Ricardo Diniz. “Dar a volta ao mundo de vela? Já faltou mais, já faltou bem mais”

O navegador solitário prepara-se para levar vinho do Porto a Londres, para depois participar numa prova que implica atravessar o Atlântico num barco à vela. Nem o medo – “que está sempre presente” – o impede de ter sempre a próxima viagem em mente. E a próxima pode ser mesmo a volta ao mundo

O barco tem cama, almofada e edredom, mas Ricardo raramente sai da cadeira preta que, na posição vertical, lhe serve de mesa de trabalho e, quando um pouco reclinada, é perfeita para os 15 minutos que se permite dormir. Isto de viajar sozinho num barco à vela tem destes constrangimentos, mas para alguém conhecido como velejador solitário não passam de normas a cumprir para “ter um barco feliz”. 

Aos oito anos disse ao pai que um dia ia dar a volta ao mundo de barco à vela. Aos 40 já tem no currículo milhas suficientes para mais de três dessas voltas, mas a verdadeira ainda não aconteceu. Enquanto espera pelo timing perfeito que exige a viagem de uma vida, prepara corpo, mente e barco para provas e expedições.

A próxima começa no Porto, no dia 25 de abril, para recriar o primeiro carregamento de vinho do Porto Taylor’s para Londres. Uma vez lá, vai competir na regata OSTAR 2017, que implica atravessar o Atlântico até chegar, 21 dias depois, a Newport, Rhode Island. Medo há sempre “e ainda bem”, garante. Mas a vontade de dar a conhecer Portugal ao mundo fala mais alto. “A vela, para mim, não é desporto, é uma missão.”

 

Como é que o filho de um jornalista e de uma empresária se torna velejador?

Sim, é estranho, até porque o meu pai nem sequer sabe nadar [risos]. Foi tudo uma sorte que veio com o meu primeiro azar. Os meus pais separaram-se quando eu tinha quatro anos e acabei por ir viver com o meu pai para Inglaterra. Foi muito duro deixar tudo cá: casa, família, escola e o mar da Caparica

Como se ultrapassa a distância?

O meu pai bem me levava a ver o rio Tamisa, mas não era a mesma coisa. Mas, de facto, uma das maiores mágoas de ir para Londres foi não ter o mar ao lado, como estava habituado. Mas crescer fora de Portugal fez-me ganhar esta saudade e esta vontade de dar a conhecer ao mundo este país.

Assumiu isso quase como uma missão pessoal. Porquê?

Nem sempre Portugal se soube comunicar da melhor forma e tudo começa pelos próprios portugueses, que são os primeiros a falar mal de si próprios, uma coisa que me faz imensa confusão e que não admito nos meus círculos mais próximos. Quem fala mal de Portugal não viajou pelo mundo, não tem termo de comparação para perceber o quão especial Portugal é.

Em que se vê essa diferença?

Começa pelas pessoas, pela forma de amar, de acolher, não encontro isso em mais nenhum povo. 

Mas podia fazer da vela só um desporto.

A vela, para mim, não é um desporto, é uma missão. Esse espírito já nasceu comigo. Sinto que já andei aqui antes, acredito mesmo nisso.

Fala em vidas passadas?

Quando fui de vela até ao Brasil chorei muito ao chegar, mas não foi só a emoção da chegada, senti uma emoção antiga, foi quase como se tivesse viajado no tempo e estivesse a ver terra numa caravela depois de uma viagem de meses, e não de apenas algumas semanas. 

Depois de tantas viagens, ainda há medo?

Tenho um profundo respeito pelo mar, é um medo que nunca desaparece e ainda bem que assim é.

E enjoos, também ainda acontecem?

Já enjoei mais. Durante muitos anos, quando não tinha barco, ia às Docas, escolhia um, ligava ao dono e alugava--o por uns dias. Agora tenho um barco feito à minha medida.

Em que é que o seu barco é diferente dos outros?

É todo revestido a cortiça, por exemplo. Adoro sentir esse material e serve para manter a temperatura amena e isolar-me do som das ondas a bater. O barco pode parecer um autêntico tambor. Além disso, imagine, depois de dias completamente encharcado, a cortiça quase que me dá a sensação de estar debaixo de um sobreiro alentejano.

Mas ainda se lembra da primeira viagem, ainda sem esses luxos?

A minha primeira grande viagem sozinho foi ao Brasil, num barco sem janelas nem portas, sem cama, casa de banho ou cozinha. Basicamente era uma coisa flutuante com um teto em cima. Uma noite bati contra um contentor e fiquei à deriva até ser resgatado por um navio que passava.

Mesmo assim, consegue sempre tirar prazer de estar sozinho?

Sempre. Mesmo em miúdo dava-me bem com toda a gente, mas não tinha propriamente um grupo de amigos. E tantas vezes dizia que não aos planos deles que acabaram por deixar de me convidar. Quando eles estavam virados para festas e copos, já eu estava numa de fazer negócios e ganhar dinheiro. 

Qual foi o seu primeiro negócio?

Comecei a vender bolos na praia aos 12 anos.

E o que fazia com o dinheiro dos bolos?

