Mikaela Lupu. O normal para nós é sempre o ambiente em que vivemos

Aos 21 anos, a atriz foi escolhida para protagonizar a série ‘Vidago Palace’

Aluna de quadro de honra, moldava e portuguesa ou o inverso, pouco importa de onde lhe vem um olhar incrível que evita cravar nas pessoas. “Já os meus amigos queixam-se do mesmo, de não os olhar quando falamos”. Diz que metade pode ser desconfiança, a outra metade é por ter, constantemente, a cabeça noutro lugar. E é noutro tempo e lugar que protagoniza ‘Vidago Palace‘, a nova aposta da RTP passada no centenário hotel, em 1936. A série é a primeira coprodução entre Portugal e Espanha – onde está a ser transmitida em simultâneo – e já foi comprada por Itália e pela Polónia. Falámos numa destas tardes cheias de primavera numa sombra do jardim Amoreiras. Mas o seu sítio preferido de Lisboa tem vista para a outra margem. 

Muitos dos títulos que fizeram sobre si referem-se ao seu país de origem. Alguma vez se sentiu rotulada?

Não, nem nunca me senti condicionada de alguma forma. Até porque no dia-a-dia é raro as pessoas perceberem que não sou portuguesa. Só quando ouvem o apelido, aí perguntam qual é a origem, mas subentendendo que nasci cá. Depois acham muito curioso o facto de eu não ter pronúncia. Nunca senti que perdi alguma oportunidade, foi sempre um fator de curiosidade e nunca uma coisa má.

Quando entra a representação na sua história?

Andava no secundário, tinha 15 anos. Sempre gostei de teatro, tínhamos essa opção no ensino básico mas era um hobby. Nunca imaginei poder algum dia fazer da representação o meu trabalho. Parecia uma coisa muito remota, impossível de atingir. Portugal é muito pequeno e o meio pequeno o é. Não era que não confiasse em mim, só me parecia um sonho demasiado alto. E por isso nunca me passou pela cabeça ser atriz.

Como foi parar à série ‘Morangos com Açúcar’, onde começou?

Estava inscrita numa agência e foi a partir daí. Houve um verão em que estava com uma amiga e não tínhamos, literalmente, nada para fazer. Ouvimos na rádio que ia haver um concurso para modelos em Sintra e fomos. 

Mas já lhe diziam que era uma miúda bonita?

De vez em quando. Mas fomos mais numa onda de ser uma coisa gira, diferente. Nesse concurso, as pessoas ficavam agenciados numa das duas agências que patrocinavam o concurso. Isto foi aos 14 anos e com 15 apareceu o casting dos Morangos. Fui sem expectativas nenhumas e acabei passando as eliminatórias. Mas estava preparada para ouvir um não. Sempre tive os pés na terra, em tudo.

Era muito boa aluna e de repente recebe um convite para entrar na representação. Qual foi a reação dos seus pais?

Deram-se sempre a liberdade para que fizesse aquilo que achava melhor. A minha diretora de turma é que pediu muito ao meu pai para não me deixar ir, achava que era um desperdício.

Entrou numa fase descendente da série e em que havia muitos anticorpos relativamente aos atores que vinham de ‘Morangos com Açúcar’. Isso prejudicou-a?

Como fiz formação de teatro logo a seguir, talvez isso tenha sido sempre um ponto a favor para não sentir esse estigma. Os Morangos acabavam por ser, entre aspas, uma escola. Mas era uma escola para aquilo, não para a representação em geral. Entrei logo na escola profissional de teatro de Cascais com 16 anos. A escola fez toda a diferença, se já nada sabia quando fiz os Morangos, quando entrei para lá percebi que muito menos ainda sabia! 

Alguma vez se sentiu a descambar e ir por um caminho de adições, algo que se ouve em tantos casos de profissionais ligados ao mundo das artes?

Lá está, eu era tão novinha, tão certinha e tão croma que isso para mim álcool e drogas nem me passavam pela cabeça. Acredito que haja essa tendência nesta profissão porque mexe muito com as emoções e com o interior das pessoas. Às vezes temos mesmo que sofrer com a personagem, e há quem não se consiga descolar. Mas quem tem uma boa estrutura familiar e de amigos nem dá azo a que essas coisas aconteçam. 

Qual foi o caminho a partir da escola de teatro em Cascais?

Fui sempre trabalhando em projetos e depois fiz um ano na Act, que tem uma abordagem diferente, mais contemporânea. Agora estou com muita vontade de fazer formação em Espanha e também no Brasil, onde espero ir este ano.

Sente que precisa de crescer enquanto atriz?

