Sarampo. Família de adolescente que morreu não era ‘antivacinas’

Jovem de 17 anos sofria de psoríase, já tinha feito tratamentos em Cuba e foi aconselhada a não fazer a vacina. Falta de proteção revelou-se fatal, mas família não era «antivacinas». Sucessão de acontecimentos vai ser investigada.

Inês morreu na madrugada de quarta-feira com sarampo. Foi a primeira morte em Portugal em 23 anos por causa desta doença, no ano passado declarada erradicada no país. O corpo é hoje cremado, como era a sua vontade, revelou ao SOL fonte próxima da família. Aos 17 anos, a jovem, alegre apesar de um historial de doença que motivava muitas idas ao hospital, costumava dizer aos pais que, se morresse, gostava que as suas cinzas ficassem perto da família, num quintal na casa onde vivia com os pais e duas irmãs.

O desfecho fatal reacendeu o debate sobre a vacinação no país: Inês não tinha a vacina do sarampo. Fonte médica conhecedora do processo sublinhou ao SOL, contudo, que este não é um caso de «negligência pura» dos pais, mas sim uma sucessão de acontecimentos infelizes, da falta informação e aconselhamento adequado da família à forma como a jovem apanhou a doença.

Inês, de 17 anos, estava a terminar os estudos na Escola Secundária de Santa Maria, em Sintra, e participou no fim do segundo período de aulas na viagem de finalistas em Espanha.

No regresso, sentia-se mal e foi internada no Hospital de Cascais com um diagnóstico de mononucleose. Terá sido neste internamento que ficou no mesmo quarto que o bebé de 13 meses que viria a contagiar seis pessoas na unidade – a adolescente e cinco funcionários. Esta criança dera entrada no hospital a 27 de março mas o diagnóstico não foi imediato. Terá sido contagiada por um familiar que vive no estrangeiro. Segundo a Visão, a criança não tinha feito a vacina aos 12 meses porque estava febril e não porque os pais fossem antivacinas – o movimento que considera que as vacinas não são necessárias e têm mais riscos que benefícios e que tem sido ligado a um aumento de casos de sarampo na Europa, onde a doença era residual, por fragilizar a imunidade coletiva que se consegue quando a maioria da população tem anticorpos contra o vírus. Quando as crianças estão doentes, com otites ou constipadas, as vacinas costumam ser adiadas alguns dias.

O facto de o sarampo ser uma doença cada vez mais rara nos consultórios médicos (nos últimos três anos o país não registara qualquer caso, nem os casos pontuais importados de anos anteriores) é uma das possíveis explicações em cima da mesa para a demora no diagnóstico e para o facto de os dois doentes, sendo o historial de Inês conhecido, terem ficado no mesmo quarto.

Esta não era a primeira vez que a adolescente se deslocava ao hospital. Diagnosticada com psoríase desde a infância, Inês já tinha feito também tratamentos em Cuba, até com o apoio de um peditório na sua freguesia, na Várzea de Sintra. Foi no acompanhamento desta doença, e também pelo facto de em bebé, aos dois meses de idade, ter feito um choque anafilático ao receber a primeira dose da vacina do sarampo, que os pais terão recebido o conselho médico de não fazer a segunda dose da vacina aos cinco anos de idade. Inês não tinha a vacina do sarampo nem tinha todo o calendário de vacinação em dia, mas tinha algumas vacinas. Fonte próxima da família explica que a acusação de que seriam «antivacinas» tem revoltado os pais e garante que estes vacinaram as irmãs da adolescente, a mais velha de 19 anos e a mais nova de 13.

A recomendação da Direção Geral da Saúde é que a vacina deve ser feita mesmo por quem tem historial de alergia, devendo os pais ser aconselhados a fazer a vacina em meio hospitalar para haver maior capacidade de resposta caso haja alguma reação adversa. Se esta é a orientação, reforçada em 2012, os pais de Inês terão tido um conselho médico diferente, que seguiram.