Comprava material de surf e bodyboard para vender. Além disso, nas férias em Vilamoura pegava na mangueira do aldeamento e lavava os carros dos clientes. Mais tarde, contratava os filhos dos donos dos carros para serem eles a fazer o trabalho e ser eu a pagar-lhes com o dinheiro que os pais me davam.

Tudo isso até chegar ao barco de hoje?

Sim, posso dizer que parte dele vem dos bolos que vendi na praia (risos).

Além de dinheiro, este tipo de viagem exige um grande esforço físico e mental.

Diria que é 100% mental, mas ajuda estar em forma.

O que faz para isso?

Estou sempre ligado ao mar, faço padel, surf, natação. Em terra, corro e ando de bicicleta.

E a mente, como se treina?

O máximo de tempo que estive no mar foram 47 dias. Como imagina, há tempo para pensar em tudo. Nessas alturas aproveito para meditar, brinco um bocado com o yoga, passo momentos em oração.

Sente-se, de alguma forma, acompanhado?

Nunca me senti sozinho. E não é uma coisa muito religiosa. É uma coisa tão pura e tão simples que para mim é inquestionável. 

Fala muito sozinho?

Estou sempre em diálogo. Aliás, eu tenho de lidar com dois Ricardos: o Ricardo--terra e um Ricardo-mar. O Ricardo-terra trabalha para o Ricardo-mar. É ele que consegue os patrocínios, mas é o Ricardo-mar que faz o resto.

Que Ricardo prefere?

Dou-me bem com os dois mas, às vezes, o Ricardo-terra chateia-se um bocado com o Ricardo-mar porque ele é muito exigente, tem ideias difíceis de concretizar e sobra sempre para o Ricardo-terra, que tem o trabalho de fazer acontecer. A minha equipa senta-se a falar do Ricardo como se fosse aquele que está lá no mar. Até arranjamos um nickname, Bieber, porque falar na terceira pessoa é piroso.

Como é que o Ricardo-mar passa o tempo?

O descanso é pouco. Durmo 10 a 15 minutos de cada vez, no máximo 4 horas a cada 24 horas. Mas tudo depende do trajeto. Quanto mais devagar andar e mais longe das rotas marítimas estiver, mais posso dormir. Quanto mais rápido viajo, ou se estiver no meio do Tejo, por exemplo, é impossível dormir.

Mas põe alarme para não passar dos 15 minutos?

Se passo, entro em sono profundo, e não posso. É por isso que nem uso a cama que tenho no barco. Reclino a cadeira para trás e fecho os olhos. Ponho sempre alarme, mas só por descargo de consciência. Acordo sempre antes de ele tocar.

A dormir tão pouco, como ocupa o resto do dia?

Se reparar, estou acordado a todas as horas, ou seja, vejo todas as horas do dia acontecerem. Mas de noite não consigo fazer muito por causa da escuridão. De manhã, mal tenho luz, faço uma revisão geral ao barco para ver se está tudo bem. Tudo o que possa prever antes de acontecer, melhor. É que, neste caso, basta faltar uma peça de dez euros para a vela não levantar. O barco tem de ir feliz. Se ele estiver bem, eu estou bem.

E a alimentação é tão intermitente como o sono?

Nem em terra como normalmente. Estou sempre a comer, mas raramente faço refeições. No barco funciona tudo à base de frutos secos e comida liofilizada – que vem em pó, juntas água e fica reconstituída. É saudável e calórica, tudo o que preciso. Além disso, levo umas 20 refeições feitas e conservadas em vácuo, e tenho sempre a minha horta a bordo, com feijão, agrião. Uma saladinha fresca no meio do mar sabe mesmo bem.

Qual é a maior privação de estar no mar?

Estar longe dos meus filhos

Leva alguma coisa deles no barco?

Nem por isso. Levo as memórias e as saudades. Prefiro nem ver fotos. Entro em modo militar, muito focado no que estou a fazer, e não posso enfraquecer-me com as saudades. 

Esses momentos mais difíceis são compensados com o quê?

Com o facto de me sentir bem sempre que estou no mar, sentir que aquele é o momento e que estou a fazer exatamente aquilo que quero fazer.

Há algum momento que guarde como histórico?

A chegada ao Dakar em 2006. Viajei num barco cujo piloto automático não funcionava bem, ou seja, dormi 10 horas em 15 dias. Quando vi terra, nem energia para chorar tive. Amarrei o barco e colapsei para o lado.

Mesmo quando se acaba uma viagem dessas, há força para pensar na próxima?

Normalmente tenho sempre três ou quatro em stock.

Há alguma por concretizar?

Gostava muito de unir quem fala português. Uma expedição por Macau, Brasil, São Tomé, Angola, seria incrível. Era uma forma de celebrar os portugueses no mundo.

E a volta ao mundo é para quando?

Não a fiz em 1998, como tinha pensado, e achei que nunca mais a iria fazer. Mas a verdade é que os 500 anos da circum–navegação de Fernão Magalhães estão quase aí. O meu timing ainda não chegou, mas já faltou mais, já faltou bem mais.