Miguel de Carvalho. O livreiro que Coimbra já não merece

Há 22 anos em Coimbra, livreiro diz que hoje esta é uma cidade em que as bibliotecas privadas estão à venda, e os livros saem dali para o resto do país  

Entre os objectos que oferecem testemunho do génio criativo do homem não há outro que mais perto tenha chegado de atrair o infinito a uma gaiola. O livro é o relógio por extenso; nenhuma hora das que ele conta se repetem. As suas mínimas variações saem para caçar nos mais largos horizontes. É uma estrada dobrada inúmeras vezes, e que fica ali com os seus dois sentidos ou mais, a paisagem mudando para quem vai ou volta, e a mesma disponibilidade face a quem a descobre como para aquele que a percorre uma última vez, despedindo-se. Ali está tudo, descido ao poço mais fundo, e num segundo o balde volta à superfície, cheio, bastando um gesto que não diferencia as forças de um jovem e de um moribundo. Nenhum outro objecto aguarda tão pacientemente uma luz capaz de reencantar o seu mecanismo. “Meus olhos resgatam o que está preso na página: o branco do branco e o preto do preto”, lê-se num poema arábico-andaluz que Herberto Helder transplantou para esta língua ao modo antigo, deixando as raizes sensíveis à passagem do tempo.
Miguel de Carvalho é livreiro em Coimbra há 22 anos. Tem as chaves de um edifício de 3 pisos que resiste no centro da cidade – Adro de Baixo – desde o século XIX. Mudou-se para ali em 2011, depois de ter ocupado um primeiro andar numa das ruas da Baixa, e à sua guarda estão cerca de 45 mil volumes. Compra bibliotecas, vende livros raros e antigos, alguns novos, escolhidos a dedo. Tem preciosidades, edições dessas que deixam nervosos os coleccionadores, e tem as colecções que os anos de vacas gordas legam aos das magras, clássicos repetidos, dispostos em ilhas ou malas de viagem abertas, pechinchas recriminadoras, que nos olham e murmuram a pena que têm sabendo de ante-mão que não temos vida para tudo o que podiam contar-nos. Intrigas milenares, tragédias ansiosas por nos sovar a alma, lendas universais, rumores sufocantes, anedotas capazes de nos virar do avesso de tanto rir, confissões tão íntimas quanto as que só os condenados trocam.
Foi novo e ganhou melhor como engenheiro, da especialidade geológica, empregado na construção civil, a participar nas grandes obras que ligaram todo o país, abria túneis. Miguel diz que o que lhe faltou foi o feitio para passar os dias a acatar ordens. Já então gostava muito de livros, e isso certamente não ajudou. Se há um defeito nos livros, se hoje mereciam um autocolante e até fotografias a deixar muito explícito os malefícios de fazer da leitura um vício, o risco de insubmissão é certamente um deles. Não acontece a todos, mas alguns de facto vão e voltam estranhos, tirando ilações esquisitas de tudo, com tendência até para suspeitar, e mesmo desenvolver teorias como se isto andasse tudo ligado.
Entre o género que passa os dias em dedicação aos livros, Miguel de Carvalho não cabe no estereótipo. Em vez de um personagem obsessivo, o tipo meio ríspido, que fuma desalmadamente e se serve de um gato como uma âncora, aquele que ao ver-nos entrar ergue o cenho de um volume com um ar arreliado, medindo-nos de cima a baixo, perguntando-se o que raio quereremos, este livreiro está na margem oposta. Mesmo se agastado, reserva-nos gestos calorosos, tem gosto em mostrar os volumes arrumados à altura do peito na estante que mais o orgulha. Tem histórias que vão com cada edição, é da espécie daqueles para quem a conversa não envolve o menor esforço. Cabe-lhe aquela ciência de pressentir o ritmo da pessoa que lhe entra pela livraria, e puxa conversa como se a bola de um pêndulo de Newton, num movimento que transfere de forma constante e leal o impulso de um lado ao outro.
Afecto ao movimento surrealista, pela sua livraria não é raro encontrarem-se os amigos que chegam de outros países; trazem pinturas, desenhos, livros nas línguas que vão traduzindo e denunciando entre si as imposturas do tempo. Num momento em que todos parecem inoculados pelo cinismo, pode parecer demasiado auspicioso um programa que ainda se bata por noções tão vibrantes como  “liberdade, amor e poesia”, mas Miguel ainda conviveu e colaborou com Cesariny e outros a quem a paixão não assustava. Ao longo dos anos, além dos contactos com outros grupos surrealistas que prosseguem “a única real tradição viva”, foi responsável por exposições e publicações que ainda trazem notícias desse outro mundo de que este se despede como de ontem, não percebendo que só aumenta a distância para a ambição de um amanhã.
