Referendo. Coroação de Erdogan acentua fratura turca

Transformação da Turquia num sistema presidencialista decidiu-se por uma margem reduzida e em Ancara, Istambul e Izmir venceu mesmo o “Não”. Observadores internacionais evitam falar em fraude eleitoral, mas denunciam práticas anti-democráticas

Foi um país fraturado aquele que acordou hoje de manhã para confirmar o resultado do referendo do passado domingo, elaborado para que a população turca se pudesse pronunciar sobre as propostas de alteração da Constituição e do sistema político da Turquia. Da consulta popular vinculativa, que contou com a participação de mais de 85% dos eleitores turcos, resultou um triunfo do “Sim”, com 51,37% dos votos, contra 48,63% do “Não”, números bem mais próximos do que os esperados num primeiro momento – tendo em conta as estimativas iniciais que sugeriam uma vitória mais confortável a favor da reforma -, mas que dão corpo à tese do país fraturado. 

Logicamente, a Turquia não está hoje muito mais fraturada do que estava há dois dias atrás: os resultados eleitorais tendem a ser o espelho da realidade vivida dentro de uma sociedade e o caso turco não parece ser uma exceção. Mas a forma como essa fratura ganhou corpo através da margem reduzida verificada entre os que apoiaram a concentração de poderes nas mãos de Recep Tayyip Erdogan e os que discordaram da implementação de um novo modelo presidencialista, promete intensificar ainda mais o clima de tensão num país que há menos de um ano foi alvo de uma tentativa de golpe de Estado e que, desde essa altura, se encontra em estado de emergência.

A vitória do “Não” em Istambul (51,4%), Ancara (51,2%) e Izmir (68,8%), três das principais e mais populosas cidades do país – equivalentes a cerca de um quarto da população turca -, nas quais o AKP, de Erdogan, nunca tinha perdido uma eleição, desde que tomou o poder há 14 anos, é um sinal claro do fosso existente dentro da sociedade turca. 

Ali e noutras cidades do país, milhares de pessoas saíram à rua em protesto contra o resultado do referendo e, principalmente, indignadas com as suspeitas de fraude eleitoral levantadas pela oposição. Os sociais democratas do CHP e os pró-curdos do HDP apontam irregularidades no ato eleitoral, nomeadamente devido a uma decisão tomada pela autoridade eleitoral turca, pouco antes de se iniciar a contabilização dos votos, de validar os boletins que careciam do selo oficial da mesa de voto. 

Tal alteração dos procedimentos levou a oposição a impugnar o resultado do referendo, a requerer a recontagem de pelo menos 60% dos votos e exigir a anulação do ato eleitoral. “Só há uma decisão a tomar para devolver a situação à legalidade: o Conselho Supremo Eleitoral deve anular a eleição”, defende Bulent Tezcan, do CHP, citado pelo “El País”. “Os nossos dados mostram que houve uma manipulação de 3% a 4% dos votos”, acusa, por sua vez, um representante do HDP.

Observadores apontam o dedo

A comissão eleitoral da Turquia afastou a existência de irregularidades na contagem dos votos e confirmou, no final da noite de domingo, a vitória do “Sim”, pelo que se ficou a aguardar com expectativa as conclusões dos observadores internacionais. Mas o Conselho da Europa e a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) evitaram falar em manipulação eleitoral.

No relatório divulgado hoje sobre o referendo, os dois organismos denunciaram, isso sim, a existência de práticas não-democráticas que acabaram por beneficiar a posição defendida pelo partido no poder. De acordo com o documento, a situação de estado de emergência – da qual resultaram milhares de detenções, despedimentos e afastamentos de jornalistas, políticos, militares, funcionário públicos e juízes – “restringiu as liberdades essenciais” e impediu a comunicação social de “cobrir os dois lados da campanha”, uma situação que, referem, resultou, num “terreno de jogo desequilibrado”. “O referendo teve lugar num ambiente político, onde as liberdades fundamentais para a ocorrência de um processo democrático genuíno foram restringidas pelo estado de emergência, pelo que as duas partes não tiveram as mesmas oportunidades”, explicou a chefe da missão, Tana de Zulueta. 

Em declarações ao i, a partir de Ancara, na noite de domingo, o deputado do PSD Duarte Marques já tinha defendido que a “falta de espaço mediático e de liberdade de imprensa”, impediram que a campanha tivesse a participação desejada para uma decisão desta natureza. “Ponham-se no vosso lugar”, foi a reação de Erdogan.

Europa “preocupada”

O resultado do referendo que permitirá a Erdogan manter-se no poder até 2029, para além de lhe atribuir competência exclusiva para nomear vice-presidentes e ministros, decretar estado de emergência, dissolver o parlamento turco, promulgar leis por decreto ou escolher juízes para a autoridade judicial do país, causou preocupação no seio da União Europeia.

A Turquia é candidata à organização comunitária deste 1987 e, de acordo, com algumas das  principais figuras do Parlamento Europeu, a aprovação das 18 emendas constitucionais e a transformação do país num governo de um homem só, tem tudo para afastar ainda mais Ancara de Bruxelas.

“O presidente Erdogan está a dividir o país com este referendo. Estamos profundamente preocupados com o resultado”, escreveu  Manfred Weber, líder do grupo PPE, no Twitter. Mais incisivo, Gianni Pittella, do S&D, não teve problemas em afirmar que o presidente turco “fechou as portas da UE com este referendo”.

O caso merecerá, seguramente, a atenção dos líderes dos 27 Estados-membros da União quando se reunirem em Malta no final do mês.