Gorillaz. Novas babilónias para os millenialz

Há 17 anos, estavam as folhas do manual pop dos Blur a ser rasgadas quando nascia a primeira filha de Damon Albarn. Uma adolescência depois, a galáxia dos Gorillaz dirige-se à geração digital

Durante o reencontro que trouxe de volta os Blur à vida, para gáudio de uma imensa minoria ávida de exclamar “woo-hoo” em únissono, Damon Albarn explicou como se sentia a cada noite. “Para dizer a verdade, ainda tento fugir disso como da peste. Mas quando subo ao palco, algo estranho acontece: simplesmente divirto-me muito. E mal saímos de palco, digo: nunca mais. É muito estranho. A psicologia deve explicar esta emoção de tentar não fazer alguma coisa, depois fazê-la e adorar, e depois nunca mais querer fazê-la outra vez”, descrevia à Rolling Stone.

Desde David Bowie que ninguém mudava de pele com tanta facilidade e avidez. Em 1999, os Gorillaz ainda eram um projeto, e já os Blur fugiam para a frente com baladas soul de pendor espiritual como “Tender” e derrames “blues” como “No Distance Left To Run”. Albarn estragava o rock de guitarras, à espera de um foguetão para descolar à procura novos planetas. Em 2001, a primeira galáxia dos Gorillaz era avistada. Albarn, o produtor Dan The Automator e o ilustrador Jamie Hewlett imaginavam um planeta para uma banda virtual, algures entre o real e a fantasia. As formas rítmicas preenchiam o som e as quimeras tecnológicas imagem de um colectivo que se fazia representar por personagens: 2-D, Murdoc, Noodle e Russell. Havia uma história, um corpo musical e uma narrativa visual, para estruturar um “conceito”, como passaria a ser usual chamar-se.

“Gorillaz” foi um estrondo comercial e mediático. Se já havia sinais de mudança em “Blur” (1997) e “13” (1999), “Gorillaz” (2001) era o passaporte para um admirável mundo novo. Adeus símbolo da brit-pop e da cool britannia, olá Damon Albarn, cidadão digital do mundo.

De então para cá, fez de tudo um pouco. Sozinho e acompanhado; canções, desustruturações, experiências bizarras, e curadorias. Para os Blur ainda houve espaço na agenda: em 2003 partiam com o fraturado “Think Thank”, onde já não participou o guitarrista Graham Coxon; em 2008 voltavam para matar nostalgias alheias e em 2015 deixavam-se pôr à prova em “The Magic Whip”.

A banda pareceu sempre um planeta distante no Séc. XXI de Albarn. E os Gorillaz uma prioridade, interrompida, apesar disso, por dois supergrupos discretos – The Good, The Bad & The Queen com o baixista dos Clash, Paul Simonon e o baterista Fela Kuti, e os Rocketjuice And The Moon (Albarn, Allen e Flea dos Red Hot Chili Peppers) – o solitário “Everyday Robots”, a ópera Dr. Dee e o musical “Monkey: Journey to the West”, entre outras carruagens como o “Africa Express”.

Então chegados a 2017, com os Blur e as outras máquinas paradas, os Gorillaz regressam com o sistema operativo renovado. “Algumas das decisões tomadas neste disco foram alimentadas pela minha vontade de impressionar” a filha de 17 anos, reconheceu A geração de Missy fez do hip-hop a banda sonora dos millenials e o elenco de “Humanz” está atento às atualizações: Vince Staples, De La Soul, Danny Brown, Pusha T, D.R.A.M., Popcaan e Kelela vão a jogo com Noel Gallagher, Benjamin Clementine, Grace Jones e Jenny Beth (Savages).

Albarn é uma voz secundária e assume um papel entre a curadoria e a direção musical. As coordenadas de “Humanz” estendem-se, aliás, muito além da música e dos formatos. A festa virtual de lançamento exigia a instalação de uma aplicação para smartphone e a deslocação a coordenadas particulares em cada cidade para conseguir aceder ao disco que só estará disponível amanhã.

E porque os Gorillaz não são apenas uma reação ao presente mas também uma projeção futurista, aquele que se anuncia como o próximo mantra tecnológico foi explorado através de vídeo e aplicação. “Saturnz Barz” bateu o recorde visualizações em realidade aumentada no YouTube. A aplicação do coletivo tem ligação direta à câmara do smartphone e, através de pequenos objetos, permite explorar o estúdio onde humanos e personagens se confundem. Está tudo ligado. E em rede.

Damon Albarn agradeceu à filha mas não esqueceu o omni-ausente Donald Trump de quem foram apagadas todas as referências. “Sempre que alguém fazia alguma referência, eu eliminava-a. Não quero dar mais fama àquele que já é o homem mais famoso do mundo. Ele não precisa!”, explicou à “Billboard”. “A ascensão de Trump foi uma das fontes de energia sobre as quais meditamos, quando pensávamos apenas “é tão ridículo que nunca poderá acontecer”, continuava Albarn.

Nem todas as alusões foram eliminadas. O vídeo de “Hallelujah Money” foi desvendando na véspera de o novo presidente americano tomar posse. Do alto do barítono, Benjamin Clementine canta para espantar males num cenário aparecer num cenário que reproduz o elevador da Trump Tower.

E assim o álbum faz uma espécie de triagem entre a América boa e a América. Entre a sociedade civil e artística e a política dos políticos. A cada gesto, Albarn definiu um caminho de acordo com o real e o virtual da época, adaptado visualmente pelas ilustrações de Jamie Hewlett. Como é possível perceber, a realidade virtual é aumentada em simetria com as possibilidades tecnológicas atuais mas o regresso dos Gorillaz também ser entendido como um regresso à Terra (ver caixa ao lado). E uma desconstrução da ideia original, para a qual foi escolhido a mais primitiva de todas as formas de vida. “Humanz” apesar de tudo.