Têm 70 anos e querem continuar a trabalhar. O Estado deve deixar?

Os funcionários públicos continuam a estar dependentes de uma lei que foi aprovada em 1926. Na altura, achava-se que uma pessoa de 70 anos já não tinha capacidades para desempenhar funções. Os tempos mudaram, mas as regras não. Gentil Martins, Fernando Rosas, Jorge Miranda, Constantino Sakellarides e Bagão Félix defendem que a regra devia mudar,…

A regra foi publicada há 91 anos e mantém-se inalterada. Como foi estipulado no “Diário do Governo” (antigo “Diário da República”) a 24 de julho de 1926, o prazo máximo para um funcionário público exercer funções são os 70 anos de idade. Isto porque, lia-se na altura no diploma, “arredar os ineptos pelo progresso dos anos é um benefício necessário para a administração”. No mês passado, o presidente do Infarmed Henrique Luz Rodrigues completou esta idade, o que fez com que fosse substituído pouco mais de um ano depois de ter chegado ao cargo e numa altura em que, internamente, se pensava que pudesse haver exceção para continuar mais uns meses. No privado, não existe este limite. No Estado, a regra devia mudar?

Recuando na história, depois da primeira legislação em 1926, o assunto tornou a ser discutido três anos depois, em 1929. Num artigo publicado no “Diário do Governo”, é argumentado que o serviço depende, por um lado, da qualidade dos funcionários que o prestam e, por outro, da sua adaptação às mudanças dos tempos – daí que os 70 anos tenha sido considerada a idade limite para o exercício de funções. “Atendendo que aquelas qualidades só excecionalmente se encontram em funcionários que tenham ultrapassado um certo limite de idade, além do qual o espírito de iniciativa desaparece, para ceder o lugar à rotina, e não é para a exceção, mas para a normal que deve estabelecer-se um certo regime de direito”, lê-se no texto publicado. Este decreto acabou por ser revogado, mas o primeiro manteve-se. E a verdade é nove décadas depois, o Estado continua a seguir a mesma regra: depois dos 70 anos, os funcionários públicos são obrigados a abandonar o posto de trabalho, salvo em raras exceções: a classe política, por exemplo, não tem qualquer limite de idade para exercer ou candidatar-se a cargos políticos.

No final do ano passado, foi aprovada uma proposta no parlamento, com os votos favoráveis do PSD e PS, que recomenda a extensão do limite da idade de reforma na função pública para lá dos 70 anos de idade. Desde então, o governo ainda não anunciou se vai ou não seguir esta recomendação.

Questionado pelo i sobre se existem exceções na função pública no que diz respeito ao limite de idade, o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social revelou que em 2017 existiam 115 pessoas com mais de 70 anos a trabalhar. Mas este número pode pecar por defeito e incluirá, também, alguns trabalhadores do setor privado. “Para além de não estarem contabilizados médicos, também não é taxativo que todos estes sejam funcionários públicos, isto porque a Caixa Geral de Aposentações (CGA) ainda abarca alguns regimes especiais (alguns do privado, como os professores universitários do privado)”, explicou fonte do Ministério.

Assim, estes dados correspondem aos trabalhadores inscritos na CGA que trabalham para lá da idade legal da reforma, mas não apenas aos funcionários públicos, o que significa que não é possível dizer com certeza quantos funcionários públicos trabalham com mais de 70 anos. O i tentou perceber junto do ministério o porquê de existirem estas exceções, mas não obteve resposta. Sem saber a que correspondem estes dados, é possível até que se tratem de casos de pessoas que exerçam cargos políticos.

