O hino em louvor do défice…

Basta uma ausência de escassas semanas do país para nos surpreendermos no regresso. Em coro afinado, os media repetem que foi alcançado em 2016 «o défice mais baixo da democracia», depois de o INE ter certificado que ficámos nos 2% do PIB.

Com este ‘suplemento de alma’, a capital foi invadida por outdoors com a mesma frase, transformada, obcecadamente, em supremo orgulho do Governo. 

A canonização da proeza é exibida como se fosse uma ‘prova de vida’ e da competência extraordinária de um primeiro-ministro astucioso, servido por um ‘mágico’ nas Finanças. O Estado pode, afinal, devolver rendimentos aos portugueses e promover o consumo interno sem beliscar o défice, arriando a bandeira da austeridade. Uma maravilha.

E tudo isto no meio da enorme ‘paz social’ conseguida por obra e graça dos sindicatos da CGTP, que ‘meteram a viola no saco’ e se deixaram de greves, de paralisações selvagens e de perseguir ministros em qualquer sítio público, para os insultar com as televisões por perto. 

Como parecem longínquos os tempos em que Jorge Sampaio achava que «há mais vida para além do défice» (a frase ficou-lhe colada à pele…), com o PS e as esquerdas em geral a protestarem contra o objetivo de conter o dito défice. 
Houve agora ‘maquilhagem’ para o baixar, mas que importa? Alguém no seu juízo perfeito apontará a dedo o recuo drástico no investimento público, o adiamento da recapitalização (urgente…) da Caixa, ou a cativação de despesas – em particular na saúde, onde até se esgotaram alguns stocks de medicamentos? 

A espessura da ‘paz social’, protegida pelos sindicatos mais reivindicativos afetos ao PCP, amoleceu qualquer arremedo contestatário. 

Um exemplo: contemplados com as vitualhas prometidas, os trabalhadores do Metro adiaram sine die as paralisações e os plenários, dia-sim-dia-não, enquanto os utentes se arrastam pelas escadas rolantes, cronicamente avariadas. Nada é perfeito. E se a manta é curta, os passageiros que se amanhem.

Com o apoio lesto do Presidente da República, que se sente feliz com este défice, o primeiro-ministro em exercício tem razões de sobra para se rever ao espelho, encantado com a sua sabedoria e agilidade no trapézio. 

Neste quadro edílico, a quem acodem as trapalhadas de Mário Centeno no dossiê da Caixa ou, mesmo, os gigantescos calotes registados pelo banco público – as famigeradas ‘imparidades’ – que hão de onerar o contribuinte, com inquéritos parlamentares a marinar e sem culpados à vista? 

E quem se interroga sobre a sorte ou o paradeiro de Ricardo Salgado e sobre as suas responsabilidades no colapso do BES, gerador do Novo Banco, cuja venda poderá agravar, também, a fatura do contribuinte?

Se o Presidente da República reconhece que o sistema financeiro português está «sólido e mais resistente a choques», é porque sabe do que fala e podemos dormir sossegados. 

Com a ‘descrispação’, os portugueses já esqueceram o país quase falido em 2011 – e o que lhes foi exigido para endireitar as contas – e voltaram a esgotar, na Páscoa, a hotelaria e os pacotes das agências de viagens.
É um país feliz e reencontrado, com desespero de jornais e televisões, que, à míngua de manifs organizadas de rua – com exceção da Fenprof, para disfarçar – têm de contentar-se com questões menores, para encher o espaço e atenuar a queda de audiências e de receitas de publicidade.

No mínimo, tornou-se quase ‘antipatriótico’ não afagar o ego e a boa cotação do Governo, traduzidos em sondagens e em comentários ditirâmbicos de muitos ‘analistas’ encartados. 

Do plano interno à frente externa não faltam as ‘boas’ novidades. 

Desde Mário Centeno ‘sondado’ (não se sabe por quem…) para futuro presidente do Eurogrupo – forçando António Costa a declarar, apressadamente, o apoio ao espanhol Luís de Guindos, não fosse o diabo tecê-las… –, até às tristes figuras do secretário de Estado Mourinho Félix, gozado pelo polémico holandês Jeroen Dijsselbloem, de quem não conseguiu desculpas e, menos ainda, a demissão. 

A estratégia da ‘geringonça’ em matéria de política internacional é, aliás, um mimo, conduzida por Francisco Louçã e pelo seu alter ego Catarina Martins, que desafiam a comunidade a condenar o Presidente americano perante os «atos de guerra» cometidos na Síria e no Afeganistão, enquanto ignoram olimpicamente o ‘estado de sítio’ venezuelano, com a economia de rastos, lançando no caos e na incerteza milhões de pessoas, entre as quais milhares de emigrantes portugueses. 

A euforia que se respira novamente em Portugal contrasta com os sinais de instabilidade que se agigantam no mundo. 
Lá diz a sabedoria popular que ‘a fé é que nos salva’… O hino em louvor do défice segue dentro de momentos.