Acho que vou precisar sempre. Precisamos sempre de nos renovar, especialmente nesta profissão. É preciso ter vivências, é preciso ter coisas para nos inspirarmos para as personagens. É preciso conhecer pessoas que nos inspirem também, por isso é tão importante viajar. Tento sempre conciliar as viagens com o estudo para ser logo um tudo em um. No dia em que disser que não preciso de estudar mais, internem-me porque devo estar maluca.

Tem padrinhos na representação?

A Ana Bustorff, foi a minha primeira mãe. Ensinava-nos coisas muito engraçadas, ela é muito divertida. Lembro-me de um episódio em que nos ensinava a gravar como se estivéssemos a comer mas sem comer (risos).

A série ‘Vidago Palace’ estreou a 30 de março. Quando começou, para si, a ligação com o projeto?

No início de 2016. Já era para ter trabalhado com o Henrique Oliveira, o realizador, na série ‘Mulheres de Abril’, há uns anos, mas estava a fazer uma novela e não foi possível. Essa oportunidade depois surgiu no início do ano passado, na série ‘Dentro’, que era sobre uma prisão de mulheres. Havia uma personagem pequenina e o Henrique convidou-me, mas eu estava também a fazer uma novela e as datas coincidiam. Ele pediu à produtora para alterar as datas e fez de tudo para que desse, acho que tinha curiosidade em trabalhar comigo. Lá fui gravar essa participação, só entrei num episódio, foi rodado em quatro dias e conheci o Henrique. Ele falou-me na série ‘Vidago Palace’ e confirmou-se poucos meses depois.

Não houve casting e o realizador alterou uma data para trabalhar consigo…

(risos) Talvez ele pensasse em mim para ‘Vidago Palace’, mas penso que queria conhecer o meu trabalho diretamente. Ainda bem que fiz aquela participação!

Este é um papel muito específico. Como se preparou?

Vi muitas séries que contassem histórias próximas daquela época. Não há assim muita coisa dos anos 30. Inevitavelmente, a nossa grande inspiração foi ‘Downton Abbey’ que é das melhores séries de época alguma vez feitas. Basicamente foi pesquisar formas de fala e de estar, posturas, expressões típicas da época e gestos, tudo o que nos pudesse ajudar a poder transmitir uma história de uma época que não vivenciámos.

E em termos de postura?

As mulheres da classe que interpreto tinham de estar sempre muito direitinhas, nunca se via uma mulher encostada à cadeira, tratavam até o noivo por você. Tinham uma roupa para o dia e outra para a noite, em alguns casos da tarde. Mudavam de roupa três vezes. Era impensável estarem ao ar livre sem sombrinha, apanhar sol era uma coisa horrível. Tinham que estar sempre muito bem penteadas e maquilhadas, a voz era sempre muito serena, não se podiam enervar pelo menos em público.

Isso chocou-a?

É uma realidade tão diferente, às vezes penso como seria se tivesse mesmo vivido naquela época, mas normal para nós é sempre o ambiente em que vivemos. Claro que as diferenças são terríveis e eu vivi isso mesmo por causa da personagem, ter um casamento marcado com alguém que não se escolheu. Esteve com o noivo uma ou duas vezes e pronto, apaixona-se por outro. Mas luta pelos seus sonhos até ao final.

Já tinha ido alguma vez ao hotel Vidago Palace?

Não, só conheci quando começaram as gravações. Entramos no lobby e parece que se viaja no tempo, a escadaria remete mesmo para o ‘Titanic’, é uma coisa impressionante. A beleza e a fotografia do hotel são inexplicáveis. Tem uns jardins e um lago lindo, com uma ponte por cima, onde tive que correr descalça. Aliás, passo grande parte da série a correr descalça (risos).

Teve que fazer uma cena de nu na série. Como lidou com isso?

Sim, foi a primeira vez que fiz uma cena em que estava totalmente despida. Foi um bocadinho chocante. No guião não era muito explícito que a personagem estava totalmente nua, achei que fosse ter uma parte de baixo, só me apercebi na altura. Já andava a sofrer por antecipação com esse dia há mais de uma semana. Era muita coisa para gerir: era a primeira cena que gravava com o protagonista espanhol, era um frio desgraçado, na minha cabeça já ia estar semi nua. Quando me dizem que é toda nua, foi … (risos)

Como se gere isso?

Acho que é confiar na equipa técnica, não ter complexos. Faz parte da profissão, temos que nos entregar, lá está, de corpo e alma e às vezes é mesmo de corpo todo. Acho que sofri mais do que valia a pena ter sofrido. No fim de contas, foi mais um dia de gravações. Passei foi muito frio, a água estava gelada! A série passa-se no verão de 1936 e eu não podia demonstrar qualquer frio. Acho que ficou muito bonito, não podia ter corrido melhor.