“Não podemos estar 40 anos a trabalhar e outros 30 reformados” 

Se o levantamento está por fazer, as considerações do PSD e PS na recomendação aprovada no parlamento têm o apoio, de forma indireta, da comunidade científica. Isto porque, de acordo com o estudo ‘Envelhecimento e Saúde. Prioridades Políticas num Portugal em Mudança’, vive-se mais tempo e os avanços científicos tendem a reduzir o grau médio de dependência e de incapacidade. “Há que preparar a sociedade e a estrutura económica para esta realidade e adaptar o modelo de Estado que se pretende ao futuro. Apenas temos como certo que o Estado que conhecemos até agora está desajustado à realidade futura que se avizinha e já dentro de poucos anos”, lê-se na investigação.

Este é um dos argumentos defendidos pelo cirurgião Gentil Martins. “A reforma tem que se flexível. Deve depender do facto de as pessoas estarem em condições ou não e de quererem ou não continuar a trabalhar, não deve ser algo rígido”, defende o médico que, aos 86 anos, continua a operar numa clínica privada e a dar consultas.

Para fortalecer os seus argumentos, Gentil Martins cita as projeções feitas pelo Instituto Nacional de Estatística, que revelam que, em 2080, Portugal terá sete milhões de habitantes, menos dois milhões do que atualmente. Para além disso, o número de jovens diminuirá de 1,5 para 0,9 milhões e o número de idosos passará de 2,1 para 2,8 milhões. Se não existirem alterações no modelo de reforma que vigora hoje em dia, a população ativa ficará reduzida dos atuais 6,7 milhões para apenas 3,8 milhões de pessoas.

“Não podemos trabalhar 40 anos e estar reformados 30. Temos de pensar nas gerações futuras. Estes dados relativos ao ano de 2080 são aterradores. Há que aumentar a idade da reforma e nunca diminui-la”, disse ao i o cirurgião, acrescentando que o Estado e a própria sociedade civil não terão capacidade para suportar uma situação como esta. “É uma irresponsabilidade isto continuar assim”.

Gentil Martins garante que tem condições para continuar a trabalhar: a sua mãe não treme quando está a operar, foi operado às cataratas e tem uma ótima visão e continua “muito bem de cabeça”. No entanto, admite que já não faz todas as operações que lhe são solicitadas – só faz aquilo que tem a certeza que faz bem. “Admito que neste momento posso não ser tão bom como já fui, mas que estou seguramente na média ou acima dela, não tenho dúvidas”, garante.

Dar lugar aos mais novos

Fernando Rosas, professor universitário e antigo deputado do Bloco de Esquerda, partilha da opinião de Gentil Martins, mas não vai tão longe: diz que é preciso também dar lugar aos mais novos e ter em consideração se uma determinada pessoa quer ou não continuar a trabalhar. “Se um funcionário público manifestar vontade de continuar a trabalhar e tiver condições para isso, acho que é uma mais-valia para os serviços onde estiver, porque normalmente são pessoas que acumularam experiência”, disse ao i.

Apesar de já estar reformado, Fernando Rosas, de 71 anos, continua a dar aulas na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, em Lisboa, mas de forma gratuita. “A única condição que coloquei foi ter uma assistente. O sindicato dos professores não aprecia muito que se trabalhe de graça e assim, continuando eu a dar aulas, não recebo ordenado, mas crio um posto de trabalho para um investigador dar aulas práticas”.

Rosas admite já estar um pouco cansado, mas enquanto tiver força nas pernas e a cabeça a “regular bem”, não tem intenção de deixar de lecionar a cadeira de História do Fascismo na Europa, uma disciplina fundada por si.

Tendo em conta o seu exemplo, acredita que muitos outros funcionários do Estado tenham vontade e capacidade para continuar a trabalhar. “Algumas pessoas estão muito cansadas e acham que chegou a altura de parar. A meu ver, deveria haver uma flexibilidade legal para, em certas situações, permitir às pessoas continuar. É certo que também é preciso dar lugar aos novos, mas há funcionários que são muito experientes e é uma pena não se poder continuar a contar com a sua ajuda, mesmo que seja a tempo parcial”, acrescenta o professor universitário.

