mesmo.

Porquê “temível”? 

No sentido de bastante inteligente. 

A ele e a si juntam-se o José Eduardo Martins e o Daniel Oliveira. Dão-se todos muito bem, não é? 

Há três coisas que ajudam no “Sem Moderação”. Nós já nos conhecíamos antes. Conhecia o João há mais ou menos oito anos. Conhecia o Zé Eduardo desde que, no primeiro Primavera Sound, depois de algumas cervejas, fui ter com ele e disse-lhe que era a segunda melhor coisa que ele já tinha feito na vida.

Qual era a primeira? 

Era ter insultado e oferecido pancada a um deputado do PS que o acusara de defender interesses de clientes no parlamento (risos). Ficámos amigos desde aí. 

E o Daniel Oliveira?

Conheci-o no tempo dos blogues e em alguns encontros, quando vivi em Lisboa. Há um respeito intelectual entre os quatro. Talvez o João e o Daniel não gostem muito disto, mas aquele programa é a prova de que o liberalismo funciona. Aquilo chama-se “Sem Moderação” porque não tem moderador e porque se esperava que fosse um bocadinho mais crispado. Mas como não há um moderador propriamente dito – alternadamente, há uma pessoa que vai distribuindo a palavra -, nós temos todos de nos autoconter. Aquele programa resulta tão bem porque é um monumento à autorregulação. 

Nunca ofereceu pancada a nenhum lá fora, então?

Não (risos), nunca. Houve um momento em que eles dizem que eu estava mais abespinhado, que foi na formação da geringonça. De facto, a coisa irritou–me. Qualquer político que queira o poder por boas razões – por querer aplicar aquilo em que acredita – faria a mesma coisa na posição de António Costa. 

Uma coisa era o PSD ficar em segundo lugar nas eleições e coligar-se com o CDS para se sobrepor a uma vitória minoritária do PS, outra coisa é o PSD ganhar as eleições e o PS juntar-se a partidos extremistas para se sobrepor a uma derrota. Ou não? 

Claro, isso foi o que me irritou, a artificialidade da coisa. O PS dizer que estava mais próximo do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda do que do CDS e do PSD. É uma mentira. A linha divisória no parlamento português não era, nem é agora – do ponto de vista ideológico e de propostas essenciais -, entre o PS e o PSD, é entre o PS e o resto da esquerda. Mas a verdade é que António Costa quis fazer as coisas de modo que parecesse o contrário.

E conseguiu…

Está a conseguir, sim. 

Quando ouviu Carlos César dizer que “a direita tentou inverter o resultado eleitoral”, o que pensou?

Já nada me surpreende no dr. Carlos César… Está lá para fazer o papel que faz. 

Se o PNR tivesse elegido deputados, acha que o CDS faria uma geringonça com a extrema-direita como Costa fez com a extrema-esquerda?

Não. Não deveria fazê-lo e creio que não faria. Mas a questão a levantar no que toca à história alternativa é: se o PS ganhasse as eleições sem maioria absoluta e conseguisse fazer maioria com o Bloco e com o PCP ou conseguisse fazer maioria com o CDS, com quem faria? Eu acho que seria com o CDS. 

E o CDS aceitaria o convite?

Eu penso que não, mas isso é outra coisa… Neste momento, não vejo o CDS a fazer bloco central com o PS. Um dia, não sei. 

Não seria estranho para tantos dirigentes que passam a vida a atacar socialistas verem-se aliados a socialistas? 

O CDS também passou a vida a bater no PSD… No futuro, não se sabe. Depois da geringonça, o regime constitucional mudou. Podem ser criadas condições para que no futuro seja possível uma coligação PS/CDS, mas também digo: mais natural que isso – e não estou a defender nem uma nem outra – seria uma coligação entre o PS e o PSD. Não entendo porque perguntam mais ao CDS se aceitaria coligar-se com o PS do que perguntam ao PSD.

Talvez por associarem o PSD de Passos Coelho mais à direita do que o CDS de Assunção Cristas…

Isso faz tudo parte de uma geometria variável que só pretende simplificar. No outro dia, uma pessoa sentada no mesmo debate que eu foi acusada de ser de direita e disse que não era nem de direita nem de esquerda, mas que gostava de contas certas. A ideologia foi suspensa no tempo da troika. A ideologia era a salvação do país. Isso está sempre antes das minudências dos partidos. Parece-me que qualquer futura aliança não será possível enquanto o primeiro-ministro for António Costa, que é alguém por quem o CDS nutre uma desconfiança considerável e justificada. 

