João Canijo. “A vida é tudo menos transcendente”

É sobretudo isso que nos vem dizer “Fátima”, nono filme de João Canijo, que antes de ser um sobre a fé foi um filme de atrizes, 11 mulheres levadas ao seu limite

“Sei por que estou a ir, mas não consigo entender por que é que estas pessoas estão a sofrer desta maneira para fazerem este caminho”, recorda João Canijo da peregrinação que ele próprio fez a a Fátima muito antes de ter empurrado para a estrada as 11 atrizes que deram o corpo e a alma a este filme-sacrifício que é a sua nona longa-metragem de ficção. “E continuo sem entender”, diz-nos vários anos, várias peregrinações depois, inteiras e em partes pelas atrizes que, não duvida, estarão sempre dispostas ao que for preciso. Chega amanhã às salas “Fátima”, contradição entre a procura da redenção e numa vida que será tudo menos isso. Como esta peregrinação afinal. Crítica ou apologia, provavelmente nenhuma delas. Se é de fora que partimos, daí não havemos de sair até à chegada, que promessas não são coisa que se conta em viagem. Ficção, documentário, é pela dúvida que se faz este caminho. Pés à estrada então, que esta viagem terá que ser também nossa.

“Fátima” é a história de uma peregrinação mas também um filme de 11 atrizes. Qual destes dois aspetos foi o ponto de partida para contar esta história?

A primeira coisa foram as mulheres.

Não esconde que gosta mais de trabalhar com atrizes do que com atores.

As atrizes têm uma maior capacidade de entrega e de exposição, mais disponibilidade em geral e uma maior capacidade de trabalho.

O que o leva a dizer isso? Não acredita que haja atores capazes do mesmo?

Experiência. Acredito piamente nisso. Não sei se conseguiria arranjar nove atores que fossem a Fátima a pé, e elas foram todas. Mesmo. Queria fazer um filme só com mulheres em que elas fossem levadas ao extremo, em que fossem obrigadas a estar 24 horas sob 24 horas juntas sem que pudessem fugir umas das outras. De repente lembrei-me de fazer uma excursão e aí a outra hipótese foi imediata. Qual é a excursão mais portuguesa que existe? Ir a Fátima a pé. A partir daí o filme deixou de ser só um filme de relações entre mulheres numa situação limite e passou a ser um filme sobre a necessidade de Deus também.

Essa ambivalência está muito presente em “Fátima”, porque o que encontramos neste caminho delas não será aquilo que alguém que nunca fez essa peregrinação imagina que ela seja. 

Aquilo é muito documental. Não se imagina que exista um paradoxo tão grande entre a procura da fé e as relações humanas, mas essa era a ideia também. Foi o que descobri ao fazer [a peregrinação] e quando elas fizeram também. Que a vida que é paradoxal em relação a essa procura do transcendente, porque a vida é tudo menos transcendente.

Entre a primeira peregrinação que cada uma das atrizes fez em separado, em 2014, uma segunda feita parcialmente em 2015, o estágio em Vinhais e a rodagem, em 2016, qual foi exatamente o processo de construção deste filme?

Todas elas fizeram peregrinações verdadeiras, umas mais compridas do que outras, porque não fazia sentido juntá-las numa peregrinação só, não funcionava. Iam no máximo duas por cada peregrinação real e iam fazendo um diário que gravavam com o iPhone e mandavam por email todos os dias. Dessas gravações saíram os tópicos que depois foram discutidos, esmiuçados e completados quando acabou a peregrinação para depois se fazer uma peregrinação falsa, nas mesmas condições daquela que aparece no filme, que são as da que vem de Bragança. Exatamente aquelas, com aquela carrinha. Nessa peregrinação falsa fez-se o percurso de Bragança a Fátima mas não se fez inteiro, em vez dos nove dias fez-se em cinco, saltando e fazendo as partes que me pareciam as mais significativas. Essa peregrinação falsa foi filmada o tempo todo.

Com as atrizes em personagem o tempo todo.

Exatamente, foram obrigadas a estar em personagem o tempo todo. Depois disso, como se chegou à conclusão de que seriam transmontanas, foi tudo para Vinhais dois meses e meio, onde trabalhavam de manhã nas profissões que tinham escolhido para as suas personagens e à tarde ensaiávamos, revíamos o argumento e improvisávamos as cenas.

Que profissões eram essas?

A Rita [Blanco] era dona de um café, a Anabela [Moreira] trabalhava num supermercado mas de manhã tratava das vacas, a Alexandra Rosa trabalhava no centro de saúde, a Cleia [Almeida] trabalhava numa creche, a Vera [Barreto] andava com um agricultor moderno.

E nesses trabalhos em Vinhais as atrizes trabalhavam como personagens ou como elas próprias?

Isso é a mais longa discussão da história da representação.

Sim, uma atriz nunca deixa de ser ela própria e as personagens não são mais do que construções a partir de si próprias.