Diferentes regras para diferentes carreiras

O constitucionalista Jorge Miranda fez 76 anos este mês e continua a dar aulas de forma gratuita na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, nos cursos de doutoramento e de mestrado. Acredita que continua capaz de exercer as suas funções – no ano passado publicou várias obras relacionadas com direito constitucional e internacional. No entanto, acha que o aumento do limite da idade da reforma deve ser avaliado consoante carreiras específicas e que só deve ser aplicado se também forem dadas oportunidades aos mais novos.

“É necessário abrir vaga para dar possibilidade àqueles que entram na carreira e querem subir, mas, por outro lado, aqueles que dedicaram a sua vida a uma carreira não devem ser afastados. Compreendo, no entanto, que numa área de grande responsabilidade, em que se lida com as vidas das pessoas, como a medicina ou a enfermagem, tem de haver todo o cuidado, pois um médico, a determinada altura, pode já não estar em condições de fazer um diagnóstico correto”, defendeu ao i.

Continuar a trabalhar, mas não como chefe 

O antigo diretor geral de Saúde, Constantino Sakellarides, tem 76 anos a trabalhar como consultor do ministro da Saúde, a título voluntário. Ao i, confessou que perdeu capacidades físicas e algumas cognitivas, mas ganhou outras tão ou mais importantes, como o facto de conhecer melhor as pessoas, as instituições e ser mais prudente.

Para Sakellarides, manter uma lei que se rege apenas por critérios cronológicos e não biológicos, não faz “muito sentido”. Porém, defende que os trabalhadores mais velhos não podem manter-se em funções para ficar em cargos de chefia, impedindo a progressão de funcionários mais novos. “Acho que uma atividade executiva deve ser vedada aos maiores de 70 anos, devia ser ocupada por pessoas mais novas. Cargos destes deviam estar reservados a pessoas com uma certa maturidade, mas também com alguma energia. As pessoas com 70 anos que sentem que estão ainda habilitadas para dar uma contribuição útil devem fazê-lo em funções nas quais não existe uma competição com outros trabalhadores, acrescentando valor ao serviço [noutro cargo que não um de chefia]. Podiam continuar a trabalhar, deviam ser remuneradas, mas não lhes devia ser permitido certo tipo de funções”, disse Sakellarides ao i.

Igual ao setor privado 

Também o antigo ministro das Finanças, Bagão Félix disse ao i não perceber o porquê de continuar em vigor uma lei arcaica. O tema do envelhecimento ativo é caro ao economista, de 69 anos, que já defendeu um regime de reforma a tempo parcial para maiores de 65 anos e usa como argumento dados do INE, que mostram que em Portugal existem mais de 240 mil portugueses acima dos 65 anos que se mantêm a trabalhar e outras 132,5 mil pessoas com mais de 70 anos, quase 3% do total de ativos. Quanto ao limite de idade no Estado, Bagão Félix é perentório. “A esperança média de vida em 1926 não tinha nada a ver com a de hoje. Para além disso, a diferença entre a idade em que se pode exercer o direito à reforma e o teto máximo tem vindo a ser encurtada: Há alguns anos, havia uma diferença de 10 anos entre o direito à reforma e o limite, agora é apenas de três anos e nove meses”, explicou.

Bagão Félix admite que, politicamente, o aumento do limite da idade para abandonar funções não se justifique, pois é incentivado o rejuvenescimento da administração pública e uma política de emagrecimento do número de funcionários públicos. No entanto, o antigo ministro defende a aplicação do princípio normal de reforma do setor privado: “pode haver reformas antecipadas em relação à idade estipulada e, se se ultrapassar este limite continuando a trabalhar, a pessoa tem uma bonificação, que compensa a diminuição de tempo a pagar a pensão a que tem direito”.

O i tentou saber junto do governo se, tendo em conta a recomendação feita pelo PSD e PS, está a ser feito algo para prolongar o limite obrigatório para um funcionário público abandonar funções, mas, até ao fecho desta edição, não obteve resposta.