É um feito para Assunção Cristas ter como vice-presidentes uma das vozes mais conservadoras, Nuno Melo, e uma das vozes mais liberais, Adolfo Mesquita Nunes? 

Sim, só diz bem dela. Estamos a falar de uma mulher com vida e profissão que em dez anos foi deputada, ministra e chega a líder de um partido conservador sem oposição… 

Foi depressa demais? 

Não. Paulo Portas demorou muito menos tempo. Pelo contrário, apoiei-a. Era um sinal que o CDS devia dar. 

Depois do “sinal”, o partido não mexeu em intenções de voto. 

A maior parte dos portugueses, em março de 2017, o que deseja é ausência de eleições. Quando pergunta a um povo que não quer eleições em quem votaria, a tendência é dizer: em quem lá está. Eu não daria grande importância a sondagens neste momento. Quando estivermos em vésperas de eleições, veremos. Aí, o CDS terá de jogar a carta.

Que é…

Já não há voto útil! Já não governa quem chega em primeiro lugar. A sensação que temos no CDS é que, na última semana de quase todas as eleições, perde muitos votos por efeito do voto útil. Quando tens um partido na casa dos 12%, qualquer ponto percentual faz uma enorme diferença. Com o método de Hondt, tendo menos de 16% fica-se sempre com menos percentagem de deputados que percentagem de votos. Sem o condicionamento do voto útil, poderá haver a diferença entre ter 20 deputados e ter 40 deputados. 

O ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, pediu ao governo português para se certificar de que não precisamos de um novo resgate. É um cenário que vê acontecer?

Estamos, obviamente, dependentes do Banco Central Europeu, e há outra coisa. A direita não tem de ser catastrofista, mas repare: nós fomos resgatados com o dinheiro dos contribuintes de outros países. Eu não sei se há esse ambiente na Europa de hoje. 

E agora?

O PSD e o CDS têm de perceber que política é representação. Até aos anos da troika, a diferença entre esquerda e direita era bastante percetível. A esquerda defendia o Estado social, tinha o funcionalismo público como eleitorado típico, etc.

Mas não há nenhum programa da “direita” que não defenda o Estado social…

Certo, e acho que deve. Quando vem o resgate, e era impossível Sócrates ganhar aquelas eleições, o CDS teve um grande shift eleitoral de funcionários públicos. Depois dos anos da troika, a direita precisa de perceber que perdeu grande parte desse eleitorado. O eleitorado jovem contra aumento de impostos, o reformado que era a favor do aumento das pensões… É óbvio que a direita não aplicou o que aplicou por sadismo ou ideologia, ao contrário do que diz o PS. Aplicou-o porque era um programa de resgate negociado pelo PS. Chegamos ao pós-troika e temos um ambiente que permite ao PS elevar o seu lado ideológico – o seu crescimento em sondagens tem muito a ver com isso. Imagine o que era a direita governar depois da troika. O PS nunca mais governaria. É bom lembrar que ficámos a oito ou nove deputados da maioria absoluta.

Mas não foi isso que aconteceu…

Exato. Hoje, quando se olha para a direita, o que representa ela? O discurso sobre o défice, contas públicas, é importante, mas a direita também precisa de um discurso aspiracional, o tal “elevador social” de que o CDS falava muito. A tragédia é apanharmos um governo de esquerdas unidas que não tem nenhuma vontade de baixar impostos, apostar na economia, dar liberdade de iniciativa às pessoas; não têm qualquer projeto político de futuro, de substrato. A esquerda está nas suas sete quintas: tem o eleitorado estatista. Se a direita não começa a falar para o outro – para a sociedade civil -, para um espírito que já não esteja com a troika, não sei para quem vai falar… É preciso ter um discurso que fale na vida das pessoas, no dia-a-dia, para que elas se reconheçam no discurso. Sozinho, o discurso macroeconómico não pega. As contas sãs não são um fim em si mesmas; são para o futuro, para um sistema fiscal mais justo, para criar empregos. A direita não deixou de acreditar nisto, mas precisa de dizê–lo.