Kendrick Lamar. O bom rapaz no país das tiranias

A voz da consciência das ruas fala sobre a América de Trump, instinto de sobrevivência, Deus e violência num álbum em que a presença dos U2 é nota de rodapé.

A sexta-feira foi santa e não só por ser feriado. De madrugada chegava às plataformas de streaming o aguardado novo álbum de Kendrick Lamar. O suficiente para roubar horas de sono e protelar uma relação intensa com a almofada e os lençóis. Havia uma opinião para formar e veicular através das redes que davam voz a “Damn.” através de inúmeras partilhas e comentários.

Ao longo do ano, não haverá muitos álbuns capazes de polarizar atenções com um impacto semelhante. Nem capazes de captar a atenção desde a introdução ao último suspiro. De gerar amplo debate sobre a lírica ou discussões sobre os produtores e os métodos utilizados – por exemplo, o facto de o benjamim de 18 anos Steve Lacy, dos The Internet, ter gravado a sua participação em “Damn.” através de um telemóvel.

Ou de, em síntese, acrescentar camadas de curiosidade à biografia em construção de um rapaz afrocêntrico vindo de um dos guetos americanos mais famosos: Compton, Los Angeles.

O vídeo recria a Última Ceia. Kendrick senta-se no lugar de Jesus Cristo. A seu lado, a representação de figuras de peso do hip hop americano como DJ Khaled e Lil Uzi Vert. A vida de Lamar é virada do avesso. Ele joga golfe em cima de um carro e deita-se numa mesa de notas com mulheres quase nuas a fazerem contas. Os versos apregoam a humildade (“Humble”). O vídeo usa a realidade invertida para destrinçar o real do ilusório. Como se Kendrick quisesse contestar o pedestal em que foi colocado nos últimos anos e, nas entrelinhas, se posicionasse contra a corrente instituída. Kendrick Lamar está no centro do turbilhão do hip hop, mas não é igual à maioria. É uma das vozes da América e um símbolo cultural para o seu tempo e a sua geração. Como Woody Guthrie, Bob Dylan ou Bruce Springsteen. Mas, por contraste com a maioria dos rappers, que projetam nas redes sociais uma imagem de opulência e aparato, recorrendo a imagens hipersexualizadas ou de ostentação, K. Dot (como é tratado entre a família do rap) deixa a voz falar mais alto. Consciente, responsável e modelar pelo que diz e faz.

“Damn.” não se alheia do contexto política. O coração de Kendrick Lamar tem o tamanho da América. E não apenas a de Trump. O homem de quem o mundo tem medo é um dos alvos, mas o registo panfletário é recusado. O que não significa que não aponte o dedo. Por exemplo, à FOX News, que o atacou quando “Alright” se tornou uma espécie de hino comunitário contra a segregação racial. E a Bíblia é usada como uma espécie de âncora espiritual. Um regresso ao princípio de todas as coisas, dos homens e das relações, e um símbolo do tom confessional adotado na escrita e no tom.

Nas redes sociais, é pouco mais que silencioso. Entrevistas são raríssimas. E, no entanto, se há alguém que mede todas as palavras e é escutado com atenção e devoção é ele. “O meu processo de criação parte sempre de pensamentos premeditados. Sou eu a pensar em ideias daquilo que quero dizer a seguir e, quando entro em estúdio, tenho de encontrar aquele som exato que vai espoletar essas emoções”, explicava ao produtor Rick Rubin numa conversa filmada pela “GQ” americana nos jardins do estúdio deste último.

“Damn.” prepara-se para bater recordes. Na sexta-feira, “Humble” foi escutada mais de quatro milhões de vezes no_Spotify, tornando-se a canção mais ouvida de sempre num só dia. De acordo com as previsões, “Damn.” será o líder natural das tabelas de vendas e streaming nos próximos dias. E é natural que, no final do ano, venha a ser recordado como um dos acontecimentos de 2017. Kendrick Lamar é o caso de maior concordância entre reconhecimento crítico e popular. Não gera ondas de choque como Kanye West. Não tem os pés na pop como Drake. Aceita convites para trabalhar com bandas menos prestigiadas, como os Imagine Dragons e os Maroon 5, mas o prestígio continua intacto.

Para se ter uma ideia da importância conquistada, a participação de Bono, dos U2, em “XXX” é uma nota de rodapé numa extensa lista de convidados em que Rihanna é a estrela mais cintilante e J. Blake um disfarce de James Blake, também ele um dos convidados famosos, e outros quase desconhecidos como Bekon, por quem a internet não dormiu até saber quem era, convivem, mas o centro das atenções não deixa dúvidas.

Na época dos teasers, do efémero e instantâneo, Lamar sabe por onde vai, e não é por aí. Se fosse atleta, era corredor de fundo. “Damn.” é precedido por “Good Kid, M.A.A.D. City”, reconhecido clássico e álbum do ano para diversas publicações de 2012, e “To Pimp a Butterfly”, uma aventura com o jazz patrocinada por músicos como Kamasi Washington, Thundecat e Terrace Martin – um primeiro corte com a matriz do hip hop, velha ou nova escola.

Inspirado pela árvore negra desde lendas do rap como Eminem, Notorious B.I.G. ou 2 Pac, a velha guarda do funk, como James Brown e Sly Stone, ou da soul, Lamar não é um corpo estranho à realidade em que se insere, mas escolheu um caminho pessoal e criou a própria tendência.

Em julho voltou a Portugal e encontrou um MEO Arena esgotado, ainda eufórico pela vitória da seleção nacional no Campeonato Europeu de Futebol.
A dada altura do concerto retirou os auscultadores para tomar consciência do ruído eufórico do público. Kendrick Lamar pode fugir, mas não se esconde da autoridade adquirida.