Lá está. O que o ator faz é pôr-se nas circunstâncias do personagem, rigorosamente mais nada e, ao pôr-se nas circunstâncias do personagem, muda. Como nós mudamos na vida. Representar, segundo dizem e é isso que acho e que quero, é ser mais verdadeiro do que na vida. Como estás protegido por um personagem que teoricamente não és tu, podes deixar cair todas as tuas máscaras. E ainda mais defendida estás se tiveres um texto que não é teu. 

Ao contrário da atriz que protagoniza o “Persona”, do Bergman, que começa a colocá-las quando deixa de conseguir representar.

Já o Bergman tinha essas ideias. O que há de mais interessante na representação, no acting, vai dar aí.

Por que processo é que todo o material que diz que foi recolhendo nas várias fases – as gravações dos diários, as filmagens da peregrinação que fizeram em conjunto, mais as dos ensaios em Vinhais – se transforma no argumento do filme?

É tudo transcrito e depois edito. Escolho o que me interessa. É muito, muito trabalhoso mas funciona muito bem.

Como montar um puzzle?

Em relação à peregrinação falsa já não é tão puzzle quanto isso. Elas sabiam o que tinham que forçar que acontecesse em cada dia porque já tínhamos as peregrinações reais.

Esses ensaios de que fala em Vinhais consistiam em quê?

Em estruturar as cenas que tinham surgido das peregrinações, discutir e improvisá-las. Isso também era tudo gravado e daí saiu o guião final, que só serviu de guia, de mote, porque as cenas são todas improvisadas. Não improvisação livre, uma improvisação muito balizada. 

Daí que o filme tenha surgido com esta forma de falso documentário de uma maneira que não tínhamos visto em nenhum dos seus outros filmes.

 

A ideia foi filmá-lo e montá-lo como documentário. O “É o Amor” foi uma preparação para este – e esse será uma ficção ou um documentário? Se calhar é um documentário disfarçado de ficção. Interessou-me levar isso ao limite das minhas capacidades, sim. Qualquer documentário é uma ficção a partir do momento em que tem um ponto de vista. Não há verdade, há realidade. E a partir do momento em que tens uma representação da realidade ela passa a ser ficção. É a narrativa de quem está a filmar. 

Interessa-lhe continuar a explorar este género híbrido do que não chega a ser documentário mas também não é totalmente ficção e o trabalho com não-atores que tínhamos em “É o Amor?”

O trabalho com não-atores resulta muito bem quando estão a fazer de si próprios, senão não resulta tão bem. Agora interessa-me trabalhar com as atrizes enquanto atrizes, num registo menos documental mas num filme que não terá uma linguagem convencional, no sentido em que não vou tentar impor… vou tentar fugir a um ponto de vista teoricamente explicativo. Para mim, a linguagem convencional do cinema que tenta explicar um argumento é um contrassenso. Ninguém nunca vai ver o filme da mesma maneira que o realizador. O ponto de vista é sempre reinterpretado. Schopenhauer explica, Kant também já explicava, que quando os dois olhamos para uma nuvem, independentemente da natureza da nuvem, da sua verdade, que é vapor de água condensado, cada um de nós vai ver uma nuvem diferente. Mais ainda, se tentar desenhar a sua representação da nuvem, eu vou ver uma coisa diferente do que me tentou explicar com o seu desenho.

Isso é já o que encontramos em “Fátima”. Vemos as personagens de fora. Nada é explicado, não sabemos o que as levou ali, não chegamos a vê-las por dentro.

Pode imaginar-se muito mais, o que se quiser. Parece-me muito mais interessante.

O que percebi foi que uma das conclusões a que chegaram nas peregrinações de preparação para o filme foi que as pessoas não falavam sobre as suas motivações. Esta opção neste filme em particular também vem dessa realidade? 

É muito raro falarem. Talvez em circunstancias extremas de grande intimidade e comoção acabem por dizer alguma coisa mas isso é um segredo delas, uma coisa íntima. Mas não foi daí que veio, foi porque me parece muito mais interessante cada um de nós imaginar as razões de cada uma delas do que estar a tentar explicar essa razão – ela existe e foi muito trabalhada para cada uma delas, tinha que existir, se não não o fariam daquela maneira. Por exemplo, uma delas vai porque o pai tem um cancro. Posso explicar isto tudo, ela pode contar esta história toda, mas há mil interpretações diferentes desta história, cada espetador vai imaginar as razões profundas que a levam a ir para tentar salvar o pai, portanto mais vale não explicar. Dá mais hipóteses de representação. A representação da realidade é a representação que fazemos dela, que depois ainda vai ser interpretada. A partir do momento em que cheguei à conclusão de que a representação e a sua interpretação são absolutamente individuais, deixou de fazer sentido para mim tentar impor uma interpretação. Por isso é que me aproximo mais do documentário.

Nestes seus dois últimos filmes, “É o Amor” e “Fátima”.

Acontecia já no “Sangue do Meu Sangue”, aconteceu bastante no “É o Amor”, mas neste filme pode dizer-se que consegui fazer quase exatamente o que queria fazer, do ponto de vista conceptual.

