Mário Cláudio. “E se Os Lusíadas não tivessem sido escritos por Camões?”

Com o seu novo romance, “Os Naufrágios de Camões”, Mário Cláudio oferece-nos um admirável puzzle narrativo a que não faltam peças que investem contra um Camões brônzeo e monumental

O tempo das epopeias parece ter chegado ao fim; e o que nos fica de termos sido grandes é curto como prémio de consolação: a espuma dos dias do império, caravelas atracadas no museu do património nacional, pagas a preço forte, um curso de desaprendizagem de todo um modo de viver e estar no mundo para podermos aprender uma nova maneira de abrir espaço à nossa volta. Neste sentido, o puzzle que Mário Cláudio agora nos oferece é valioso: não se trata de um mero exercício erudito a prometer entretenimento ou excitação da mente, tão pouco da descoberta de uma via para o passado, mas de um jogo nos vem recordar quer o nosso passado de descobridores, quer o papel de decifrador que cabe ao leitor. Não por acaso, o romance obedece a uma estrutura narrativa que tem um egrégio precedente no sistema de encaixe que é o d’ Os Lusíadas.

O que também terá chegado ao fim é o tempo das polémicas que deram boas páginas culturais e literárias. A figura do polemista é hoje, aliás, uma espécie em inquietante extinção, entretanto substituída por perfis bem menos vigorosos que terão numa mão a pena e na outra a algema que os prende ao receio dos efeitos de resposta, à consideração das conveniências, quando não à indiferença.  

De contrário, após a publicação de “Os Naufrágios de Camões”, as águas do nosso meio literário andariam por estes dias um tanto agitadas: teríamos literatos e exegetas em animada discussão pública, trazendo à superfície velhas questões camonianas relacionadas com a Censura, em pleno funcionamento aquando da impressão d’ Os Lusíadas, em 1572. Sousa Viterbo e Aquilino Ribeiro, autor em quem Mário Cláudio aqui matreiramente se apoia, analisaram hipóteses do que terá sido truncado no manuscrito, tendo-se pronunciado acerca de intervenções do censor – em cumplicidade negociada com o Poeta – que terá fabricado versos atribuídos a Camões, para deixar passar outros. Mas teríamos igualmente comparatistas eufóricos, camonistas abalados (e replicantes), abespinhados com a virtude do muito imaginar de Mário Cláudio, leitores intrigados e questionantes, jornais consagrando a Camões páginas inteirinhas, com biografia e tudo.

Por esta altura, o cantor máximo das glórias de Portugal já teria saltado dos confins curriculares onde há muito repousa, brônzeo e monumental, para as redes sociais – entretanto transformadas num Olimpo desavindo -, disputando atenções ao busto de Ronaldo. 

A provocação começa nas cercanias do romance. A cinta que o rodeia, indiferente às glórias do mundo literário, deixa de parte menções a prémios e contabilidades olímpicas para nos atirar com uma pergunta que abala as nossas convicções mais acomodadas: “E se Os Lusíadas não tivessem sido escritos por Camões?” 

A nossa epopeia maior pode não ter saído da pena, pelo menos na íntegra, da figura estelar do cânone da nossa literatura portuguesa, que não terá sobrevivido ao naufrágio no delta do Mekong. A tese tem dono e nome: o linguista norte-americano Timothy Rassmunsen, neto de Tiago Veiga – poeta e autor involuntário da mais desbocada história da literatura portuguesa do seculo XX (Tiago Veiga, uma biografia”, 19) -, que defende que o capitão da nau onde viajava o autor da epopeia, Bartolomeu de Castro, se terá feito então passar por Camões e dado continuidade ao seu poema. E está nesta descoberta bem acompanhado pelo explorador britânico Richard Burton, explorador e tradutor d’Os Lusíadas para o idioma de Shakespeare em cujos escritos se apoia. 

Neste jogo onde as águas da ficção se misturam com as da realidade,  há uma terceira e importante peça cujo nome permite a aproximação a Mário Cláudio (pseudónimo de Rui Barbot Costa): Ruy, o escrivão de bordo da nau anual da China. Se as duas anteriores se movimentam no sentido de fazer ressuscitar o genial vate imortal, um Camões todo estátua para a posteridade, esta última parece apostada no afundamento da imagem mítica do vate. Assistimos assim ao segundo naufrágio de Camões.  

Aquele que aqui comparece não é a figura de calções tufados e de golas impecavelmente encanudadas que os manuais escolares tanto ajudaram a pintar, o guerreiro-cantor, mas um homem comum e boémio, um «pelém» que vagueia na soturna Lisboa entre amores de baixo coturno, um provocador de motins de feira e alaridos de bairro, faminto e estropiado. Revelava-se ao escrivão «um companheiro reinadio, e tão pronto à galhofa como à jogatina. Deixava no tinteiro os seus chorosos males de amor, e tornava-se um outro homem, uma espécie de grande rebelde que apenas aspirava à boa-vai-ela» (p. 138).  

Na verdade, os desígnios de Mário Cláudio anunciam-se na portada do romance, onde uma das mais icónicas imagens de Camões, aquela que o apresenta salvando a nado “Os Lusíadas”, se manifesta por ausência. Em seu lugar um mar de ondas bravas, um flagrante reverso da imagem heróica de Camões, homem vulnerável, fustigado pelas intempéries, lusíada náufrago como os anti-heróis disfóricos da História Trágico-Marítima.