Entretanto, e desde 2009, criou a editora Debout Sur l’Oeuf, através da qual tem publicado de forma cuidada, espaçada e discreta, livros que trazem a marca de alguém que está habituado a eles. Que sabe destruir todas as pressas, e fixar as vozes e os registos sobreviventes. Em tiragens bastante limitadas, esta é uma colecção onde jovens poetas têm um editor que lê cada página, que acompanha, que tem gosto pelos detalhes, que sabe o peso que tem uma imagem, que percebe a diferença entre os papéis, que aprecia as artes tipográficas. Com cada título, este selo vem dizer-nos como a paciência cada vez mais faz o seu charme.
No título mais recente – “Cárcere”, de Pedro Magalhães –, dado à estampa no mês passado, Miguel apresenta-nos um poeta vimarense que rompe o seu curso contra a lógica maneirista que tem imperado entre a poesia portuguesa mais jovem, não se contendo no verso mas tomando o espaço todo enquanto dispõe de fôlego, numa linguagem que gere imagem e energia em rajadas, que em vez de um número de sapateado, alcança uma respiração dolorosa fazendo sofrer os lugares-comuns. Um poeta que diz o que tem como se empurrasse os sentidos, deixando na página sensações de tumulto e refrega. Nenhum verso vai até à marcação para desenhar a sua pirueta e retirar-se. Não sendo um livro de estreia, é um livro de revelação de uma voz que não hesita explorar obsessões que lhe são próprias, evidências biográficas, mas que não incorre na performatividade. Não veio para participar na feira de atracções. 
A livraria tem uma montra imensa, que não oferece destaque a bestas-céleres nem ao lixo de ocasião, nisto sendo fiel aos requintes do lado antiquário. Apresenta um espaço folgado entre as estantes e móveis no rés-de-chão. Sem empecilhos pode circular-se, faz-nos ficar à conversa de pé. É no andar de cima que somos convidados a sentar: uma sala de estar ampla, atelier, que é também o espaço onde se fazem as apresentações de livros e outras sessões públicas.
Nestas estantes a literatura, e particularmente a portuguesa do século XIX e XX, está em clara maioria. Miguel explica ao i que a livraria está pensada de modo a seduzir um público que partilhe dos mesmos interesses que o livreiro. “Públicos que procurem livros técnicos, livros de auto-ajuda, a priori não terão muito para me trazer porque estes são temas que a mim não me dizem nada.”
Quanto ao negócio, Miguel admite que já vendeu mais. Refere que se tem dado conta, nos últimos anos, de “uma tendência das pessoas para deixarem de vir às livrarias, o que não quer dizer que não leiam”. Nota que mesmo os antigos clientes agora compram-lhe mais livros online. “O conforto de ficar em casa é substituído pelo prazer de ir passear às livrarias. Por isso faço alguns eventos, na tentativa de tirar as pessoas de casa. Para que estejam frente a frente, partilhando aquilo que as norteia, aquilo de que mais gostam, o que pensam, etc.” E conclui: “O meu esforço, que espero continuar até morrer, é fazer com que estes locais sejam espaços onde as pessoas forçosamente têm de se encontrar.”
Em relação ao retrato de um país que tem assistido ao desaparecimento das livrarias no centro das cidades, Miguel nota que são as que têm menos diversidade que as livrarias de centro comercial e as das grandes cadeias as que não resistem e fecham. “Há muitos nichos que estão ainda por explorar. Nichos sedentos. Isso é uma fissura do mercado, e deve-se entrar por aí.” Mas se tem 22 anos para provar que sabe do que fala, o livreiro adianta que não conseguiria viver com os livros que vende ao público de Coimbra. “Esta cidade tem uma academia que emprega, em todas as suas instituições, mais de 1700 docentes. Contam-se pelos dedos das duas mãos os que vêm a esta livraria, e pelos de uma mão os que vêm comprar. Muitos vêm para conversar. O que me agrada, porque uma livraria deve ser também um local de tertúlia.”
Questionado sobre se Coimbra já não merece hoje o estatuto de uma cidade culta, onde se lê e compram livros, Miguel diz que ainda se lê, mas por obrigação. “A academia incute uma obrigação aos estudantes, leva-os a ler e estudar apenas aquilo que é necessário por questões curriculares. A sensibilização, o gosto pela leitura está a perder-se”. Adianta que a cidade é hoje, acima de tudo, um ponto de compra de livros, não um ponto de venda. Compra as bibliotecas que em tempos foram construídas nesta cidade, e vende-as aos clientes que tem espalhados pelo resto do país.