Depois de ter alta hospitalar, a jovem regressou a casa antes da Páscoa sem sinal de sarampo – os sintomas podem demorar uma semana a surgir. Mas o seu estado de saúde agravou-se e regressou ao hospital no passado sábado, tendo sido então diagnosticada.

No domingo foi transferida para o Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, para ser colocada em isolamento em cuidados intensivos, ligada a um ventilador. Com o sistema imunitário em baixo fruto da medicação para a psoríase e da mononucleose, e sem a vacina do sarampo – que tem o efeito protetor de, mesmo quando se contrai o vírus, a doença ter uma evolução mais favorável – o vírus atacou-lhe os pulmões e desenvolveu uma pneumonia, uma das complicações mais gravosas do sarampo. Na segunda-feira, começou a mostrar-se confusa e foi-lhe induzido o coma, do qual não despertou.

 

Caso vai ser investigado

Segundo o SOL apurou, está previsto um inquérito alargado a todos os acontecimentos, mas numa fase em que o surto esteja controlado. A família de Inês está revoltada com o facto de a jovem ter ficado no mesmo quarto que a criança que estava doente. Questionado sobre se foi pedida já alguma avaliação ao Hospital de Cascais ou à Inspeção Geral das Atividades em Saúde sobre se todos os procedimentos foram cumpridos neste caso, o Ministério da Saúde não respondeu até à hora do fecho da edição. O Governo confirmou, entretanto, que a IGAS abriu um inquérito ao Hospital de Cascais. Já o diretor-geral da Saúde, Francisco George, sublinha que não comenta casos particulares, defendendo que importa assegurar que estão em curso todas as medidas para controlar o surto.

A mensagem foi reiterada pelas autoridades de saúde várias vezes nos últimos dias: Portugal tem uma elevada taxa de cobertura vacinal contra o sarampo pelo que o vírus não tem um terreno fácil para se propagar. Estão também disponíveis vacinas para todas as crianças que estão em idade de as receber e há uma reserva estratégica para quem precise de a fazer. Estima-se que nos últimos anos tenham ficado por vacinar 10 mil a 15 mil crianças. «A nível geral, a população portuguesa está protegida em relação ao sarampo. Ou porque aqueles que têm mais de 40 anos já tiveram contacto com a doença ou porque os que têm menos de 40 anos terão sido vacinados», explica George. «O vírus encontra a maioria dos cidadãos protegidos pelo sistema imunitário e é exatamente por isso que admito que a atividade epidémica em Portugal não terá uma magnitude preocupante, mas não pode ser ignorada».

Até ontem estavam confirmados 21 casos e uma outra dezena permanecia em investigação. Metade dos casos registam-se em adultos, nove dos quais em profissionais de saúde. Sensivelmente metade dos doentes não estavam vacinados, como era o caso de Inês mas também de quatro crianças – que ainda não tinham idade para ter recebido a primeira dose da vacina (dada aos 12 meses) – mas também de dois profissionais de saúde.

De acordo com o último balanço do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças, divulgado ontem, desde o início do ano foram registados 2300 casos de sarampo na Áustria, França, Alemanha, Portugal e Itália, sendo que Itália regista a maior epidemia (1603 casos). Já a Roménia conta com 4793 casos desde janeiro do ano passado. Neste país a doença já matou 22 pessoas e a Bulgária registou a primeira morte a 7 de abril, de uma criança de dez meses sem vacina.

A nível mundial, estima-se que o sarampo tenha sido a causa de morte de 134 mil pessoas no ano passado. O reforço da vacinação das crianças, que Portugal também seguiu, levou a uma redução de 79% das mortes por sarampo a nível mundial entre 2000 e 2015. Estima-se que a vacinação tenha prevenido neste período 20,3 milhões de mortes, sendo considerada pela Organização Mundial de Saúde um dos melhores investimentos da saúde pública, uma vez que o vírus do sarampo é dos mais contagiosos. Antes do alargamento da vacinação, em 1980, a doença matava 2,6 milhões a cada ano.