Telemóveis também são um risco para hepatite A

Primeiras suspeitas de surto em Lisboa chegaram ao GAT a 9 de janeiro. Diogo Medina, médico da associação que trabalha com homens que têm sexo com homens, lamenta o atraso no alerta público mas defende que, agora, importa agir. A discriminação é uma realidade, denuncia, mesmo nos hospitais. «Sabemos que comentários como ‘andaste a lamber…

Imagine que é internado com hepatite A e tem de faltar ao trabalho. Com um surto em curso na região de Lisboa, o cenário não é improvável. Nos últimos dias, foi reforçada a mensagem de que a doença se transmite através de relações sexuais desprotegidas, sendo maior o risco na prática de ‘anilingus’ (estimulação do ânus com a língua) e sexo anal seguido de sexo oral. Mas estando o vírus em circulação, nem tudo tem de se resumir ao sexo. O vírus é expelido através das fezes três a uma semana antes de aparecerem os sintomas, pelo que qualquer pessoa que esteja infetada e não saiba e não lave bem as mãos depois de ir à casa de banho pode inadvertidamente conspurcar um cesto do pão ou uma taça de amendoins e passa desta forma o vírus através de alimentos contaminados.

O exemplo é de Diogo Medina, médico do GAT (Grupo Português de Activistas sobre Tratamentos de VIH/Sida), que lembra também que um dos objetos de uso diário onde são encontrados mais vestígios de matéria fecal é praticamente universal: o telemóvel. E anda nas nossas mãos, com que pegamos em alimentos.

A associação representada por Diogo Medina, que já estava no terreno na prevenção e tratamento do VIH e de outras doenças sexualmente transmissíveis, passou a estar nos últimos dias no epicentro da ação contra o surto de hepatite A já confirmado em Lisboa e noutros 12 países europeus. Segundo os dados tornados públicos pela Direção Geral da Saúde esta semana, a maioria dos casos estão concentrados nos homens que têm sexo com homens, portanto, na transmissão sexual. Diogo Medina lamenta o atraso das autoridades de saúde nacionais em reconhecer o problema: as primeiras suspeitas de que algo se estaria a passar neste grupo surgiram na Europa em dezembro e ao GAT o primeiro sinal de alarme chegou a 9 de janeiro. «Ligou-nos um médico que faz urgência em S. José a dizer que no espaço de dois meses tinha diagnosticado hepatite A em oito homens que têm sexo com homens, o que não era normal. Anualmente tínhamos cerca de 20 a 30 casos de hepatite A, associados a viajantes que tinham estado em locais onde o vírus é endémico».

Se a doença tem uma evolução benigna, mas obriga muitas vezes a internamento hospitalar – e por isso está a ser recomendada a vacina ou imunoglobulina a todas as pessoas que saibam ter estado em contacto com alguém infetado ou que estejam em maior risco de contrair o vírus – regressemos ao cenário em que é diagnosticado e tem de faltar ao trabalho para falar de outro efeito secundário das doenças infecciosas: a discriminação. E se os seus colegas começassem a comentar que tinha andado a «lamber rabos», como se tem lido nos comentários a algumas notícias? E se, por causa disso, falassem em surdina da sua vida sexual e orientação?

Medina diz que, nesta fase, a preocupação está a começar: o alerta público foi dado há poucos dias e começam a chegar os primeiros pedidos de informação ao GAT. «Apesar da sociedade instagram em que vivemos e de vermos pessoas que tiram selfies na cama do hospital, a maioria não diz o que tem e não tem de dizer», diz. O médico, que já lidava com casos de hepatite A nas consultas da medicina do viajante, acredita que o surto não vai contribuir para um retrocesso na luta contra a estigmatização da homossexualidade que tem vindo a ser travada desde a epidemia do VIH nos anos 80. «Quem já tinha essas opiniões, agora tem apenas um motivo para as expor». Mas isso não diminuiu o risco de discriminação no trabalho e na família, que pode ser duro. «Nem todos os homens que têm sexo com homens são gays e por isso é que se usa esta expressão. Podem ser pessoas que se sentem mais atraídas pelo sexo oposto mas, que de vez em quando, têm relações com o mesmo sexo. Se tiverem de se expor e assumir isso, essa opção pode ser dramática na vida de alguns».

Sem ser preciso ir tão longe, Medina alerta que a discriminação é ainda uma realidade em locais onde as pessoas deviam estar mais protegidas, como os serviços de saúde. «Em muitos hospitais onde as pessoas estão a ser tratadas sabemos que os profissionais de saúde têm um papel louvável mas há bastantes casos de discriminação dos utentes por questões de ordem racial, género e orientação sexual. Sabemos que, muitas vezes, comentários como ‘andaste a lamber rabos, tens o que merecias’ ouvem-se não só da população geral mas de médicos e enfermeiros», lamenta o médico, explicando que ainda não têm queixas deste surto em específico mas chegam ao GAT relatos de muitas situações relacionadas com infeções sexualmente transmíssiveis, incluindo VIH. «Médicos e enfermeiros que dizem coisas como ‘não sei como ainda tem namorado’», conta. «Se acontece com o VIH, sabemos que à boca pequena vai acontecer com a hepatite A».