Quando gravaram a cena?

No final de outubro, no norte de Espanha, estava mesmo muito frio. Passámos o dia inteiro na água porque havia duas cenas no mesmo lago e então gravámos tudo de uma vez para despachar. 

É verdade que quando se grita ação um ator se esquece de todos esses elementos externos que referiu, como o frio?

Não há uma resposta certa para isso. Nessa cena para mim, na minha cabeça, houve dois momentos de ação, que foi o da cena começar e outro em que tinha de mergulhar de cabeça. Basicamente é respirar fundo e confiar na equipa. Se não confiarmos poderíamos ter que repetir a cena, e isso implicava secar o cabelo, secar tudo e voltar a entrar dentro de água. 

Não repetiram a cena?

Não, foi à primeira!

Já conhecia David Seijo, protagonista espanhol?

Conheci-o na fase de casting. Eu e o realizador fomos para Espanha fazer castings ao protagonista. 

Como foi escolher com quem iria contracenar?

Foi muito engraçado. Passei o dia inteiro a dizer três vezes o mesmo texto para cada rapaz que estava a fazer o casting. Já era a fase final, eram oito. Antes de entrarmos para o estúdio, o Henrique Oliveira, o realizador, mostrou-me os vídeos da primeira fase e já me tinha dito de quem tinha gostado mais, e era do David, que acabou por ficar com o papel. Nesse casting eles tinham que falar português e foi complicado, mas o David parecia que já falava português há anos, é um ator maravilhoso.

Deixando Vidago: qual foi o elogio mais bonito que já lhe fizeram?

Não sei se foi o mais bonito, mas foi o mais recente. O David, o meu coprotagonista da série, disse-me que era tão bonita por dentro como por fora. Achei mesmo bonito.

É uma mulher vaidosa?

Bem, sou muito bipolar nesse sentido. Há dias em que saio à rua tipo mendiga e noutros demoro horas a maquilhar-me. No verão tenho sempre a pancada da fase hippy. Mas odeio centros comerciais e não gosto especialmente de ir às compras. 

Mora sozinha desde quando? 

Desde os 18 ou 19 anos.

Conquistou a independência financeira muito cedo.

Comparando com as minhas amigas, lembro-me que se calhar podia fazer mais coisas. Mas também fui sempre muito poupadinha, nunca dei muito importância a esse lado. Fui morar sozinha mas fiquei sempre em Sintra.

Qual é o seu sítio preferido em Lisboa?

É uma esplanada no Lx Factory que se chama Rio Maravilha, com vista para o Tejo. Recentemente construíram um patamar ainda mais acima e meteram lá uma boneca enorme que dizem que é para fazer companhia ao Cristo Rei.

Veio da Moldávia para Portugal com cinco anos. Onde nasceu?

Numa aldeia chamada Balanesti, perto da cidade de Nisporeni. 

Qual é a sua primeira memória?

Lembro-me de algumas coisas. Quando tinha dois anos fui morar com a minha tia porque a minha mãe foi trabalhar para a Rússia. E as minhas memórias mais antigas de infância são com essa tia e as minhas irmãs. Tudo muito ligado à natureza, rodeado de animais, ao ar livre. E ainda bem que foi assim. 

Moravam numa quinta?

Sim. Tive um pintainho de estimação! Se um dia tivesse filhos gostaria que eles tivessem uma infância mais ligada à terra e não propriamente fechados. 

Quantas irmãs tem?

Duas, são mais velhas. 

Vieram para Portugal todos ao mesmo tempo?

Primeiro veio o meu pai, em 1998. Depois a minha mãe em 2000 e no ano seguinte nós as três. Eu e as minhas irmãs fomos as primeiras crianças moldavas a vir para Portugal de forma legal. 

Por que razão os seus pais escolheram Portugal para morar?

Tiveram um convite para trabalhar. Como era um país completamente diferente, primeiro veio o meu pai com a missão de ver como era. Ele começou a gostar, veio a minha mãe para ver se se ambientava. Apaixonaram-se os dois por Portugal. 

Os seus pais vieram trabalhar em quê?

Eles são os dois gruístas, operam aquelas gruas muito grandes.

Não é uma profissão tipicamente feminina.

(risos) Nada! Tiraram os dois o curso ainda na Moldávia. Hoje ainda fazem isso. 

Qual é a primeira memória que tem de Portugal?

