A confusão do van Gogh negro

Quando Mike Tyson arrancou com uma dentada parte da cartilagem da orelha de Holyfield, limitou-se a ser ele próprio…

Mike Tyson pode ter um tigre ou dois e aparecer em comédias baratas com meia dúzia de cretinos ressacados, mas nunca me interessou verdadeiramente como desportista. É assim um pouco como O.J. Simpson, mais crime, menos crime, mais meses de cadeia, menos meses de cadeia. Apesar de tudo O.J. Simpson tem mais currículo: Naked Gun teve graça.

Tyson tinha uma carreira de nocautes consecutivos, alguns deles tão instantâneos que mereciam desconfiança. Vinha lá do canto do ringue, com os dentes arreganhados, disparava um gancho de direita e depois um uppercut direito ao queixo do infeliz que resolvia defrontá-lo. KO. Com direito a traumatismo crâniano e ao ti-nó-ni das ambulâncias aflitas.

A história da sua carreira está tão preenchida por momentos de total ausência de atividade cerebral que custa acreditar que tenha sido campeão do mundo de pesos pesados tal como Floy Patterson, Muhammad Ali, George Foreman ou Evander Holyfield. Nunca fez parte do incrível grupo dos Brutos Inteligentes. Limitou-se a fazer parte do infinito grupo dos brutos, tour court.

Por falar em Evander Holyfield, vou até ao dia 28 de Junho de 1997. Não parece, mas já se passaram quase vinte anos.

Las Vegas, Nevada, Grand Garden_Arena.

Palco de um momento de suprema estupidez.

Holyfield não era um dos pugilistas mais pacientes. Nisso tinha parecenças com_Tyson.

Estava em jogo o título de pesos pesados. O campeão era o Monstro do Alabama. Isto é, Evander.

Explico. Sete meses antes, também em Las Vegas, Evander Holyfield despojara Mike Tyson do seu título de pesos pesados ao fim do sexto round. Aí, sim, tivera paciência. Deixara que a excitação de Tyson tomasse conta dos seus movimentos e lhe embaraçasse a mecânica do ritmo. Não houve espaço para o formidável uppercut geralmente fatal.  Iron Mike, Kid Dynamite, The Baddest Man on the Planet tombou do alto da sua montanha de carne. Não gostou.

Mike Tyson além de ferver em pouca água tinha uma forma muito peculiar de perder. Amuava. Depois de ser socado na arena, queria desforrar-se fora dela. Muitas vezes batia noutros que não eram chamados para o assunto. Ou eram chamados para o assunto dele. O assunto dele era bater. Bater muito e muito forte. Fosse a quem fosse.

Por isso, nesse dia de Junho de 1997, estava profundamente irritado.

Azar o dele. Holyfield, por seu lado, estava calmo. Ou, pelo menos, parecia calmo. Desferiu dois golpes contundentes no adversário. Um deles abriu-lhe o sobrolho. Uma sombra negra perpassou pela frente de Mike Tyson. O Homem de Ferro sangrava.

No início do terceiro round, Evander estava em vantagem. Como era costume, Tyson saiu disparado lá do seu canto como uma locomotiva desgovernada. As mãos enluvadas disparavam socos a esmo. Alguns golpeavam apenas o ar cada vez mais denso de raiva e impotência. Fechado na sua máscara contida, Holyfield talvez sorrisse de escárnio. Esperava o momento definitivo, refugiava-se numa vigília atenta, era um homem no seu posto, dentro de si mesmo, enfrentando o sopro de uma ventania endemoninhada.

Tempestuoso, Mike Tyson ribombava. Estralejava. Trovejava. A imagem perdida do som e da fúria. Um idiota, diria Shakespeare pela boca de Macbeth: «And then is heard no more: it’s a tale/Told by an idiot, full of sound and fury./Signifying nothing».

Não seria alguma vez possível ser-se mais cru, mas afirmativo.

Significando nada!

O som e a fúria do idiota esbarravam na espera e nos segundos que passavam. Uma flexibilidade de ramos de árvore desfazia a força da ventania vácua.

Depois o tigre rugiu.

Quando Mike Tyson arrancou com uma dentada parte da cartilagem da orelha de Evander Holyfield, limitou-se a ser ele próprio. A besta.

As mãos já não lhe chegavam. Nunca tivera palavras. Deixava também de ter gestos.

A cada gesto, perdia mais um gesto.

Holyfield sentiu o corte. O tecido rasgado, a ofensa barata.

Tyson cuspiu para o chão o pedaço por mastigar do campeão.

Depois aquele momento irretocável da inquietude que nascia da incredulidade. Evander era agora fera ferida, no corpo, na alma e no coração, como cantava Roberto Carlos. Sufocou o gemido de alvo perfeito, animal arisco.

Agora era Tyson que sorria. Com sangue por entre os lábios.

Não se esquece à toa.

O combate foi interrompido por momentos, mas ainda continuou até ao fim desse round. Raivoso, o tigre repetiu o gesto.

A uma dentada, seguiu-se outra, frustrada.

Evander Holyfield erguia-se, confuso como um Van Gogh negro…

afonso.melo@newsplex.pt