Como no início da epidemia do VIH

Ainda não é claro a dimensão que o surto poderá tomar nem em Portugal nem na Europa. O último balanço divulgado pelo Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças, a partir de um levantamento feito a 21 de fevereiro, revelava que no espaço de um ano tinham sido notificados 287 casos de hepatite A em 13 países. Mas, nessa altura, Portugal só tinha registado 23 casos desde dezembro e, segundo os últimos dados da DGS, entretanto o número subiu para mais de 120. Se o surto fica contido ao grupo dos homens que tem sexo com homens, que representam mais de 90% dos casos registados em Portugal, é uma das incógnitas. Diogo Medina alerta, porém, para o perigo dos rótulos neste tipo de fenómeno e compara o que se está a passar ao início da epidemia da sida. «Tudo o que mete o ânus no geral faz muita confusão às pessoas. O sexo anal é muito demonizado e acredita-se que os homossexuais masculinos são mais estigmatizados do que os femininos precisamente por isso. Quando associamos uma infeção ao ânus, a população mais próxima é a mais estigmatizada, por muito que os heterossexuais também o façam», diz. Certo é que «toda a gente tem rabo», continua, para chamar as coisas pelos nomes. «Com as devidas diferenças, no início da epidemia do VIH também se achou que era uma coisa só dos homens que têm sexo com homens e ninguém ligou nenhuma. Depois viu-se que não era».

À boleia de viajantes

Se o surto atingirá toda a população é outra incógnita. Mas Diogo Medina salienta que esse cenário não pode ser descartado. Por isso, depois do atraso no reconhecimento do surto, o médico defende que é essencial alargar a vacinação a todas as pessoas em maior risco e reforçar as mensagens de prevenção como uma boa higiene, da lavagem das mãos à lavagem da região perianal antes do sexo. «Não é preciso entrar em psicose e tomar sempre banho antes de fazer sexo, mas quem tem práticas de maior risco deve fazer uma boa higiene», sublinha o médico. «Perdemos pelo menos um mês de ação, quando começaram a ser notificados mais casos e as pessoas estavam infecciosas sem saber».

Hoje já se sabe, aliás, como o vírus chegou à Europa. Há três estirpes em circulação. Uma terá surgido em Taiwan: viajantes infetados na ilha terão tido relações desprotegidas no festival Europride, no verão passado na Holanda, iniciando uma cadeia de transmissão. Uma segunda estirpe, identificada em Londres no contexto de sexo entre homens, foi ligada a alguém que terá viajado pela América do Sul, onde o vírus é endémico. Há uma terceira estirpe identificada na Alemanha, que ainda está em estudo. Por agora, a maioria dos casos já analisados em Portugal são da estirpe latino-americana. «Foi um surto que começou com viajantes», resume Diogo Medina.

Na primeira orientação emitida pela Direção-Geral da Saúde, na quarta-feira, reconheciam-se como estando em maior risco pessoas que se desloquem para áreas onde a doença é endémica (Ásia, África e América Latina), que ingiram alimentos ou água contaminados e homens que fazem sexo com homens. O diretor-geral da Saúde chegou a associar o surto à moda do ‘chemsex’, relações sob o efeito de drogas associadas a mais comportamentos de risco como não usar preservativo.

Após uma reunião com o GAT mas também com a ILGA, as normas foram revistas e o chemsex foi descartado: «Em Lisboa, temos um estudo que nos diz que é residual, é praticado por 1,7% dos homens que têm sexo com homens». Já as estatísticas do GAT revelam que o sexo oro-anal (anilingus) é frequente entre os homens que têm sexo com os homens: mais de 60% costuma fazê-lo. «É algo normal como também será para alguns heterossexuais». O alerta da DGS passou a incidir sobre viajantes e homens que praticam sexo anal (com ou sem preservativo) e sexo oral, sexo oro-anal, sexo anónimo com múltiplos parceiros, em saunas e clubes ou combinado através de apps. A promoção de alertas em apps gays com o Grinder é uma das recomendações europeias, estratégia que o GAT mas também a ILGA defendem que devem ser seguidos em Portugal.

Vacinas podem ser a origem e o fim do problema

Com a história do surto a ganhar forma, Medina explica que há outra suspeita. Em maio do ano passado, houve uma rutura de vacinas para hepatite A a nível europeu, o que terá feito com que algumas pessoas viajassem para países onde o vírus é endémico e é fácil ingerir alimentos ou água contaminada sem anticorpos. Temporalmente, o regresso destes viajantes bate certo com os casos detetados na Europa desde o final do verão e que terão desencadeado este surto. Se a vacina poderá ter estado na origem do problema, Medina defende que agora é também a forma de o travar, vacinando os contactos de pessoas que adoeceram mas também apelando à vacinação dos homens que têm sexo com homens em maior risco por praticarem mais vezes os comportamentos sexuais através dos quais é possível contrair o vírus. Depois de um desencontro inicial sobre a estratégia a seguir, a DGS reuniu-se ontem com as associações e foi decidido centralizar as vacinas – que continuam a ter falhas de stock e agora terão um acréscimo de procura – num único centro de saúde de Lisboa.

O centro comunitário CheckpointLX do GAT, no Princípio Real, tem uma consulta dedicada à hepatite A. Outro serviço que disponibilizam é a hipótese de avisar parceiros, mesmo anonimamente. «Há que ultrapassar esta fase de pensar naquilo que cada um faz com a sua vida para prevenir os riscos associados, da mesma forma que nas relações heterossexuais se previnem as gravidezes indesejadas sem que ninguém ande para aí a falar do sexo que fazem».