A primeira memória que tenho relacionada com Portugal, curiosamente, ainda estava na Moldávia. Quando os meus pais nos disseram que vínhamos morar para cá, fiquei muito contente porque eles mandavam fotografias com imensas frutas que não eram comuns na Moldávia, como por exemplo bananas. Achei que quando aterrasse em Portugal haveria bananeiras por todo o lado (risos). Não sei onde é que fui buscar isto! As bananas lá eram frutas exóticas, é um país muito frio. Por isso imaginava Portugal cheio de bananeiras e de relva. Depois, quando cheguei, vi que não havia bananeiras em lado nenhum.

Era uma criança extrovertida ou tímida?

Era uma paz de alma! Acho que ainda sou. A minha mãe costumava dizer-me que se tivesse a certeza de que todos os filhos iam ser como eu tinha mais uns dez. Deixava-me num cantinho e eu podia ter fome ou sede que não chorava. Arranjava sempre alguma coisa para me entreter. Muitas vezes era um clipe, daqueles da roupa, e eu ficava horas a abrir e fechar aquilo (risos). A minha família diz que muitas vezes se esquecia de mim por ser tão sossegada. Ainda hoje, sou muito mais de observar e de absorver e não tanto de querer falar. Não sou tão extrovertida assim.

Quando entrou na escola não sabia falar português?

Não, estávamos cá há três ou quatro meses. As minhas irmãs e os meus pais ensinaram-me uma coisinha ou outra mas muito pouco. Sei que não falava fluentemente mas também não recordo muito essa altura. A adaptação foi tão fácil que não guardo muitas memórias.

Trouxeram as tradições convosco, mantiveram-nas?

O nosso Natal é ortodoxo, de 6 para 7 de janeiro, no dia dos reis. Desde que viemos festejamos os dois natais, o que é muito bom. Na Páscoa temos tradições muito engraçadas. Pintamos ovos de vermelho e pomos numa travessa com água. De manhã cada pessoa, quando acorda, tem que pegar num ovo pintado e passar na bochecha e num ovo não pintado e passar noutra bochecha. 

Qual é o significado desse gesto?

Não sei bem, fizemos sempre isso (risos). É uma tradição. Depois ainda se põe umas moedas dentro dessa bacia com água e a última pessoa a acordar fica com as moedas, o que não faz muito sentido, devia ser a primeira. Mas é engraçado.

Em casa falam que língua?

Agora já moro sozinha. Quando estou com as minhas irmãs é maioritariamente português. Com os meus pais é uma mistura, eles falam muito bem português mas há palavras muito específicas que podem não perceber o significado. Quando isso acontece tento em moldavo, mas depois já não falo com a mesma naturalidade com que falo português. Às vezes sai uma misturada. 

Já disse que a educação de uma criança moldava é diferente da que recebe uma criança numa família tradicional portuguesa. Em que sentido?

É completamente diferente, em especial naquelas que são as nossas responsabilidades com a escola. Na Moldávia, a escola é um privilégio. Cá é como se as crianças fossem obrigadas a ir. Sempre me fez muita confusão pais de colegas meus dizerem aos filhos que lhes davam presentes ou viagens se eles tivessem uma boa nota. Era como se os filhos tivessem que fazer um favor aos pais. Na minha família, ter boas notas era o mínimo que podíamos fazer. Se tínhamos todas as condições, tempo para estudar e materiais não havia desculpas para ter uma positiva miserável. Mas ainda bem que connosco foi diferente e foi assim, porque damos muito mais valor a certas coisas. 

O que difere mais no sistema de ensino?

Lá é muito rigoroso, matérias que se dão lá no segundo ano talvez se dê aqui no quinto. Lembro-me de as minhas irmãs no primeiro e segundo ano já fazerem contas difíceis e que já sabiam a tabuada de cor. Elas contavam-me que não podia cair um lápis no chão porque isso já era sinal de palhaçada. A exigência no ensino moldavo é muito maior e isso reflete-se nas pessoas que nos tornamos.

De que gastronomia gosta mais?

Lá a comida é muito mais elaborada e condimentada, todos os pratos levam muitos ingredientes. Faz lembrar a comida árabe. Também se come muita carne, eu não aprecio muito. E não tanto peixe, que adoro. Acho que gosto mais da comida portuguesa, é mais leve e tem mais variedade. Cá há um prato tradicional na Páscoa, outro no Natal. Lá, cada vez que há uma festa, cozinha-se basicamente tudo e quanto mais cheia estiver a mesa, melhor. E basicamente as pessoas comem até rebentar, é sinal de abundância e de felicidade.

Sente-se mais moldava ou portuguesa?

Portuguesa.