No “Sangue do Meu Sangue” menos, não assistíamos completamente de fora como aqui em que somos quase colocados no lugar de mais uma pessoa naquela peregrinação de Bragança a Fátima.

O “Sangue do Meu Sangue” ainda tinha um guião, sim. O que eu acho é que quando se assiste às personagens de fora, como disse e muito bem, se calhar consegue-se entrar melhor nelas.

Os relatos dos diários que lhe foram chegando das peregrinações que cada uma das atrizes fez em 2014 surpreenderam-no de alguma forma?

Não houve nada que me tivesse surpreendido mas o paradoxo era muito maior do que aquilo que eu pensava. A conversa sobre Deus Nosso Senhor, sobre a religião, sabia que não era muita mas não sabia que era tão pouca. Aconteceu uma coisa muito engraçada na peregrinação real da Anabela e da Vera: ia tudo muito composto até meio do primeiro dia, quando a Vera largou o primeiro “foda-se”. Riram-se todos muito e a partir daí foi estamos em casa, estamos à vontade. 

Antes das atrizes, também o João já tinha ido a pé a Fátima, para o filme.

Para ver como era. Por isso é que nada do que aconteceu na peregrinação delas foi muito surpreendente.

E na sua?

Na minha… eu dizia: “Sei por que estou a ir, mas não consigo entender por que é que estas pessoas estão a sofrer desta maneira para fazerem este caminho.” E continuo sem entender. Foi aí que percebi que elas tinham mesmo que a fazer, não havia hipótese de fazer um filme decente e com o mínimo de realidade sem elas fazerem a peregrinação a pé. O filme é sobre o que a necessidade de Deus leva as pessoas a fazer.

E assistir a isso pode tornar-se perturbador.

Pois pode. 

Por toda esta sua crueza, este filme corre o risco de ser mal recebido por um certo setor mais católico da sociedade portuguesa?

Estou muito descansado em relação a isso. Talvez haja uma minoria de católicos que vai dizer que não é nada assim, mas o católico inteligente até gosta. Bastante. Porque é um ponto de vista que não é apologético mas também não é propriamente crítico. Limita-se a apresentar uma realidade. Depois cada um que a interprete como quiser. Evidentemente haverá católicos que considerarão o filme ultrajante ou qualquer coisa do género, mas até agora as reações que tenho tido de pessoas com responsabilidade católica têm sido exatamente o contrário. Há um sacrifício real, em nome da fé ou da Nossa Senhora, pelo menos.

Ou em nome da representação, pelo menos, no caso das atrizes.

Não é bem assim. Tirando três ou quatro, as outras tinham a sua fé à sua maneira e quando fizeram a peregrinação mudaram. Naqueles dias depois do fim tinham uma sensação de redenção que foi usada no filme. Por isso é que também quis que fizessem os diários. 

Disse-me que isto tudo começou com a ideia de fazer um filme de atrizes colocadas numa situação limite. O centenário das aparições em Fátima não teve também um peso?

Foi uma feliz coincidência que se deveu à crise. O filme foi financiado em 2011, mas por causa dos dois anos em que o ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual] esteve parado a libertação das verbas foi só em finais de 2013. Calhou muito bem mas não era para ter sido assim. E calhou muito bem por um lado mas muito mal por outro.

Porquê?

Porque o facto de as pessoas se estarem todas a guardar para ir a pé a Fátima no centenário com a vinda do Papa, que já se dava por certa no ano passado, em 2016 houve muito menos gente na estrada do que o costume e muito menos gente na procissão das velas. Há uma vigarice [no filme], porque havia lá uma clareira. 

Mesmo não tendo sido intencional, agrada-lhe a ideia de a estreia deste filme no centenário das aparições poder levar às salas um público que não é habitualmente o seu? 

Não faço os filmes a pensar no público, mas da mesma maneira que digo que é uma feliz coincidência a estreia calhar no centenário, com a vinda do Papa, é evidente que gostarei muito que outro público venha, claro que sim. Mas o que me interessava era levar ao limite a minha pesquisa pessoal em termos formais e do trabalho com as atrizes. Gosto muito quando me perguntam se são todas atrizes e se isto é um filme ou um documentário. O melhor elogio que me fizeram até agora é esse, dizerem-me que parece um documentário. 

Será esse um caminho a seguir de novo no seu próximo filme, de que falava há pouco?

É um filme familiar, de três irmã s fechadas num hotel decadente, com muito pouca clientela.

Nos seus filmes encontramos sempre as personagens fechadas de alguma forma nalgum lugar, seja físico ou não.

Porque quando não há possibilidade de fuga, quando as pessoas são mesmo obrigadas a conviver umas com as outras, as relações extremam-se. Daí a ideia família também.

Esse gigantesco centro de conflito.

Não só porque é fechada mas porque as relações mais extremas, tanto de ódio como de amor, são nas famílias.