Ronaldo. A ilha mágica do rapaz dos pés dourados

Cristiano Ronaldo joga hoje na Madeira, capitão de Portugal, no topo da sua carreira. Como dizia Brecht: “Não há vencedor que não regresse a casa!”

Funchal, ilha da Madeira: cá do alto, da janela do avião, a ilha parece um rochedo plantado no meio do Atlântico. A cidade vê-se bem quando o avião se faz à pista de ocidente para oriente. Do lado esquerdo do aparelho, milhares de casas brancas trepando pela encosta verde. Foi aqui que nasceu Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro, no dia 5 de fevereiro de 1985, filho de um cantoneiro chamado José Dinis dos Santos Aveiro e de uma cozinheira chamada Maria Dolores dos Santos Aveiro. Quando veio ao mundo, Cristiano Ronaldo já tinha duas irmãs: Elma e Cátia. E um irmão: Hugo. Dinis dos Santos Aveiro tinha uma admiração especial pelo então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan. O seu último filho também se chamou Ronaldo.

Santo António é uma paróquia dos su-búrbios do Funchal, nos caminhos que levam para o interior da montanha, em direção ao Monte e à Camacha. E depois, até onde a vista alcança, há o pico dos Barcelos.

Dinis Aveiro, como era conhecido pelos amigos, fazia serviço de roupeiro no Andorinha, um clube amador que nasceu a 6 de maio de 1925 no bairro de Santo António. Foi aí, no campo do Andorinha, que Cristiano Ronaldo começou a jogar futebol. Era magrinho, muito magrinho. Aos dez anos, Ronaldo passou a jogar nos iniciados do Nacional. No ano seguinte chegou a Lisboa para ser absorvido pelas escolas do Sporting. Aurélio Pereira, o responsável pela equipa de olheiros do Sporting, caça-talentos por natureza, não teve dúvidas sobre as qualidades do menino que vira jogar no Funchal.

Nos seis anos seguintes, a casa de Cristiano Ronaldo seria a academia de Alcochete. O seu cerrado sotaque madeirense colocava entraves à sua ambientação no Continente e dificultava a sua integração social. Ronaldo era, muitas vezes, um menino só. Mas a bola trazia alegria a cada um dos seus dias. Aos 15 anos foi–lhe detetada uma taquicardia, ou seja, uma atividade excessiva da bombagem de sangue, algo que foi resolvido com uma pequena intervenção cirúrgica. Parecia ter sido marcado por um sinal divino.

A ilha mágica

Ronaldo volta a jogar hoje na Madeira, mas a ilha faz parte da sua vida desde sempre. Nunca deixou de a trazer no peito. Como em fevereiro de 2010, por exemplo, 21 de fevereiro para ser exato, no Estádio Santiago Bernabéu: marca um golo impressionante de livre direto e contribui para a goleada do Real Madrid ao Villareal: 6-2. Levanta a camisola e, na T-shirt que traz por baixo, pode ler-se, simplesmente: Madeira. A tragédia abatera-se sobre o lugar mágico da sua infância difícil. Na véspera, um temporal devastador assolara o território: 47 mortos, 600 desalojados, 250 feridos. Ronaldo estava com eles no centro da catástrofe, jogando o seu futebol maravilhoso num arremedo de alegria e tristeza. A alegria do golo, a tristeza da morte.

Já fora assim em Moscovo, na noite em que o desaparecimento de Dinis Aveiro chegou em forma de notícia. Ronaldo estava com a seleção, preparado para defrontar a Rússia. Teve um avião pronto para o levar para Londres, onde o pai fora internado. Preferiu ficar. Jogou com um fumo negro no braço. Toda a equipa jogou com um fumo negro no braço. Mais tarde, em Frankfurt, no Mundial da Alemanha, frente ao Irão, marcou o segundo golo de Portugal, de penálti. Ajoelhou-se no relvado e esticou um dedo para o céu. A sua dedicatória foi simples: “Para ti!” Para Dinis. Uma espécie de confrontação consigo mesmo e com os últimos fantasmas do passado. Ou talvez a travessia entre as duas margens que separam a infância da idade adulta. Um homem, portanto.

A pressa

“Vive depressa, morre cedo, deixa um cadáver bonito”, dizia a velha frase do pós-guerra, esse tempo em que a vida fora por demasiadas vezes obrigada a intervalos. Com Ronaldo, não há intervalos. Nem no jogo. Ele vive e joga com pressa. De cada vez que o árbitro apita aos 45 minutos, há nele uma irritação de menino que se vê obrigado a deixar a bola para ir lanchar às ordens da mãe.

Conheci Ronaldo ainda era um menino. As lágrimas que lhe encheram os olhos na final do Euro-2004, no Estádio da Luz, chorando amargamente a derrota dolorosa, foram também um momento de crescer. Lembro-me de lhe dizer: “Ainda tens muito para ganhar, no futebol e na vida.” Ele ganhou. Ou melhor, foi ganhando. Continua a ganhar. Como dizia Bertolt Brecht, “nem todos os que regressam a casa são vencedores, mas não há vencedor que não regresse a casa”.

Hoje, com a camisola da seleção de Portugal, de braçadeira de capitão no braço, Cristiano Ronaldo vai jogar no Funchal, a sua terra, na sua casa, e está no topo do mundo, mais alto do que os meros 8848 metros de altitude do Evereste. É ele e o seu universo. Ele e o seu povo. Ele e a sua gente. A Madeira está-lhe no sangue. É inevitável que o abrace num carinho infinito de mãe. A ilha que fica no ponto mais firme da ternura.