Fátima

Podia escrever acerca das eleições francesas, mas não sei se esta noite haverá, ou não, outro atentado. 

Podia escrever que, após a Revolução de Abril – e cumprindo o serviço militar obrigatório –, percebi por dentro o que era o Conselho da Revolução, a novidade que foi a Polícia Judiciária Militar ou, até, o primeiro e complexo relatório acerca de Timor-Leste. 

Podia escrever acerca da primeira revisão à Constituição de 1976, que acompanhei com particular cuidado e atenção, ou ainda os momentos que, na Alta Autoridade para a Comunicação Social, antecederam o parecer respeitante à atribuição dos canais de televisão privada em Portugal. 

Nas vésperas de mais um Dia da Liberdade poderia, neste espaço de liberdade e com este Sol, relatar vivências vividas e sentimentos sentidos.

Mas recordei uma bela e doce carta do então cardeal Albino Luciani, enquanto Patriarca de Veneza – e antes da sua curta liderança da Igreja Católica como Papa João Paulo I –, na qual escreveu a Mark Twain, com o sugestivo título de Três Senhores Joões num só: «O homem é mais complexo do que aquilo que parece: cada homem adulto encerra em si, não um mas três homens diferentes. Pegai num qualquer Senhor João. Existe nele o João Primeiro, isto é o homem que ele pensa que é; existe o João Segundo, o que os outros pensam que ele é; e finalmente o João Terceiro, aquilo que ele é na realidade». Sei bem que há três Joões. Deixo-lhes um pouco de um meu ‘João’! 

No primeiro ano dos anos setenta do século passado participei, com muito orgulho e como garboso aluno do Colégio Militar, nas cerimónias do 13 de Maio em Fátima. 

Tive o privilégio de, com todo o rigor e intensa honra, transportar o andor com a imagem de Nossa Senhora de Fátima. Foi um momento singular aquele em que participei, e partilhei a imensa fé de milhares de fiéis na comovente procissão das velas. 

Nunca esqueci aqueles momentos. E nunca os relatei. Faço-o na ocasião em que tomo conhecimento da canonização de Jacinto e Francisca, na sua própria terra, no próximo dia 13, pelo Papa Francisco. 

Durante largos anos, em razão de um sério problema de saúde que limitou o saudoso senhor meu Pai, desloquei-me inúmeras vezes a Viseu. A A1 foi minha companheira e minha parceira em muitos domingos. Escutava a Rádio Renascença e as sábias palavras do sempre amigo D. Manuel Clemente, hoje Patriarca de Lisboa. E Fátima foi, em alguns domingos, paragem obrigatória. Com total discrição. Para pedir as graças do meu Deus – e de Nossa Senhora – para o senhor meu Pai. 

Eu pecador – sim pecador! – buscava naquela capelinha agora forrada com madeira russa uma força suplementar que permitisse, como permitiu, que continuasse em futuro domingo a amparar meu Pai. E me permitisse, como permitiu, continuar a sorrir com o seu alegre olhar e a sentir o seu apertado abraço. 
Era o momento em que o sangue e a alma se uniam, em que o coração e a cabeça se juntavam numa expressão de amor. 

Fátima foi, para mim, neste tempo de celebração do centenário das aparições, encontro e busca. Foi descoberta vivida da fé e instante real de vida. 

Fátima foi, com a farda castanha do Colégio Militar, momento de orgulho; e, como cidadão, encontro com o ‘Altar do Mundo’. 

Fátima foi local de partilha sentida dos saudosos senhores meu Pai e minha Mãe, e foi terra de peregrinação de família bem próxima. 

Em Fátima, cada homem – e cada mulher – expressa a sua fé. E esta fé, que impressiona e nos impressiona, pode ter ‘pausas’ mas não tem ‘fim’. Pode ter um parêntesis sentimental, mas nunca permite o esquecimento. 

Sabemos, tal como aqueles Joões, que as sociedades dos homens se orientam por motivos religiosos, culturais, rácicos, morais e materiais. Numa dada época ou num dado momento de vida – desta vida! – pode prevalecer um princípio sobre outros; mas, no final e afinal, os nossos vínculos e as nossas vivências nunca se apagam. 

E aquela noite de Fátima nunca se apagou. Como uma vela, acende-se. Com a força que ilumina a nossa memória e reacende a nossa fé!